Navegando Posts publicados em março, 2007

    Sonatas Bíblicas*

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E o que dizer dos habituais ouvintes
de nossas salas de concerto?
O seu rancor à mudança é realmente surpreendente !
Os seus cérebros obscurecidos não registram
senão certas combinações sonoras, exceção a todas as outras.

Olivier Messiaen

Nascido na Alemanha, Johann Kuhnau (1660-1722) foi um dos mais importantes músicos de seu tempo. Compositor, organista, regente, jurista e escritor, Kuhnau conhecia várias línguas antigas e modernas, tendo, em acréscimo, conhecimentos aprofundados de matemática. Defendeu tese de Direito, tornando-se advogado. Escreveu um romance satírico: Der musicalische Quacksalber (O Músico Charlatão). Ao obter o posto de organista na Igreja de São Tomás, em 1684, instala-se definitivamente em Leipzig, dedicando-se, doravante, quase que inteiramente à música. Em 1701, torna-se Kantor da Igreja, cargo que manteria até a sua morte. Escreveu inúmeras Cantatas e Motetos, assim como obra para teclado.
Johann Kuhnau colocaria a serviço da composição todo um precioso acervo cultural enciclopédico adquirido através de décadas. Após sua morte, J.S.Bach iria sucedê-lo em 1722 como Kantor da Thomaskirche, ou Igreja de São Tomás, em Leipzig, e continuaria a lembrar-se de muitos procedimentos composicionais de seu predecessor. Bach inspira-se em título anterior de Kuhnau para quatro de suas publicações para teclado, denominadas Clavier-Übung. A elaboração de algumas fugas poderia evidenciar uma herança de seu predecessor, assim como procedimentos encontráveis nas danças de algumas suítes. Algumas décadas após o desaparecimento de Kuhnau, a névoa do olvido basicamente caiu sobre sua obra. No ano do bicentenário de sua morte, Romain Rolland, autor do célebre romance Jean-Christophe, escreveria: Johann Kuhnau era possuidor de uma profundidade de sentimento, e ao mesmo tempo de uma beleza quanto ao tratamento formal, uma graça feita de força e claridade, que ainda hoje poderiam tornar o seu nome popular.
Entre as obras de Johan Kuhnau, as Sonatas Bíblicas, publicadas em 1700, representam um exemplo da riqueza composicional do autor. Alguns aspectos mereceriam um debruçar mais aprofundado. Trata-se do primeiro exemplo de uma obra programática monolítica escrita para teclado, e isto é essencial. A História evidencia, em pleno século XIX, Liszt e Berlioz sofrendo forte inclinação à música de programa. Kuhnau, após apresentar, em alemão, um texto introdutório no qual posiciona o enredo de cada Sonata, insere na partitura frases em italiano, a conduzir, a cada cena, o entendimento do intérprete e do ouvinte. Haveria a nítida vontade de influenciar a emoção, pois o autor acreditava que as frases poderiam estimular a compreensão melhor da obra. Os títulos das Sonatas já predispõem o auditor ao clima proposto pelo autor: Il combattimento trà David e Goliath, Saul malinconico e trastullato per mezzo della Musica, Il marittagio di Giacomo, Hiskia agonizzante e risanato, Gideon Salvadore del populo d’Israel e La tomba di Giacob. J.S.Bach, quatro anos após, aos 19 anos, compõe o Cappricio sopra la lontananza del suo fratello diletissimo, criação do mesmo gênero, pois contém igualmente um programa.
As sonatas foram escritas para teclado, klavier, sendo que a primeira edição, de 1700, apresenta uma gravura na capa de rosto. Vê-se uma sala ampla e austera e uma mulher com as mãos sobre um teclado de órgão de ensaios ou de estudos, pois de dimensões reduzidas. Este fato teve diversas leituras. O klavier foi entendido pelos intérpretes em um sentido mais amplo e as Sonatas Bíblicas passaram a ser executadas ao órgão, ao cravo e ao clavicórdio. Desde os anos 50, as Sonatas têm sido gravadas nesses três instrumentos.
Necessário se faz evidenciar a estrutura formal da obra, que antecipa determinadas conquistas de K.P.E. Bach quanto à elaboração da Sonata. Pode-se, contudo, observar em Kuhnau uma notável liberdade de procedimentos quanto à forma e aos gêneros conhecidos no período. Danças que procedem das Suítes; recitativos – alguns longos – que são encontrados nas Cantatas; Corais luteranos, como Aus tiefer Not schrei’ich zu dir (Do fundo de minha angústia) e O Haupt voll Blut und Wunden (Oh! fronte ensangüentada e ferida); fugatos apropriados às cenas; fugas, entre as quais a extraordinária da Segunda Sonata, plena de liberdade de expressão, inserida no episódio inicial La tristezza ed il furore del Re, onde não faltam recitativos e passagens tecladísticas rápidas, tornando esse segmento um rico exemplo da escrita de Kuhnau. As Sonatas Bíblicas, constituem pois, uma verdadeira enciclopédia dos sentimentos. Coragem, dúvida, desconfiança, amor, rancor, desespero, medo, alegria, tristeza, rudeza, delicadeza e a crença em Deus, sempre presente. Sob outra égide, mas a caracterizar toda a epopéia, em sentido amplo, os instrumentos que se fazem presentes, nomeados ou não, nas frases do programa em italiano: harpa, tambores, trompetes, conjunto de instrumentos durante as festas, e o gesto da dança a dimensionar alegrias. Sentimentos e timbres povoam toda a extensa obra.
Por que interpretar as Sonatas Bíblicas ao piano? (Verificar gravações J.E.M., De Rode Pomp – concertagenda – vrij 27 April). Obedecendo-se rigorosamente ao texto, as Sonatas Bíblicas possibilitam, igualmente, uma leitura ao piano, mercê das qualidades polifônicas, orquestrais e timbrísticas desse instrumento. Considerando-se o fato de que as obras de F. Couperin, J-P Rameau, D. Scarlatti, J.S.Bach, Padre Soler, Carlos Seixas, entre outros, escritas para cravo, têm sido exaustivamente interpretadas ao piano desde o século XIX, a inserção das Sonatas Bíblicas de Kuhnau em leitura pianística estaria a oferecer uma opção a obedecer logicidade. Há que se compreender que existe, largamente consolidada, uma tradição real interpretativa de todo o repertório cravístico executado inicialmente ao pianoforte e, após, ao piano, que passou para esses instrumentos sonora e oralmente desde o final do século XVIII quando, mercê da Revolução Francesa, o cravo, instrumento monárquico, foi banido do Conservatório de Paris. Felizmente, o cravo veio a ressurgir nas fronteiras dos séculos XIX-XX. Em meados do século passado surgiriam fortes correntes a defender uma “reserva de mercado” relativa à música antiga, que doravante deveria ser entregue aos instrumentos de época, ou às suas réplicas. Essas tendências persistem e são benéficas sob muitos aspectos. Contudo, como bem observa o notável musicólogo francês François Lesure ( 1923-2001 ), que prefaciou o CD duplo contendo a integral para cravo de Jean-Philippe Rameau executada por mim ao piano (Gents Musikall Archief vol.8): O tempo do barroco integrista passou, o uso de instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos. Um dos maiores biógrafos de Rameau – Cuthbert Girdlestone – defendeu com força a idéia de que a música de Rameau ‘ganha ao ser transferida para o piano’ e que sua escrita encontra nesse instrumento, de uma melhor maneira, o seu dinamismo.
Em 2004, Coimbra festejou o terceiro aniversário de nascimento de seu filho ilustre, Carlos Seixas (1704-1742), o nome mais significativo do Barroco português. Três recitais foram agendados pelo organizador, Professor Doutor José Maria Pedrosa Cardoso, e apresentados na Biblioteca Joanina e na Capela Real da Universidade de Coimbra, abrangendo Sonatas de Carlos Seixas interpretadas ao órgão ( José Luis Gonzáles Uriol, Zaragoza ), cravo ( Ketil Haugsand, Colônia ) e piano. Tive o privilégio de ser o pianista. Essa interação provou o convívio desses três instrumentos frente ao repertório tecladístico do século XVIII. Poder-se-ia acrescentar que as Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau têm, igualmente, essa dimensão maior, a abranger a diversificação instrumental.
Apesar de, infelizmente, pouco freqüentadas, as Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau representam uma síntese de procedimentos e o exemplo perene de uma obra na qual o espírito acentuadamente eclético do autor traduz essa presença enciclopédica, característica de todo um período bem amplo.

Born in Germany, Johann Kuhnau (1660-1722) was one of the most accomplished musicians of his time, also talented as linguist, mathematician and lawyer. A predecessor of J.S.Bach as Kantor of St. Thomas Church in Leipzig, his most celebrated work – the Biblical Sonatas – is the first example of programme music for keyboard in an extensive work and, as such, virtually unparalleled before the 19th century. Originally written for keyboard, since the mid-twentieth century it has been recorded on the organ, the harpsichord and the clavichord. Unfortunately seldom performed or recorded, the Biblical Sonatas are a synthesis of musical procedures and an example of Kuhnau’s mastery of an array of styles and forms.

* O texto está a ser publicado, basicamente nesta formatação, na Bélgica, França e Portugal.

    Do indivíduo ao coletivo
    Sísifo de Ticiano

E ao homem celestial que me condena
Dizei que houve em mim erro, mas não crime.

Ovídio

A causa do castigo a que foi submetido Sisuphos, o fundador mítico de Corinto, tem várias versões. A punição é consagrada pela mitologia. Condenado por Zeus, estaria destinado a levar eternamente uma enorme pedra ao cimo da montanha e, antes que esta lá chegasse, motivo não controlável a fazia rolar morro abaixo, obrigando-o a retomar a tarefa. Qual o seu pensamento ao subir levando a pedra colossal e qual aquele que o levaria a descer, sem esforço, o nosso imaginário está a enriquecer há milênios, à mercê dos contextos.
São tantos os sísifos existentes, que particularizá-los em suas trajetórias repetitivas e dramáticas transporta-nos a uma triste realidade. Mauro Chaves, na Introdução de A Saga das Mãos, de João Carlos Martins (Campus, São Paulo, 2007), compara o pianista a Sísifo, mercê de seus recomeços pianísticos, após dramas físicos passados. Hoje, atuando como regente, parece ter sido perdoado pelos deuses. Milhares de sísifos diariamente transitam pela cidade durante horas, nessa rotina que os faz permanentes em ônibus, trens, metrôs, sem a esperança de melhora, enquanto deuses oportunistas de um Olimpo sem glória proliferam nas moradas da vida política. Há também sísifos drogados, alcoólatras, fumantes e jogadores do azar, que tentam um recomeço digno, mas sucumbem à triste sina do levar a pedra.
Em meados de 2006, escrevia a alguns amigos, relatando a saga de um sísifo exemplar. Conheço-o há muitos anos. É um homem simples, a viver o drama da repetição sem qualquer possibilidade de esperança. Personagem atemporal, devido às agruras, tem aparência mais envelhecida, a esconder a idade real. Cabelos brancos desalinhados, tez escura pelas intempéries, sulcos largos e profundos a percorrerem um rosto sofrido, corpo emagrecido e recurvado a ocultar uma cabeça quase sempre inclinada que, ao erguer-se, expõe um olhar triste e conformado.
Possivelmente morador de rua, o Sisuphos percorre vários bairros da Zona Sul: Campo Belo, Brooklin, Vila Olímpia, Itaim, Vila Nova Conceição. Já o vi muitas vezes em alguns lugares dessa extensa região. Quase que diariamente sobe a minha rua em direção à Av. Santo Amaro. Não há um horário fixo. Durante as horas quentes, em que o sol mostra-se implacável, repousa, dorme na calçada e, ao acordar, faz anotações em uma folha. No inverno, vestido de velhos agasalhos rotos, encolhe-se e adormece nos mesmos locais. A chuva é como se não existisse, pois o nosso Sisuphos absolutamente desconhece-a. Seria mais um dos milhares ou milhões de clones desse personagem mítico personificado no presente, não fosse a pedra metamorfoseada em carrinho de construção, a tipificar o estado pleno do exemplo. O Sisuphos está sempre a sustentar, com as duas mãos enervadas, escuras e calejadas, o velho carro de mão, igual a esses outros em ferro e com roda de borracha, que vigorosas mãos da construção civil utilizam todos os dias no transporte de material apropriado. Diferencia o nosso Sisuphos Paradigma o fato de carregar sempre as mesmas coisas. Um amigo – aquele que mensalmente corta os meus ralos cabelos há tantos anos – a uma observação que fiz, disse-me que já notara a imutabilidade. Sim, o Sisuphos leva consigo, dia e noite, seu destino já traçado. Basicamente, nada é retirado de seu veículo, tampouco nele acrescentado. Papelão amarrado com fitas de plástico, sacos de supermercado contendo segredos, um velho par de tênis, outros papéis e mais objetos compõem os seus pertences. Serviriam de abrigo quando a noite desce? O certo é que pesam, e muito, sobretudo após aguaceiros. Por vezes, e isso o Sisuphos primeiro não fazia pela qualidade do material de sua pena, o Paradigma retira tudo do carrinho, atravessa a rua com ele vazio, e transporta novamente os objetos, amarrando-os ao veículo, após outros passos para lá chegar. Vê-lo subir a inclinação da Jesuíno Maciel a partir da Av. Santo Amaro, sem aceitar qualquer ajuda no mister, é a constatação da revivificação do mito de Sisuphos em sua plenitude.
Ao longo dos anos, dele me aproximo. Se aceita umas moedas, uma camiseta ou um agasalho, sempre o faz fixando-me com um olhar que já percorreu, durante milênios, no desalento, outros olhares, outros lugares. Um sorriso apenas esboça-se, e quase que imperceptivelmente ouve-se um “obrigado”. Nada mais aceita. Recusa alimentos, pois determinados bares lhe oferecem algo que o sustenta. Nesses recantos, sempre os mesmos, encontra bons samaritanos a ajudá-lo. Certo dia perguntei-lhe o nome. Não se recusou a dizê-lo, sem mais.
Chamou-me a atenção o Sisuphos quando, ao regressar da feira-livre que é montada aos sábados no Campo Belo, vi-o em sua rotina. Dois indivíduos, a aparentarem má índole, passaram por ele dirigindo ao ancião veementes impropérios. Largou o carrinho, olhou para os dois e proferiu outras palavras, que não entendi. Caminhei até o agora trêmulo Sisuphos tentando reconfortá-lo. Como sempre, ouvi um surdo “obrigado”. Logo após, seguiu a sua sina. O Sisuphos original desconhecia esses outros constrangimentos.
Diferentemente daquele da mitologia, seu fim chegará. Assim como Fênix, os sísifos sempre estarão renascendo após incandescidos. Já o Sisuphos Paradigma, esse é mais raro, e seu carrinho-pedra imutável será a certeza de que pouco sabemos sobre o interior de cada homem. Mistério insondável…

The myth of Sisyphus.
Sisyphus today: unskilled workers, outcasts, drug addicts, gamblers.
The paradigmatic Sisyphus.

    Os posicionamentos antagônicos

Todo en la vida es forma,
Proceda de ella y deriva hacia ella,
Tanto en lo concreto como en lo imaginario.

Juan Carlos Paz

Em uma tarde quente, após as aulas na Universidade de São Paulo, caminhava em direção ao carro, quando um aluno vindo ao meu encontro perguntou: A música pode traduzir sentimentos? Quis saber o motivo da pergunta que veio imediato, pois mostrou-me Do Belo Musical, de Eduard Hanslick (1825-1904). O tempo estreito fez-me buscar na dialética uma explicação que contemplasse a oposição e a possível harmonia das contradições.
Hanslick constrói uma argumentação contrariando a estética em vigor, romântica, que externava em seus estertores a apoteose das emoções. Acreditava que os apelos ao sentimento não seriam capazes de “resultar em uma única regra musical”, apesar de ter a convicção de que o belo está sempre “baseado na evidência imediata do sentimento”. A obra foi traduzida para o Português e editada pela UNICAMP, Campinas,1989. Dela, fiz uma resenha, publicada no “Cultura”, de “O Estado de São Paulo”, em 10/03/1990.
Ao escrever em 1854 o trabalho de estética em questão, Vom Musikalisch-Schönen, estava a rigor opondo-se à função do drama no desenvolvimento da ópera wagneriana. Amigo de Brahms, o seu alvo essencial seria Wagner. Não entendia Hanslick que o sentimento identificava-se com determinados conteúdos da música. Por logicidade, Liszt e Berlioz, que praticaram a música programática, estariam inseridos na essência dessas críticas. Emoção, sentimento e música programática, por conseqüência, seriam o cerne crítico dessa visão arguta de Hanslick, que no futuro teria ampla aceitação entre aqueles mais simpáticos ao puro formalismo. A partir das últimas décadas, a proliferação de tendências composicionais “acataria” essa idéia de Hanslick, guardando-se as devidas exceções.
Em plena Idade Média o canto gregoriano escrito nos espessos antifonários já apresentava, em determinados manuscritos, neumas, que eram os elementos da notação gregoriana, em muitos casos tipificados, indicando intenções outras expressivas, dependendo do contexto da frase. René Descartes, na célebre obra Compendium Musicae, escrito entre 1618-19, no capítulo Huius obiectum est sonus (Seu objeto é o som), colocaria uma frase exemplar: Finis, ut delectet, variosque in nobis moveat affectus (Sua finalidade é a de agradar e de provocar em nós afetos variados).
Quase um século após, em 1713, no prefácio das Pièces de Clavecin ( primeiro livro ), François Couperin ratifica, numa posição pessoal, essa primazia da emoção: j’aime beaucoup mieux ce qui me touche, que ce qui me surprend ( eu amo muito mais o que me comove do que aquilo que me surprende ). Se Jean-Philippe Rameau conheceu, na elaboração de seus trabalhos teóricos, os princípios matemático-musicais de Descartes, não é menos verdade que no que se refere à emoção, os recitativos de suas óperas, ou peças como Les tendres plaintes, Les soupirs, L’entretien des muses ( consultar gravações J.E.M. russianDVD.com , acessando os tracks 20,22 e 25 ), testemunham esse tributo à expansão dos sentimentos. Nesse aspecto, o próprio roteiro dos títulos da música descritiva estaria a apontar evidências insofismáveis.
Percorrendo-se a trajetória histórica da Música, seria transparente a dualidade constante, o fluxo que mantém vivas a abstração e o drama, ou a chamada música absoluta ou pura contrapondo-se à presença das paixões e do sentimento humano. Se certos embates foram estéticos, outros tiveram o viés ideológico, ou mesmo se completariam. No século XVIII em França, os adeptos das óperas de Jean-Baptiste Lully se debateriam com os admiradores de Jean-Philippe Rameau. Este teria em Jean-Jacques Rousseau e alguns enciclopedistas, ferrenhos combatentes, que desencadeariam a chamada Querelle des Bouffons. Se bem que Rousseau, músico abissalmente distante do grande pensador que foi, visasse, e muito, o homem Rameau, estava em questão a comunicação “do povo” que a opera-buffa italiana provocava entre os ouvintes, antepondo-se à “rigidez” da opéra-ballet concebida por Jean-Philippe Rameau entendida como um símbolo monárquico. Tem-se na Querelle… um balão de ensaio a visar a ascensão do povo e a queda da monarquia. O ano de 1789 estava próximo.
O século XIX assistiu à apoteose do movimento romântico. A emoção, tida como elemento fulcral, estaria a impulsionar a criação. Em todos os gêneros, fazem-se presentes os eflúvios românticos, que se espalham pela literatura e pelas artes plásticas. Os compositores, em textos crítico-literários ou na literatura epistolar, vivem a atmosfera plena. Não se constrangem ao externar sentimentos. Os criadores refugiar-se-iam nesse “Eu” íntimo. Adolfo Salazar coloca o egocentrismo como um dos fatos mais marcantes do movimento romântico. Acredito que compartimentar o movimento em pauta não teria a eficácia necessária, por ter ele se estendido até meados do século XX, ininterruptamente, sendo que muitos dos compositores mais ventilados hoje, e românticos, vêm a falecer em torno dos anos 50. Escolas e tendências composicionais as mais diversas surgiram no último século, não impedindo contudo a existência respeitável de correntes tradicionalizantes.
A partitura encerra uma parte da realidade. Ao intérprete, movido ou não pela emoção – contestada ou não a palavra – caberá restituir a realidade “aproximada” original da composição. Não por acaso, François Lesure observa ser o estilo do intérprete a salvaguarda da autenticidade da obra.

Music, emotion and formalism.
The musical milieu, its characters and antagonisms
The performer´s style ensuring the authenticity of a work.