Navegando Posts publicados em março, 2007

    Eupetomena Macroura

O trovejar fazia-se longínquo. A aproximação foi rápida. Subi as escadas, a fim de fechar as janelas. Quase de imediato desabou o aguaceiro, acompanhado de relâmpagos e trovoadas assustadoras. Abaixo da janela de meu quarto, uma velha pérgula sustenta uma antiga primavera, que floresce em vermelho. O vento, em rajadas violentas, propiciava uma dança dos frágeis galhos. Sobre o mais débil, um beija-flor, de uma das dezenas de espécies ainda existentes no país, possivelmente um “tesoura”, ou eupetomena macroura, sustentava-se com grande desenvoltura. A chuva torrencial apenas era motivo para a abertura ampla das asas e da cauda bifurcada. O minúsculo pássaro erguia a cabeça em direção às águas que despencavam, ritualizava os movimentos, compartilhava essa relação de maneira integral.
Tive a convicção de que ele estava em comunhão total com a natureza. Podia-se pensar numa alegria contagiante. Passaram-se dez minutos. O aguaceiro resultou em chuva amena e o colibri, em tonalidades escuras de verde e azul, sacudiu as gotas e voou.
Fiquei à janela por mais alguns minutos, a pensar na quantidade absurda de árvores diariamente abatidas, levando em sua queda mortal tantos ninhos de pássaros, tantos mamíferos, tantas outras vidas. Neste país endemicamente descompromissado com a natureza, assistir a uma ode à vida ainda é uma tênue esperança.

    A revisitação das imagens perdidas

Os símbolos urbanos, a imagem da cidade,
os monumentos históricos deixaram de entrar
na composição das preocupações das autoridades.
Mas nunca é tarde para se começar.

Benedito Lima de Toledo

O bálsamo que atenua os tantos interesses de nossa imprensa pareceria residir na crônica. Aqueles que a ela destinaram o resultado de suas observações tiveram e têm olhares os mais diferenciados. Lembrar-me-ia de três do grupo O Estado de São Paulo. Dois já falecidos, Luís Martins e Frederico Branco, escreveram em um período menos conturbado, quando a corrupção e a violência ainda não se afiguravam noticiários endêmicos. Já existiam, mas sem essa virulência que distancia tantos leitores dos jornais e revistas e telespectadores dos telejornais, devido ao quase absoluto trato monolítico e monotemático. Ignácio de Loyola Brandão, em momento mais recente, a partir de 1993, atenuava, com a leveza e o talento de sua pena, as outras múltiplas secções do Estadão.
Quando se recebe um livro, dois aspectos pareceriam transparentes: a inteligência de quem oferece e a possibilidade da leitura por parte do presenteado, ratificando o mérito do primeiro. Ao ganhar de um amigo sensível Postais Paulistas, de Frederico Branco, vieram-me à mente as crônicas do autor, que li durante muitos anos no Jornal da Tarde, de 1970 a 1990. Apesar de ter colaborado de 1980 até 1990 para o Cultura do Estadão, infelizmente desaparecido em sua roupagem de rigor e excelência, jamais cruzei com Frederico Branco nos longos corredores do jornal. Gostaria imenso de tê-lo conhecido. Contudo, lia constantemente suas crônicas, admirando o tratamento bonito e nostálgico de seus textos, nesse regresso ao passado feliz e irremediavelmente sepultado de nossa cidade, sob o aspecto urbanístico, humano, ético ou àquele voltado aos costumes, à maneira de se entender a noite e as suas atrações. Lia sempre, após a densidade das notícias que traduziam o mundo em cores voltadas às sombras. Pensava, fazia-me bem a leitura da crônica como um epílogo – coda, para nós músicos – e iniciava, ou continuava, mais um dia.
Não é fácil buscar no recôndito da memória fatos longínquos ou flashes registrados, mormente quando o presente e o passado se distanciam por décadas. Esses distanciamentos implicam, certamente, approaches diferenciados. O ato de escrever lembrando o passado adquire dimensão maior se houver inteligência, perícia, intuição e reflexão por parte do autor. Em Frederico Branco, essa garantia advém da inexistência, ao menos aparente, de desilusões. Se as houve, seria possível imaginar que elas tenham sido absorvidas de maneira leve, serena e até resignada. Assim entendendo-se, o seu perene regresso ao passado, tão logo algo leva o cronista à recordação, ratifica as intenções. Sob égide outra, proustianamente o olfato o conduz à reminiscência, e os outros sentidos, a diversas lembranças afetivas, mas, frise-se, nostálgicas, devido, é possível, à felicidade vivida nas décadas que se foram. Contudo, a imagem captada pela retina torna-se indelével. É bonito lê-lo admirando a mulher amada, desde a dedicatória da edição primeira: “À Teté, chefe da família e de meu coração”. Jocosamente, ela é citada em determinadas crônicas não como mulher, mas como chefe.
A observação do presente, para Frederico Branco, tornava-se a senda que o levava a percorrer com prazer, afeto e nostalgia os anos da juventude. Primeiras festas, namoros, os cinemas antigos como o Metro, ou o Odeon, onde se sentia deslumbrado; bares, restaurantes, o Ponto Chic, a Salada Paulista, o Chá do Mappin das décadas não esquecidas pela lembrança do cronista. Pormenoriza-se nos freqüentadores, personagens típicos em seus trajes bem tratados, falas e preferências.
Ao rememorar outros bares e barzinhos, como a Cervejaria Franciscano (fundos), o Bar Municipal, o Picadilly da Marconi, o Barzinho do Museu, na Sete de Abril e o Barbazul, onde evoca os cantares de Cauby Peixoto e Lupicínio Rodrigues. Volta ao presente para, ao referir-se a um badalado bar dos Jardins, observar que “o volume do rock, essa aids da música, era tão elevado que tornava impossível qualquer conversação. Papo, ali, só para quem conhece a linguagem gestual dos surdos-mudos”.
Em determinadas crônicas, o que o leva ao passado é a saída do trabalho, altas horas da noite, após horas de labuta. Ao passar por um local da Barra Funda, lembrar-se-á de “seu” Nestor Pianista, um negro alto e recurvo, funcionário público, que morava num porão do bairro e que gostava de tocar em um velho piano de armário as suas valsas lentas, suas marchas-rancho, acompanhado ou não. O porão onde morava, exíguo, ficava repleto de admiradores. Escreve Frederico Branco a respeito do piano: “como conseguiu comprá-lo e metê-lo na saleta que abria duas janelinhas gradeadas para a rua é coisa que nunca se soube”. Há o Neco-Perneta, palpiteiro e assíduo do Bar e Bilhares Benfica, ou o velho Carotenuto da barbearia Vesúvio. Descreve com precisão, inclusive, as loções, os utensílios e mais as leituras da Gazeta Esportiva, O Dia e a semanal Careta, sempre à disposição dos fregueses. A memória é avivada quando um moderno barbeiro indica penteados diferentes. O sentido bem humorístico pode ser lido nos sósias de Robert Taylor ou de Shirley Temple. As narrações são deliciosas, verdadeiros quadros de humor.
É um crítico compadecido, mercê da fatalidade dos fatos, ou seja, a total degradação da cidade, a destruição do antigo para a construção do moderno. Lamenta os plátanos que se foram e todo o verde e as flores que se estiolaram no tempo e que o encantavam quando percorria tantas ruas e alamedas. É com carinho e até com raro senso de poesia que demonstra o seu amor à natureza, quando está, exaurida e confinada, a viver a era do cimento. Os bondes, como são eles recorrentes ! Tem um afeto especial pelo veículo elétrico. Os trajetos, a alegria de saltar de um bonde aberto, ou nele subir, assim como a maestria de andar nos estribos superlotados. Evocados também são os Camarões, ou bondes fechados.
Postais Paulistas torna-se agradável leitura e importante documento para a compreensão da transição da cidade de São Paulo, tranqüila nos episódios pessoais rememorados, onde se mantinha por longos períodos a tradição. Dimensiona-se, a partir dessa visão, o descompromisso do autor com qualquer outro objetivo que não o de evocar a sinceridade nesses cartões postais de outros tempos.
As crônicas, impecavelmente escritas, foram reunidas em livro editado pela Editora Senac em São Paulo. Está em sua segunda edição, datada de 2002. O prefácio do jornalista e acadêmico Nilo Scalzo focaliza com objetividade e precisão o desiderato de Frederico Branco. A leitura de Postais Paulistas é prazerosa. Cada capítulo leva à reflexão sobre o estágio atual de nossa cidade, cujas mudanças abrutas impediriam, hoje, esse desfilar harmonioso de tradições. Perdemos o gosto pelo duradouro. O efêmero proliferando nessa transitoriedade, desconforto e imediata mudança, motivado por tantos desajustes, cerrou os olhos daqueles que gostariam de ter lembranças prolongadas. O tributo ao passado fenece. Haveria esperanças? É necessário, apesar do presente, acreditar que sim.

“Postais Paulistas”: a book with nostalgic and good-humoured recollections of mid-twentieth-century São Paulo.

Marcelle Meyer (1897-1958)

    A redescoberta merecida

Como o meu tempo é o passado,
Não me conformo com injustiças históricas.

Jarbas Passarinho

A história da interpretação tem, por vezes, o esquecimento temporário como constante. Não fosse a existência da gravação e muitos dos qualitativos intérpretes do século XX estariam relegados ao mais profundo olvido. Tantos são os motivos que impedem, em vida, uma divulgação maior de um nome. Fiquemos em apenas dois: o olhar menos sensível aos holofotes, distanciando o intérprete da grande mídia, e o repertório menos freqüentado. Após a morte do intérprete, a própria necessidade da mídia em ter alimento novo, desativa, por logicidade, aqueles menos divulgados, a ratificar, por conseqüência, injustiças.
A pianista francesa Marcelle Meyer é um caso típico, apesar de um perfil extraordinário. Estudou com Marguerite Long, Alfred Cortot e o lendário Ricardo Viñez, pianista responsável por tantas primeiras audições de autores como Debussy, De Falla, Ravel. A intérprete esteve sempre absolutamente ligada aos compositores de seu período histórico e àqueles do barroco. Musa do Groupe des Six, que marcou época em Paris, através de uma conceituação a se distanciar das conquistas de Fauré, Ravel, e, sobretudo Debussy, assim como das tendências germânicas, Marcelle Meyer esteve a apresentar as composições recém criadas pelo grupo, a particicipar das reuniões, sempre numa absoluta necessidade de servir à causa musical. No célebre quadro a óleo de Jacques-Émile Blanche – em 1902, fizera uma bela tela retratando Debussy – Marcelle Meyer está sentada ao piano cercada pelo grupo harmonioso.
Impressiona a carreira de Marcelle Meyer, seu repertório, sua participação como intérprete. Iniciou as suas gravações em 1925, registrando Piano Rag Music, de Stravinsky, e Navarra, de Albéniz. Gravou inúmeras obras, preferencialmente as criações do barroco, assim como as de seus próprios coetâneos: Debussy, Ravel (integral), Groupe des Six, De Falla, Stravinsky e tantos outros. Mozart, Beethoven, Schubert e Chopin também foram privilegiados em seus registros fonográficos. Apresentou-se sob a regência de: Willem Mengelberg, Thomas Beecham, Ernest Ansermet, Adrian Boult, Charles Munch, Kletzki, Herbert von Karajan, Hermann Scherchen, Richard Strauss, com este tocando a sua célebre Burleske. Stravinsky, Ravel, Diaghilev foram admiradores plenos de sua arte. Com Ravel, interpretou La Valse a dois pianos em primeira audição. Integrou o quarteto de pianos com a participação de Jacques Février, Francis Poulenc e Stravinsky, quando da apresentação de Les Noces, do compositor russo. Com Poulenc gravaria as Trois Valses Romantiques para dois pianos, de Emmanuel Chabrier. Foi casada com o ator Pierre Bertin e, após a separação, com o advogado italiano Carlo di Vieto. Fixando-se um período em Roma, apresentou-se interpretando obras de Casella, Dallapiccola, Rieti, Petrassi e Veretti, a evidenciar uma plena comunhão com a obra de seus contemporâneos.
Tendo-se apresentado em muitos países da Europa em recitais e concertos, raramente foi convidada pelas associações francesas. De temperamento modesto e reservado, ficou à margem da grande divulgação. Seu nome não consta do espesso livro de Harold C. Schonberg – The Great Pianists, 1963,87 -, nem tampouco da primeira série de gravações Great Pianists of the 20th Century, que reuniu dezenas de pianistas, desde a primeira metade do século XX.
Em meados da década de 50, meu pai, colecionador de LPs primordiais, adquiriu as gravações contendo a integral para cravo de Jean-Philippe Rameau, executada ao piano, assim como obras referenciais de Stravinsky na interpretação da insigne artista, lançadas em LPs na Collection des Discophiles Français. A leitura do prefácio do álbum Rameau já me subjugara através do magnífico texto de Georges Migot. A extraordinária interpretação de Rameau ao piano realizada por Marcelle Meyer veio a seguir, fascinante e absoluta. A clareza, a elegância, a qualidade sonora, o gosto pelo timbre seletivo causaram no jovem e sempre aprendiz o impacto total. Em 1997, estaria eu a gravar em Sófia, na Bulgária, a integral de Jean-Philippe Rameau, incluindo as transcrições do autor francês de Les Indes Galantes para teclado. O de profundis de cada intérprete é insondável.
Felizmente, sur le tard, redescobriu-se Marcelle Meyer. Louve-se a EMI, que nas séries Les Introuvables e Les Rarissimes, está a desvelar as gravações da pianista francesa realizadas entre 1925 até pouco antes de sua morte, ocorrida subitamente em 1958. Muitas dessas gravações foram registradas ao vivo. Dir-se-ia que uma grande injustiça está a ser reparada. Tahra igualmente lançou gravações referenciais da ilustre artista. (http://www.tahra.com/?ref=564).
Na programação Tempo de Concerto da USP-FM, 97.3 (www.radio.usp.br) , hoje coordenada pelo competente violonista Edelton Gloeden, produzimos e apresentamos, desde 1993, às terças-feiras às 22 horas, o tema Idéia, Criação e Interpretação. O leitor ouvinte poderá conhecer, durante Março e Abril deste ano, as interpretações basilares de Marcelle Meyer. Jean-Philippe Rameau (1683-1764), François Couperin (1668-1733), Domenico Scarlatti (1685-1757), Emmanuel Chabrier (1841-1894) e Igor Stravinsky (1882-1971) estarão privilegiados sob os dedos e o pensar da ilustre pianista francesa. As gravações foram realizadas entre 1946-56. O conhecimento mais aprofundado das interpretações de Marcelle Meyer servirá como um fundamento essencial à compreensão de um período histórico, assim como da importância de uma artista que privou muito com o diálogo musical competente, a fazer da não rotina repertorial, o seu desiderato maior.

The French pianist Marcelle Meyer, was one of the most important of the 20th century. Her extensive repertoire embraced from Baroque composers to her contemporaries. She performed for the Group of Six and played with great conductors. She is now experiencing a rediscovery, with the reissue of many of the recordings. Radio USP-FM pays its tribute to Marcelle Meyer.