Gisèle Brelet e a ampla abertura sobre interpretação

Quando uma interpretação é manipulada com o objetivo de se conseguir um efeito particular,
ela deixa de ser autêntica e, por conseguinte, de ser ética.
Daniel Barenboim
(“La Musique est un tout”)

Neste segundo post, a abordar o primeiro volume de “L’Interprétation Créatrice”, a musicóloga francesa Gisèle Brelet estende suas considerações sobre a intrínseca ligação compositor-intérprete. Ao longo das décadas tenho lido literatura específica, contudo acredito ser a obra da autora a que mais penetra na multidiversidade representada pelo imperioso amálgama a envolver a criação e a imprescindível presença do intérprete. Seria lógico supor que os dois livros datem de 1951 e que, a partir da segunda metade do século XX, tenha havido outras possibilidades a envolver o compositor e a interpretação, mercê de processos de expressão musical sempre em curso, como a eletrônica. Contudo, a essência da relação compositor-intérprete permanece intacta quanto à fidelidade da transmissão, exceção clara para intervenções do executante, expressas pelo compositor quando o libera para improvisações ou mesmo propiciando ao intérprete a leitura mais livre.

A imensa prospecção que Gisèle Brelet empreende nessa temática, até certo ponto espinhosa, impede-me de penetrá-la de maneira completa. Alguns aspectos, que entendo de maior interesse para o leitor, serão abordados no presente post.

Segundo a autora, “para determinados intérpretes a inteligência pode matar a espontaneidade dos reflexos – essa exigência do gesto sem a qual não pode haver nem descontração, nem precisão, tampouco vivacidade. A reflexão pode ser inibidora e por vezes se torna muito difícil refazer à vontade a espontaneidade perdida. O problema para a inteligência é o de reencontrar a espontaneidade e de liberá-la para melhores desempenhos. Ao contrário da contração dos gestos, a inteligência deve permitir ao executante descobrir sua atividade mais natural e descontraída”. A autora tece considerações sobre espontaneidade, a dizer que “a execução de uma criança, que vence as dificuldades ignorando-as, aparenta-se à execução de um grande artista, mas entenda-se, ela é apenas um símbolo – símbolo em certo ponto enganoso. À espontaneidade de uma criança, psicológica, opõe-se a do artista, neste caso especificamente artística, diga-se, orientada segundo as exigências de perfeição formal de uma técnica. São duas espontaneidades iguais e contrárias, pois uma não pode se desenvolver que em detrimento da outra. A espontaneidade psicológica da criança não seria conservada pelo artista: ela só pode ser reconquistada sobre um plano diferente e transcendente”. Obviamente, essa criança de que nos fala Brelet é aquela popularmente tida como prodígio. Por mais talentoso que possa ser um miúdo, sua interpretação, mesmo que virtuosística, refletirá o que lhe foi transmitido, ou seja, há forte dose de imitação. Legiões de crianças do Extremo Oriente mostram-se habilíssimas, mas ficaria a pergunta “o que sabem da Cultura Ocidental?” Só o tempo, essa presença indisfarçável, poderá propiciar à criança, já munida de sólido ferramental técnico, a sedimentação que se faz necessária. São aproximadamente 30 milhões de miúdos estudando piano na China!!! O passar dos anos provoca seleção natural, mas legião de pianistas orientais têm “invadido” o Ocidente, excelentes velocistas, nem tanto músicos na acepção.

Gisèle Brelet se preocupa com a solidão do intérprete ao apenas se escutar, encontrando nessa situação o pleno prazer: “É perigoso para o executante muito se ouvir e ter prazer nesse ato, pois corre o risco de preferir seus estados ao seus amadurecimentos; na verdade, o intérprete não tem o direito de se escutar e de contemplar seu tocar, a não ser que, em detrimento de buscar essa audição de si mesmo como ocasião de uma alegria preguiçosa, buscar e encontrar a prova de seu aprofundamento e a confirmação de sua alegria durante a execução”.

Estende seu pensar ao observar “… a técnica, desvinculada de todos os conteúdos, utiliza contornos estanques e invariáveis e não é senão mecanismo; e o executante se esforça em vão por revitalizar sua emoção através de rubatos exagerados que deformam a música – e que nenhum sopro de vida poderá animar. Não obstante, há na técnica, para aqueles que a compreendem, uma virtude de atualidade, um secreto poder de incessantemente regenerar o sentimento musical e de conservar um eterno frescor”.

Gisèle Brelet desenvolve a temática andamento: “Indubitavelmente, certos tempi são falsos e contrários às obras. Mas não se trata de tempo arquétipo, pois o tempo verdadeiro comporta uma certa margem de indeterminação, margem que, precisamente, permitirá ao executante impor à obra o tempo segundo o qual ele a vive e de fazer assim, de sua forma, a forma mesma de sua duração íntima”.

Reiteradas vezes nesse espaço tenho comentado a constante aceleração nos tempi de obras virtuosísticas. Essa constante se mostraria mais evidente nas novas gerações de intérpretes oriundas do Extremo Oriente e do Leste Europeu. A aceleração em quase todas as áreas da vida moderna, os recordes a serem batidos, mormente nos esportes, têm fatalmente influenciado intérpretes de instrumentos solo. Os muitos concursos internacionais de piano têm propiciado essas verdadeiras “olimpíadas” digitais. Tantas vezes o conteúdo musical é comprometido pela necessidade da rapidez em seus limites. A verdade inerente à partitura tem sofrido, hélas, irremediável alteração de parâmetros que, pouco a pouco, são aceitos pelo público e motivo de concorrência entre intérpretes “atletas”. Prioritariamente essa atitude é acompanhada por gestual físico e facial, para gáudio da mídia que fixa imagens de rostos em transe. Com acuidade o notável Daniel Barenboim já escrevia que o ouvido humano não consegue seguir o que acontece em tantas passagens de alta velocidade. Exceções há, e pianistas como os extraordinários Vladimir Horowitz e György Cziffra, mormente o primeiro, souberam aplicar à altíssima virtuosidade elementos essenciais à música, como o controle absoluto da dinâmica, da agógica e da articulação. Fenômenos na realidade.

Gisèle Brelet observa: “O tempo vivido atualiza a forma sonora de conformidade com ambos. Para cada execução nova há um novo reencontro da forma musical e do tempo; e uma realidade sempre nova é prometida à obra musical pela perpétua renovação desse reencontro, onde reside o milagre de sua encarnação”. Continua a autora: “Se o tempo verdadeiro não pode ser aquele que é sentido interiormente pelo intérprete, cada tempo atualiza na obra um aspecto diferente, um conteúdo expressivo que só é visível por ele”. Ratifica a autora, a considerar que “Pode-se dizer que a possibilidade para a obra de se realizar em andamentos diferentes atesta a plurivalência de sua forma e a riqueza de seu conteúdo”. Após considerações a respeito dos tempi rápidos e lentos, questiona: “o que de mais eminentemente expressivo não é um cromatismo lento e de mais brilhante e superficial quando rápido? O cromatismo, sendo lento, pode ser retardado sobre as sonoridades sucessivas e instalar-nos nessas dissonâncias para captar a inquietude interior, mas no movimentos rápido tem-se o luxo sonoro e riqueza das notas de passagem, um élan ininterrupto e não uma instabilidade inquieta”. A depender das possibilidades “físicas” de um intérprete, Brelet observa: “Os executantes, segundo suas aptidões naturais, estão dispostos à rapidez ou à lentidão, buscando imprimir às obras interpretadas caráter virtuose ou expressivo, fazendo prevalecer nelas a vivacidade do ritmo ou a languidez da melodia”.

A autora entende bem próximas a virtuosidade e a improvisação, esta, “triunfo da execução pura, onde o executante ‘fabrica’ a música através de suas forças, cria uma obra musical capaz de viver no ato de sua invenção e mesmo de sobreviver a esse ato”, aquela, “…livre, a serviço da liberdade propiciada pelo texto musical”.

Teria de dedicar inúmeros blogs apenas para o primeiro volume de “L’Interprétation Créatrice”, verdadeira Enciclopédia sobre a interpretação. Não obstante, o leitor poderá, creio, através de dois posts dedicados à obra, aferir a extensão desse monumental aprofundamento realizado por Gisèle Brelet sobre apaixonante tema.

In the second post about the first volume of the book “L’Interprétation Créatice”, the French musicologist and pianist Gisèle Brelet discusses spontaneity in children and adults when performing a piece of music , as well as the issue of “tempi” markings indicated – or not –  by composers and the interpreter’s response to  “temp0″ variations.