Depoimentos enriquecedores
Les oiseaux sont des artistes
bien plus grands que nous, les humains.
Olivier Messiaen
Neste terceiro e derradeiro post sobre “Messiaen – l’empreinte d’un géant” apresento os últimos depoimentos constantes do livro da pianista e escritora Cathérine Lechner-Reydellet. Ratifico que entrevistas e depoimentos de coetâneos, que conviveram ou foram alunos de Messiaen, apreendem o cotidiano musical participativo, fator a corroborar a edificação futura de outras biografias sobre o compositor francês, que certamente virão a público.
Do jornalista, crítico musical e produtor respeitado Claude Samuel há preciosa entrevista conduzida por Catherine Lechner-Reydellet. Retirei posição personalíssima sobre o cidadão Messiaen, que bem se assemelha àquilo que o compositor russo Alexandre Scriabine (1872-1915) confessava em seus “Carnets inédits” sobre o grande EU (ao compor) e o pequeno eu (o cotidiano). Claude Samuel se expressa: “Messiaen era desconfiado, ingênuo, atento e concentrado, sentindo-se envergonhado quando diante de problemas da vida cotidiana, pois incapaz de resolvê-los; estava sempre distante, no seu mundo fora do tempo e fora do espaço reparável”.
O caso da compositora, pianista e pedagoga Odette Gartenlaub (1922-2014) é sui generis. Pianista, aluna da legendária Marguerite Long, entre outros insignes pianistas-professores, obtém o primeiro prêmio por unanimidade no Conservatório Superior de Música de Paris e é laureada no Concurso Internacional Gabriel Fauré. Estudou composição com mestres respeitados em França e em 1948 obtém o Primeiro Grande Prêmio de Roma de composição, atribuído pelo Conservatório. A láurea a faz estagiar três anos na famosa Villa Médicis em Roma. Importa considerar que, por ser de ascendência judaica, foi “cassada” do Conservatório através de vexatória carta do então Diretor, Claude Delvincourt, seguindo instruções do Ministro da Educação Nacional, que rezava: “é conveniente não manter ou admitir no Conservatório nenhum aluno judeu” (25/07/1942). Faz-se necessário mencionar o fato, pois Gartenlaub passaria anos difíceis, “excluída do Conservatório e impossibilitada de prosseguir seu caminho”, como afirma Lechner-Reydellet. Correndo riscos, Olivier Messiaen escreve-lhe quatro cartas, de 16 de Setembro de 1944 a 13 de Janeiro de 1945, para que retorne aos estudos. Odette Gartenlaub não responde devido “aos anos de sofrimento que deixaram uma incomunicável dor, um sentimento de abandono”, como afirma a autora.
Michel Fano, engenheiro de som, compositor e realizador, foi aluno de Messiaen em sua classe de estética e de análise musical no Conservatório de Paris entre 1950 e 1952. Em 1972 realizou com Denise Tual um documentário sobre o compositor: Messiaen et les oiseaux. Fano afirma que o filme é mais do que um documentário. “Buscamos reencontrar um ‘Messiaen’ ao longo de sua vida com suas diferentes fontes de inspiração”.
Do regente, compositor e pedagogo Jean-Sébastien Béreau, atente-se a uma observação sutil. Ensaiava Oiseaux Exotiques quando foi interrompido por Messiaen, que observou: “Está muito rápido”. Volta a ensaiar e Messiaen ainda considerou rápido. Béreau dirige-se ao compositor, a observar que estava a seguir suas indicações escritas na partitura, recebendo a seguinte resposta: “Os movimentos metronômicos são apenas uma indicação, jamais uma obrigação! Tem-se de considerar o lugar, a acústica, os músicos. Aqui, neste lugar, está muito rápido”.
Bruno Ducol, compositor, sente o legado do Mestre em suas criações musicais, que exploram lugares distantes: “Voltando hoje sobre os passos de minha geografia pessoal, constato em seus planos inúmeros segmentos que recortam, independentemente das correntes artísticas, as perspectivas de Messiaen”.
O aluno Iradj Sahbaï, prêmio de composição em 1975 na classe de Messiaen, expõe minucioso e substancioso estudo a explicar “A métrica grega segundo Messiaen” e “A rítmica hindu segundo Messiaen”, dois importantes contributos entre os depoimentos. Em outro capítulo do livro, Iradj Sahbaï, músico francês de origem persa, há o comentário de fato real que obliterou durante décadas outras tendências composicionais em França, mormente em Paris, e que, hélas, perdura: “a busca a todo preço do jamais ouvido ou escrito dominava a atmosfera musical da época e, inexperiente, mas de maneira sincera, eu seguia o fluxo da moda, frequentava todos os Festivais de música contemporânea, cujo lema era uma prioridade básica: fazer tábula rasa do passado”.
Camille Roy, aluno de Messiaen no Conservatório de Paris, obteve em 1961 um Primeiro Prêmio de análise musical. Produtor e Diretor de várias instituições, afirma: “Messiaen foi descobridor de talentos, mas um inquieto, não um doutrinador. A mais bela prova da incrível fecundidade desse ensinamento é, talvez, a obra de Gérad Grisey, que podemos considerar como o moderno continuador de Jean-Philippe Rameau…”.
Adrianne Clostre (1921-2006), compositora de mérito, frequentou de 1947 a 1950 o curso de estética e análise musical de Olivier Messiaen no Conservatório de Paris. Em conferência aos 10 de Dezembro de 2002 na Universidade Sorbonne Paris IV, Adrianne Clostre faz relevante observação: “A paixão de Messiaen pelos pássaros! Tinha orgulho de seu saber e do título de ornitólogo, que teve origem em sua espiritualidade. É fácil considerar o pássaro como símbolo do Divino, fato a ele atribuído não apenas pela leveza, sua inacessibilidade e o espaço celeste no qual evolui. Quando um canto de pássaro intervinha na música, na 6ª Sinfonia de Beethoven ou no 2º ato de Siegfried, não é o canto do animal: o compositor imprimia sua marca humana, transformava-o. Em Messiaen, é o contrário: o pássaro imprimia sua marca sobre a música, a natureza inspirava diretamente o compositor, sem transformação”.
Gérad Gastinel, compositor com obra vasta e qualitativa, frequentou mais de cinco anos a classe de composição de Olivier Messiaen. Um relato merece ser transmitido ao leitor: “Messiaen sentia-se à vontade no Instituto ou diante de ministros durante recepções oficiais, assim como no coração de uma floresta a ouvir os pássaros ou no meio de estudantes. Se parecia aberto aos outros, também poderia estar fechado na ‘torre de marfim’ de seus pensamentos. Sempre humilde e, entretanto, sensível às honrarias, reservado mas plenamente consciente de seu valor e de sua força, esse personagem estranho, único e profundamente complexo escondia sem dúvida, sob sua simplicidade desconcertante, uma vontade inabalável de independência. No mesmo momento que fixava sobre nós seu olhar pleno de gentileza, poderia igualmente estar nos contemplando como se fôssemos de um outro mundo”.
Jean-Louis Petit, compositor e regente, também estudou com Messiaen, entrando em 1959 no curso de filosofia musical ministrado pelo autor do Catalogue des oiseaux no Conservatório de Paris. Relevante segmento de seu testemunho que a autora deixou como derradeiro, possivelmente para reflexão. Jean-Louis Petit focaliza com precisão o nocivo “policiamento”, a contagiar mentalidades em formação ou, o que é pior, figuras já na idade madura. Relata Jean-Louis Petit efeitos da reapresentação de importante criação de Olivier Messiaen, Turangalîlâ-Symphonie para piano, ondas Martenot e grande orquestra: “Para essa reapresentação fomos convidados. Entre alguns alunos compositores e antigos discípulos, a maioria adepta ferrenha do serialismo puro e da eletroacústica. Era de bom tom manifestar uma certa condescendência, desprezo até, em relação à música de Messiaen, qualificada de ‘xaroposa’! Entre confrades, professores de composição ou de matérias outras do Conservatório Superior de Música de Paris desdenhavam Messiaen, apontando-lhe o dedo quando este falava de SUA linguagem musical, como se essa linguagem não pertencesse somente a ele, o descobridor e o criador exclusivo. Inveja? Recalques interiorizados e mal digeridos? Não saberia responder!” Jean-Louis Petit ainda observa de maneira contundente: “Em nome de uma ilusória modernidade, na realidade de um conformismo primário de base, não posso compreender, tampouco admitir a rejeição sistemática de certos compositores de tudo que foi feito para a grandeza, o interesse, o sabor da música ocidental em geral e da escola francesa em particular, notadamente a riqueza do verticalismo dos sons, a diversidade de timbres e ritmos, a engenhosidade do contraponto e da polifonia, o aprofundamento na arte popular, exclusividade de certos povos, encontráveis precisamente na música de Messiaen sob a forma de uma tradição milenar em uma época precisa, através do pensamento metódico e criativo de uma só pessoa”.
In adendo ao livro “Messiaen – l’empreinte d’un géant”, não analítico, diga-se, mas a trazer elementos fundamentais à compreensão das escolhas e preferências de Olivier Messiaen, assim como seu didatismo, mencionarei José Antônio de Almeida Prado (1943-2010), que frequentou como ouvinte os cursos de Olivier Messiaen, de Outubro de 1969 a Maio de 1973, apesar de não constar da lista das classes do compositor estabelecida por Jean Boivin (“La classe de Messiaen”, Mésnil sur l’Estrée, Christian Bourgois, 1995), motivo possível de sua ausência entre os depoentes. José Francisco Bannwart defendeu em 2011 tese de doutorado na Université Paris-Sorbonne-Paris IV, sob o título: “La musique religieuse pour piano d’Almeida Prado”. Participei do júri que, após pormenorizado debruçamento, louvou a qualidade da tese.
Testemunho de José Antônio de Almeida Prado é anexado ao texto da tese e “acrescentaria” um depoimento a mais no livro em apreço: “Messiaen me fez trabalhar o samba brasileiro, colocando-o simplesmente como ritmo, sem pensar no samba, em nada a trabalhar uma hora a semicolcheia, passando a ser colcheia pontuada, outra hora a fusa e começar a trabalhar essa frase rítmica transformando, destruindo a sua identidade original, até chegar a um outro objeto rítmico que não é mais samba, mas uma outra coisa. É a desconstrução. Isso ele fez de tal maneira que não houve nenhum outro aluno importante que não tenha sofrido essa influência de Messiaen. A riqueza com que Messiaen analisou a Sagração da Primavera, de Stravinsky, a ponto de o próprio Stravinsky dizer: ‘Eu não sabia que era tão interessante assim’. É o que Lacan fez ao ler Freud. Ele releu Freud seriamente vendo como poderia ser nos dias de hoje. É o que fez também Santo Tomás de Aquino quando leu o pagão Aristóteles, tirando-o do paganismo e cristianizando-o. Então, essa é a lição de Messiaen”. O Pe. Bannwart afirma em sua tese: “Uma das especificidades da música religiosa de Almeida Prado é que ela é ‘católica’, ligada ao seu envolvimento com a Igreja Católica. Embora as fontes nem sempre sejam as mesmas, o percurso dos dois compositores nessa relação fé-música pode se cruzar”. Fui dedicatário de várias obras de cunho religioso de Almeida Prado: Três profecias em forma de Estudo (1988) e Quatro Corais para piano (1995-1996), apresentados em primeira audição em Potsdan (Alemanha Oriental – antiga DDR) em 1989 e em Gent (Bélgica) em 1996, respectivamente.
Conhece-se pouco Messiaen no Brasil. Grandes intérpretes o tem reverenciado através de apresentações e gravações e no YouTube há inúmeras composições do Mestre francês. Mereceriam ser visitadas. Todavia, Messiaen continuará a sofrer avaliação polêmica. Para aqueles ligados às tendências que proliferaram em França a partir do fim da Segunda Grande Guerra, entre as quais as que exploram a eletroacústica em suas múltiplas derivantes, Messiaen é entendido com desconfiança, pois a apresentar propostas que não atenderiam à utilização de novos recursos e processos sonoros decorrentes. Para a maioria dos intérpretes de Fauré, Debussy e Ravel, a obra de Messiaen é pouco frequentada. Apesar de ter sido um grande Mestre de tantos músicos que permaneceram e permanecem atuando, seria possível entender que o “enclausuramento” a que se propôs, fidelíssimo às suas teorias, tenha obliterado caminho aos pósteros. Segui-lo seria considerado imitá-lo? Talvez…
In the third and final post about the book “Messiaen – l’empreinte d’un géant”, by the pianist and writer Catherine Lechner-Reydellet, we resume the testimonies on the composer given by those who knew him. I take the liberty of including in this post a testimony by the Brazilian composer Almeida Prado (1943-2010) who, though not mentioned in Reydellet’s book, according to his own words attended Messiaen’s classes as a listener from 1969 to 1973 and whose works received considerable influence from his master.
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