Sonatas Bíblicas*

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E o que dizer dos habituais ouvintes
de nossas salas de concerto?
O seu rancor à mudança é realmente surpreendente !
Os seus cérebros obscurecidos não registram
senão certas combinações sonoras, exceção a todas as outras.

Olivier Messiaen

Nascido na Alemanha, Johann Kuhnau (1660-1722) foi um dos mais importantes músicos de seu tempo. Compositor, organista, regente, jurista e escritor, Kuhnau conhecia várias línguas antigas e modernas, tendo, em acréscimo, conhecimentos aprofundados de matemática. Defendeu tese de Direito, tornando-se advogado. Escreveu um romance satírico: Der musicalische Quacksalber (O Músico Charlatão). Ao obter o posto de organista na Igreja de São Tomás, em 1684, instala-se definitivamente em Leipzig, dedicando-se, doravante, quase que inteiramente à música. Em 1701, torna-se Kantor da Igreja, cargo que manteria até a sua morte. Escreveu inúmeras Cantatas e Motetos, assim como obra para teclado.
Johann Kuhnau colocaria a serviço da composição todo um precioso acervo cultural enciclopédico adquirido através de décadas. Após sua morte, J.S.Bach iria sucedê-lo em 1722 como Kantor da Thomaskirche, ou Igreja de São Tomás, em Leipzig, e continuaria a lembrar-se de muitos procedimentos composicionais de seu predecessor. Bach inspira-se em título anterior de Kuhnau para quatro de suas publicações para teclado, denominadas Clavier-Übung. A elaboração de algumas fugas poderia evidenciar uma herança de seu predecessor, assim como procedimentos encontráveis nas danças de algumas suítes. Algumas décadas após o desaparecimento de Kuhnau, a névoa do olvido basicamente caiu sobre sua obra. No ano do bicentenário de sua morte, Romain Rolland, autor do célebre romance Jean-Christophe, escreveria: Johann Kuhnau era possuidor de uma profundidade de sentimento, e ao mesmo tempo de uma beleza quanto ao tratamento formal, uma graça feita de força e claridade, que ainda hoje poderiam tornar o seu nome popular.
Entre as obras de Johan Kuhnau, as Sonatas Bíblicas, publicadas em 1700, representam um exemplo da riqueza composicional do autor. Alguns aspectos mereceriam um debruçar mais aprofundado. Trata-se do primeiro exemplo de uma obra programática monolítica escrita para teclado, e isto é essencial. A História evidencia, em pleno século XIX, Liszt e Berlioz sofrendo forte inclinação à música de programa. Kuhnau, após apresentar, em alemão, um texto introdutório no qual posiciona o enredo de cada Sonata, insere na partitura frases em italiano, a conduzir, a cada cena, o entendimento do intérprete e do ouvinte. Haveria a nítida vontade de influenciar a emoção, pois o autor acreditava que as frases poderiam estimular a compreensão melhor da obra. Os títulos das Sonatas já predispõem o auditor ao clima proposto pelo autor: Il combattimento trà David e Goliath, Saul malinconico e trastullato per mezzo della Musica, Il marittagio di Giacomo, Hiskia agonizzante e risanato, Gideon Salvadore del populo d’Israel e La tomba di Giacob. J.S.Bach, quatro anos após, aos 19 anos, compõe o Cappricio sopra la lontananza del suo fratello diletissimo, criação do mesmo gênero, pois contém igualmente um programa.
As sonatas foram escritas para teclado, klavier, sendo que a primeira edição, de 1700, apresenta uma gravura na capa de rosto. Vê-se uma sala ampla e austera e uma mulher com as mãos sobre um teclado de órgão de ensaios ou de estudos, pois de dimensões reduzidas. Este fato teve diversas leituras. O klavier foi entendido pelos intérpretes em um sentido mais amplo e as Sonatas Bíblicas passaram a ser executadas ao órgão, ao cravo e ao clavicórdio. Desde os anos 50, as Sonatas têm sido gravadas nesses três instrumentos.
Necessário se faz evidenciar a estrutura formal da obra, que antecipa determinadas conquistas de K.P.E. Bach quanto à elaboração da Sonata. Pode-se, contudo, observar em Kuhnau uma notável liberdade de procedimentos quanto à forma e aos gêneros conhecidos no período. Danças que procedem das Suítes; recitativos – alguns longos – que são encontrados nas Cantatas; Corais luteranos, como Aus tiefer Not schrei’ich zu dir (Do fundo de minha angústia) e O Haupt voll Blut und Wunden (Oh! fronte ensangüentada e ferida); fugatos apropriados às cenas; fugas, entre as quais a extraordinária da Segunda Sonata, plena de liberdade de expressão, inserida no episódio inicial La tristezza ed il furore del Re, onde não faltam recitativos e passagens tecladísticas rápidas, tornando esse segmento um rico exemplo da escrita de Kuhnau. As Sonatas Bíblicas, constituem pois, uma verdadeira enciclopédia dos sentimentos. Coragem, dúvida, desconfiança, amor, rancor, desespero, medo, alegria, tristeza, rudeza, delicadeza e a crença em Deus, sempre presente. Sob outra égide, mas a caracterizar toda a epopéia, em sentido amplo, os instrumentos que se fazem presentes, nomeados ou não, nas frases do programa em italiano: harpa, tambores, trompetes, conjunto de instrumentos durante as festas, e o gesto da dança a dimensionar alegrias. Sentimentos e timbres povoam toda a extensa obra.
Por que interpretar as Sonatas Bíblicas ao piano? (Verificar gravações J.E.M., De Rode Pomp – concertagenda – vrij 27 April). Obedecendo-se rigorosamente ao texto, as Sonatas Bíblicas possibilitam, igualmente, uma leitura ao piano, mercê das qualidades polifônicas, orquestrais e timbrísticas desse instrumento. Considerando-se o fato de que as obras de F. Couperin, J-P Rameau, D. Scarlatti, J.S.Bach, Padre Soler, Carlos Seixas, entre outros, escritas para cravo, têm sido exaustivamente interpretadas ao piano desde o século XIX, a inserção das Sonatas Bíblicas de Kuhnau em leitura pianística estaria a oferecer uma opção a obedecer logicidade. Há que se compreender que existe, largamente consolidada, uma tradição real interpretativa de todo o repertório cravístico executado inicialmente ao pianoforte e, após, ao piano, que passou para esses instrumentos sonora e oralmente desde o final do século XVIII quando, mercê da Revolução Francesa, o cravo, instrumento monárquico, foi banido do Conservatório de Paris. Felizmente, o cravo veio a ressurgir nas fronteiras dos séculos XIX-XX. Em meados do século passado surgiriam fortes correntes a defender uma “reserva de mercado” relativa à música antiga, que doravante deveria ser entregue aos instrumentos de época, ou às suas réplicas. Essas tendências persistem e são benéficas sob muitos aspectos. Contudo, como bem observa o notável musicólogo francês François Lesure ( 1923-2001 ), que prefaciou o CD duplo contendo a integral para cravo de Jean-Philippe Rameau executada por mim ao piano (Gents Musikall Archief vol.8): O tempo do barroco integrista passou, o uso de instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos. Um dos maiores biógrafos de Rameau – Cuthbert Girdlestone – defendeu com força a idéia de que a música de Rameau ‘ganha ao ser transferida para o piano’ e que sua escrita encontra nesse instrumento, de uma melhor maneira, o seu dinamismo.
Em 2004, Coimbra festejou o terceiro aniversário de nascimento de seu filho ilustre, Carlos Seixas (1704-1742), o nome mais significativo do Barroco português. Três recitais foram agendados pelo organizador, Professor Doutor José Maria Pedrosa Cardoso, e apresentados na Biblioteca Joanina e na Capela Real da Universidade de Coimbra, abrangendo Sonatas de Carlos Seixas interpretadas ao órgão ( José Luis Gonzáles Uriol, Zaragoza ), cravo ( Ketil Haugsand, Colônia ) e piano. Tive o privilégio de ser o pianista. Essa interação provou o convívio desses três instrumentos frente ao repertório tecladístico do século XVIII. Poder-se-ia acrescentar que as Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau têm, igualmente, essa dimensão maior, a abranger a diversificação instrumental.
Apesar de, infelizmente, pouco freqüentadas, as Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau representam uma síntese de procedimentos e o exemplo perene de uma obra na qual o espírito acentuadamente eclético do autor traduz essa presença enciclopédica, característica de todo um período bem amplo.

Born in Germany, Johann Kuhnau (1660-1722) was one of the most accomplished musicians of his time, also talented as linguist, mathematician and lawyer. A predecessor of J.S.Bach as Kantor of St. Thomas Church in Leipzig, his most celebrated work – the Biblical Sonatas – is the first example of programme music for keyboard in an extensive work and, as such, virtually unparalleled before the 19th century. Originally written for keyboard, since the mid-twentieth century it has been recorded on the organ, the harpsichord and the clavichord. Unfortunately seldom performed or recorded, the Biblical Sonatas are a synthesis of musical procedures and an example of Kuhnau’s mastery of an array of styles and forms.

* O texto está a ser publicado, basicamente nesta formatação, na Bélgica, França e Portugal.