“A execução e a obra”
Realizar uma obra musical é, para o intérprete,
encarnar a forma temporal,
que não é ainda que ideal, na realidade da duração.
A obra escrita, diríamos, não é senão essência, não existência.
Gisèle Brelet
Na década de 1980 tive a oportunidade de ler alguns capítulos de “L’interprétation Créatrice”, da musicóloga francesa Gisèle Brelet (1915-1976). Um colega me emprestou um dos compêndios, mas, apesar do grande interesse, devolvi-o no momento oportuno, pois tenho o hábito de assinalar conceitos que me atraem e marcar nas páginas finais de um livro nº da página e mínima referência que me facilite acessar novamente o tema quando se fizer necessário. O reencontro definitivo ocorrido ultimamente com o compositor Willy Corrêa de Oliveira tem sido extremamente prazeroso. Temos trocado cópias de CDs históricos e filmes, partituras, assim como livros que mantemos em duplicata. Recentemente ofereceu-me os dois volumes de Gisèle Brelet, “L’interprétation créatrice” (Paris, Presses Universitaires de France, 1951).
A abrangência dessa magnífica obra estende-se a todas as possibilidades da interpretação de uma composição, ao menos até a metade do século XX. Aspectos subjetivos, filosóficos, temporais e práticos desse entendimento, obra composta e sua execução são explorados com absoluta competência pela autora. É admirável a fluência do texto, rigorosamente acessível a qualquer leitor, apesar da densidade temática, fluência essa que praticamente esvaiu-se nas penas de tantos musicólogos a partir das últimas décadas.
Dividirei em dois blogs alguns dos temas centrais do primeiro volume, fazendo o mesmo com o segundo tomo no próximo semestre. No espaço a que me proponho seria impensável tratar de todos os posicionamentos abordados nesse amplo leque aberto pela autora. Selecionei alguns tópicos desse primeiro volume, que possibilitam entender a relação intrínseca, umbilical, indispensável e única entre compositor e intérprete. Obviamente Gisèle Brelet pensa sempre no alto nível qualitativo dessa relação.
Como premissa, Gisèle Brelet diferencia as artes, situando a música e a dança como artes do tempo e as outras, entendendo-as como inertes, e “cujo objeto criado faz facilmente esquecer a ação criativa”. Apreende a essência do entrosamento criação-interpretação, tida como harmonia preestabelecida. A obra escrita estaria abstratamente qualificada, estando reservado ao intérprete dar a ela a existência mais adequada. “Nas artes do espaço, a realidade qualitativa da obra já está exposta: a obra é um objeto completo, um espetáculo por si mesmo acabado”, segundo a autora.
Numa das muitas abordagens sobre a extensão do intérprete, Brelet afirma: “O que é necessário reter de toda execução particular é o ensinamento universal que dela se depreende, a ligação necessária entre subjetividade e realização. A obra musical não pode viver sem ser adotada interiormente pela personalidade profunda do intérprete”.
Brelet tem posição firme a respeito da execução da música antiga. Ao citar Jacques Handschin (1886-1995), musicólogo suíço para o qual “cada tipo de música se relaciona com um certo tipo de homem”, a autora observa: “Que a música antiga seja exatamente reconstituída na realidade acústica, que ela soe acusticamente como em outros tempos, ela soará emocionalmente de maneira diferente para nós. Mais precisamente, se admitimos que a cada estilo musical corresponde um estilo de execução, este, mesmo reconstituído, nos distanciará mais do que nos aproximará do estilo musical ao qual ele foi primitivamente atrelado”. Faz-me lembrar o texto que escrevi para o encarte de minha gravação ao piano da integral para cravo de Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Dizia que a única interpretação a seguir a tradição através da oitiva vem da transmissão professor-aluno ao longo do século XIX, pois, desativado o cravo durante mais de dez décadas, todo o repertório para o instrumento automaticamente foi estudado e praticado por pianistas. O silêncio de mais de um século teria fatalmente cortado para os cravistas o elo dessa transmissão oral e sonora. Tiveram que buscar nos tratados a “possível” interpretação de um repertório que se transferira para o piano. Gisèle Brelet, ao se referir aos estudiosos dos vários períodos históricos, afirma: “O musicólogo não tem o direito de exigir do intérprete que ele se conforme, na execução da música antiga, com os dados da história musical. O executante deve, sim, não negligenciar esses dados; mas é a partir de seu sentimento musical que ele deve fundamentar-se para construir uma interpretação moderna e nova, utilizando livremente os dados históricos”. No mesmo contexto, observo que inexiste absolutamente aquilo que adeptos da interpretação da música antiga denominam “autêntica”. Como assinalamos, perdida a oitiva da música de cravo durante mais de um século, ela tem sido dignamente executada por magníficos intérpretes cravistas, mas, frise-se, reconstituída. Imperativo se torna a observância da mensagem contida na partitura.
De interesse a diferenciação que Gisèle Brelet faz de duas categorias de executantes, o músico e o virtuose. Para o primeiro, a autora considera que “há intérpretes que buscam, durante a atuação, salvaguardar a riqueza potencial da obra em si; sabem a contingência de toda execução particular e procuram uma espécie de interpretação universal, onde a personalidade do executante se apaga diante da obra; e a execução é para eles um ato de respeito, devendo limitar-se a encontrar o pensamento do compositor, ou seja, essa pluralidade de realizações possíveis que cercam a criação: são os músicos por oposição aos virtuoses que são executantes em toda a força do termo, entenda-se realizadores”. Nota-se uma preferência de Brelet pelo virtuose: “Há uma qualidade particular no virtuose e independente dos dons propriamente musicais: a necessidade e o gosto pela exteriorização. Parece-me que a obra, uma vez compreendida musicalmente, possa ser executada pelo músico ou pelo virtuose. Para o músico bastam a estrutura apreendida da obra e a sonoridade ideal possível… o virtuose, munido de autoridade e doçura, convence a todos que o escutam levando-os a essa realização infinitamente concreta que ele oferece de uma obra, fruto e recompensa de seu consentimento de exprimir em sua execução”. Implica essa ideia na explicação de seu opposite, pois para a autora o músico basicamente “não se preocupa com o público”. Gisèle Brelet tece muitos outros comentários pertinentes sobre as duas categorias de intérpretes.
“L’Interprétation Créatrice” foi publicada em 1951. Era nítido nesse período, por muitos estudiosos considerado como a “geração de ouro”, a diferenciação que se fazia entre o músico e o virtuose. Consideremos as filmagens de pianistas em apresentações solo. Praticamente havia uma só tomada fixa da imagem, e a execução transcorria a apresentá-los com poucos gestos.
A indústria cultural tem estimulado a “venda” da imagem. Câmeras tudo focalizam, fixando-se prioritariamente no rosto e no gestual do intérprete. Essa concepção, em constante aprimoramento, privilegia executantes que, sabendo-se filmados, exacerbam nas contrações faciais e gestuais e nos excessos da virtuosidade. Nas últimas décadas, pianistas filmados em grandes concursos pianísticos mostram-se reservados no gestual. Se a notoriedade advém, mercê das qualidades inalienáveis dos vencedores, muitos deles, virtuoses, sabedores dessas câmeras que tudo fixam, exageram in extremis os vários componentes de uma apresentação, privilegiando a imagem e buscando a transferência para o ouvinte de emoções sentidas. Há nesse posicionamento uma nítida concorrência, pois muitos assim procedem e o gestual tem-se acentuado. Essa postura mais se pronuncia entre pianistas do Leste Europeu ou do Extremo Oriente. No caso dos virtuoses, tantas vezes elementos intrínsecos de uma partitura poderão sofrer alterações ad libitum que agradarão o público, mas que representam um equívoco grave. Contudo, da geração intermediária, temos intérpretes músicos extraordinários. Seria possível acreditar que, estivesse a viver nos dias atuais, Gisèle Brelet tivesse uma outra apreciação dos virtuoses.
No próximo blog complementarei algumas observações sobre o primeiro volume de “L’Interprétation Créative”, de Gisèle Brelet.
This post addresses the book “L’Interprétation Créatice”, written by the French musicologist and pianist Gisèle Brelet (1915-1973). All aspects of the musical performance – subjective, philosophic, temporal and practical – are covered in two volumes with full competence. The book is totally accessible to any reader despite the complexity of the subject, something hard to say of musicological studies published from the second half of the twentieth century on. For this post I’ve chosen to comment on some topics from the first volume, covering the unique and complex dialogue between composer and interpreter.
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