A revisitação das imagens perdidas

Os símbolos urbanos, a imagem da cidade,
os monumentos históricos deixaram de entrar
na composição das preocupações das autoridades.
Mas nunca é tarde para se começar.

Benedito Lima de Toledo

O bálsamo que atenua os tantos interesses de nossa imprensa pareceria residir na crônica. Aqueles que a ela destinaram o resultado de suas observações tiveram e têm olhares os mais diferenciados. Lembrar-me-ia de três do grupo O Estado de São Paulo. Dois já falecidos, Luís Martins e Frederico Branco, escreveram em um período menos conturbado, quando a corrupção e a violência ainda não se afiguravam noticiários endêmicos. Já existiam, mas sem essa virulência que distancia tantos leitores dos jornais e revistas e telespectadores dos telejornais, devido ao quase absoluto trato monolítico e monotemático. Ignácio de Loyola Brandão, em momento mais recente, a partir de 1993, atenuava, com a leveza e o talento de sua pena, as outras múltiplas secções do Estadão.
Quando se recebe um livro, dois aspectos pareceriam transparentes: a inteligência de quem oferece e a possibilidade da leitura por parte do presenteado, ratificando o mérito do primeiro. Ao ganhar de um amigo sensível Postais Paulistas, de Frederico Branco, vieram-me à mente as crônicas do autor, que li durante muitos anos no Jornal da Tarde, de 1970 a 1990. Apesar de ter colaborado de 1980 até 1990 para o Cultura do Estadão, infelizmente desaparecido em sua roupagem de rigor e excelência, jamais cruzei com Frederico Branco nos longos corredores do jornal. Gostaria imenso de tê-lo conhecido. Contudo, lia constantemente suas crônicas, admirando o tratamento bonito e nostálgico de seus textos, nesse regresso ao passado feliz e irremediavelmente sepultado de nossa cidade, sob o aspecto urbanístico, humano, ético ou àquele voltado aos costumes, à maneira de se entender a noite e as suas atrações. Lia sempre, após a densidade das notícias que traduziam o mundo em cores voltadas às sombras. Pensava, fazia-me bem a leitura da crônica como um epílogo – coda, para nós músicos – e iniciava, ou continuava, mais um dia.
Não é fácil buscar no recôndito da memória fatos longínquos ou flashes registrados, mormente quando o presente e o passado se distanciam por décadas. Esses distanciamentos implicam, certamente, approaches diferenciados. O ato de escrever lembrando o passado adquire dimensão maior se houver inteligência, perícia, intuição e reflexão por parte do autor. Em Frederico Branco, essa garantia advém da inexistência, ao menos aparente, de desilusões. Se as houve, seria possível imaginar que elas tenham sido absorvidas de maneira leve, serena e até resignada. Assim entendendo-se, o seu perene regresso ao passado, tão logo algo leva o cronista à recordação, ratifica as intenções. Sob égide outra, proustianamente o olfato o conduz à reminiscência, e os outros sentidos, a diversas lembranças afetivas, mas, frise-se, nostálgicas, devido, é possível, à felicidade vivida nas décadas que se foram. Contudo, a imagem captada pela retina torna-se indelével. É bonito lê-lo admirando a mulher amada, desde a dedicatória da edição primeira: “À Teté, chefe da família e de meu coração”. Jocosamente, ela é citada em determinadas crônicas não como mulher, mas como chefe.
A observação do presente, para Frederico Branco, tornava-se a senda que o levava a percorrer com prazer, afeto e nostalgia os anos da juventude. Primeiras festas, namoros, os cinemas antigos como o Metro, ou o Odeon, onde se sentia deslumbrado; bares, restaurantes, o Ponto Chic, a Salada Paulista, o Chá do Mappin das décadas não esquecidas pela lembrança do cronista. Pormenoriza-se nos freqüentadores, personagens típicos em seus trajes bem tratados, falas e preferências.
Ao rememorar outros bares e barzinhos, como a Cervejaria Franciscano (fundos), o Bar Municipal, o Picadilly da Marconi, o Barzinho do Museu, na Sete de Abril e o Barbazul, onde evoca os cantares de Cauby Peixoto e Lupicínio Rodrigues. Volta ao presente para, ao referir-se a um badalado bar dos Jardins, observar que “o volume do rock, essa aids da música, era tão elevado que tornava impossível qualquer conversação. Papo, ali, só para quem conhece a linguagem gestual dos surdos-mudos”.
Em determinadas crônicas, o que o leva ao passado é a saída do trabalho, altas horas da noite, após horas de labuta. Ao passar por um local da Barra Funda, lembrar-se-á de “seu” Nestor Pianista, um negro alto e recurvo, funcionário público, que morava num porão do bairro e que gostava de tocar em um velho piano de armário as suas valsas lentas, suas marchas-rancho, acompanhado ou não. O porão onde morava, exíguo, ficava repleto de admiradores. Escreve Frederico Branco a respeito do piano: “como conseguiu comprá-lo e metê-lo na saleta que abria duas janelinhas gradeadas para a rua é coisa que nunca se soube”. Há o Neco-Perneta, palpiteiro e assíduo do Bar e Bilhares Benfica, ou o velho Carotenuto da barbearia Vesúvio. Descreve com precisão, inclusive, as loções, os utensílios e mais as leituras da Gazeta Esportiva, O Dia e a semanal Careta, sempre à disposição dos fregueses. A memória é avivada quando um moderno barbeiro indica penteados diferentes. O sentido bem humorístico pode ser lido nos sósias de Robert Taylor ou de Shirley Temple. As narrações são deliciosas, verdadeiros quadros de humor.
É um crítico compadecido, mercê da fatalidade dos fatos, ou seja, a total degradação da cidade, a destruição do antigo para a construção do moderno. Lamenta os plátanos que se foram e todo o verde e as flores que se estiolaram no tempo e que o encantavam quando percorria tantas ruas e alamedas. É com carinho e até com raro senso de poesia que demonstra o seu amor à natureza, quando está, exaurida e confinada, a viver a era do cimento. Os bondes, como são eles recorrentes ! Tem um afeto especial pelo veículo elétrico. Os trajetos, a alegria de saltar de um bonde aberto, ou nele subir, assim como a maestria de andar nos estribos superlotados. Evocados também são os Camarões, ou bondes fechados.
Postais Paulistas torna-se agradável leitura e importante documento para a compreensão da transição da cidade de São Paulo, tranqüila nos episódios pessoais rememorados, onde se mantinha por longos períodos a tradição. Dimensiona-se, a partir dessa visão, o descompromisso do autor com qualquer outro objetivo que não o de evocar a sinceridade nesses cartões postais de outros tempos.
As crônicas, impecavelmente escritas, foram reunidas em livro editado pela Editora Senac em São Paulo. Está em sua segunda edição, datada de 2002. O prefácio do jornalista e acadêmico Nilo Scalzo focaliza com objetividade e precisão o desiderato de Frederico Branco. A leitura de Postais Paulistas é prazerosa. Cada capítulo leva à reflexão sobre o estágio atual de nossa cidade, cujas mudanças abrutas impediriam, hoje, esse desfilar harmonioso de tradições. Perdemos o gosto pelo duradouro. O efêmero proliferando nessa transitoriedade, desconforto e imediata mudança, motivado por tantos desajustes, cerrou os olhos daqueles que gostariam de ter lembranças prolongadas. O tributo ao passado fenece. Haveria esperanças? É necessário, apesar do presente, acreditar que sim.

“Postais Paulistas”: a book with nostalgic and good-humoured recollections of mid-twentieth-century São Paulo.