Os posicionamentos antagônicos

Todo en la vida es forma,
Proceda de ella y deriva hacia ella,
Tanto en lo concreto como en lo imaginario.

Juan Carlos Paz

Em uma tarde quente, após as aulas na Universidade de São Paulo, caminhava em direção ao carro, quando um aluno vindo ao meu encontro perguntou: A música pode traduzir sentimentos? Quis saber o motivo da pergunta que veio imediato, pois mostrou-me Do Belo Musical, de Eduard Hanslick (1825-1904). O tempo estreito fez-me buscar na dialética uma explicação que contemplasse a oposição e a possível harmonia das contradições.
Hanslick constrói uma argumentação contrariando a estética em vigor, romântica, que externava em seus estertores a apoteose das emoções. Acreditava que os apelos ao sentimento não seriam capazes de “resultar em uma única regra musical”, apesar de ter a convicção de que o belo está sempre “baseado na evidência imediata do sentimento”. A obra foi traduzida para o Português e editada pela UNICAMP, Campinas,1989. Dela, fiz uma resenha, publicada no “Cultura”, de “O Estado de São Paulo”, em 10/03/1990.
Ao escrever em 1854 o trabalho de estética em questão, Vom Musikalisch-Schönen, estava a rigor opondo-se à função do drama no desenvolvimento da ópera wagneriana. Amigo de Brahms, o seu alvo essencial seria Wagner. Não entendia Hanslick que o sentimento identificava-se com determinados conteúdos da música. Por logicidade, Liszt e Berlioz, que praticaram a música programática, estariam inseridos na essência dessas críticas. Emoção, sentimento e música programática, por conseqüência, seriam o cerne crítico dessa visão arguta de Hanslick, que no futuro teria ampla aceitação entre aqueles mais simpáticos ao puro formalismo. A partir das últimas décadas, a proliferação de tendências composicionais “acataria” essa idéia de Hanslick, guardando-se as devidas exceções.
Em plena Idade Média o canto gregoriano escrito nos espessos antifonários já apresentava, em determinados manuscritos, neumas, que eram os elementos da notação gregoriana, em muitos casos tipificados, indicando intenções outras expressivas, dependendo do contexto da frase. René Descartes, na célebre obra Compendium Musicae, escrito entre 1618-19, no capítulo Huius obiectum est sonus (Seu objeto é o som), colocaria uma frase exemplar: Finis, ut delectet, variosque in nobis moveat affectus (Sua finalidade é a de agradar e de provocar em nós afetos variados).
Quase um século após, em 1713, no prefácio das Pièces de Clavecin ( primeiro livro ), François Couperin ratifica, numa posição pessoal, essa primazia da emoção: j’aime beaucoup mieux ce qui me touche, que ce qui me surprend ( eu amo muito mais o que me comove do que aquilo que me surprende ). Se Jean-Philippe Rameau conheceu, na elaboração de seus trabalhos teóricos, os princípios matemático-musicais de Descartes, não é menos verdade que no que se refere à emoção, os recitativos de suas óperas, ou peças como Les tendres plaintes, Les soupirs, L’entretien des muses ( consultar gravações J.E.M. russianDVD.com , acessando os tracks 20,22 e 25 ), testemunham esse tributo à expansão dos sentimentos. Nesse aspecto, o próprio roteiro dos títulos da música descritiva estaria a apontar evidências insofismáveis.
Percorrendo-se a trajetória histórica da Música, seria transparente a dualidade constante, o fluxo que mantém vivas a abstração e o drama, ou a chamada música absoluta ou pura contrapondo-se à presença das paixões e do sentimento humano. Se certos embates foram estéticos, outros tiveram o viés ideológico, ou mesmo se completariam. No século XVIII em França, os adeptos das óperas de Jean-Baptiste Lully se debateriam com os admiradores de Jean-Philippe Rameau. Este teria em Jean-Jacques Rousseau e alguns enciclopedistas, ferrenhos combatentes, que desencadeariam a chamada Querelle des Bouffons. Se bem que Rousseau, músico abissalmente distante do grande pensador que foi, visasse, e muito, o homem Rameau, estava em questão a comunicação “do povo” que a opera-buffa italiana provocava entre os ouvintes, antepondo-se à “rigidez” da opéra-ballet concebida por Jean-Philippe Rameau entendida como um símbolo monárquico. Tem-se na Querelle… um balão de ensaio a visar a ascensão do povo e a queda da monarquia. O ano de 1789 estava próximo.
O século XIX assistiu à apoteose do movimento romântico. A emoção, tida como elemento fulcral, estaria a impulsionar a criação. Em todos os gêneros, fazem-se presentes os eflúvios românticos, que se espalham pela literatura e pelas artes plásticas. Os compositores, em textos crítico-literários ou na literatura epistolar, vivem a atmosfera plena. Não se constrangem ao externar sentimentos. Os criadores refugiar-se-iam nesse “Eu” íntimo. Adolfo Salazar coloca o egocentrismo como um dos fatos mais marcantes do movimento romântico. Acredito que compartimentar o movimento em pauta não teria a eficácia necessária, por ter ele se estendido até meados do século XX, ininterruptamente, sendo que muitos dos compositores mais ventilados hoje, e românticos, vêm a falecer em torno dos anos 50. Escolas e tendências composicionais as mais diversas surgiram no último século, não impedindo contudo a existência respeitável de correntes tradicionalizantes.
A partitura encerra uma parte da realidade. Ao intérprete, movido ou não pela emoção – contestada ou não a palavra – caberá restituir a realidade “aproximada” original da composição. Não por acaso, François Lesure observa ser o estilo do intérprete a salvaguarda da autenticidade da obra.

Music, emotion and formalism.
The musical milieu, its characters and antagonisms
The performer´s style ensuring the authenticity of a work.