Kiki
Porto deu nome ao país Portugal. Na Antologia reunida pelo grande poeta Eugênio de Andrade, Daqui Houve Nome Portugal (1968), há textos a relatarem a trajetória do Porto, desde os primórdios da cidade até a atualidade. Li com entusiasmo, em edição recente, esses textos recolhidos, a apontarem interpretações sobre o Porto através dos séculos. Cidade extraordinariamente linda por tantos aspectos – a austera Sé Catedral, as belas igrejas construídas durante o milênio anterior, monumentos, museus, ruas estreitas, o Douro a serpentear em direção à Foz, realçando as encostas com suas construções históricas -, poder-se-ia afirmar ser ela parte considerável da enciclopédia portuguesa.
Muitas vezes estive no Porto, mas há vinte anos, quando cá estou, fico na bela morada de minha dileta amiga Maria de Lurdes Álvares Ribeiro, à Rua do Passeio Alegre, junto à Foz. Simplesmente Kiki para quem a conhece, das crianças aos adultos, a professora tem uma larga experiência na educação musical, sobretudo entre os miúdos, como carinhosamente são chamados os pequenos aqui em Portugal. Tendo feito estudos pianísticos aprofundados, Kiki encontrou caminhos que a levaram a ter uma pedagogia própria, que realmente aproxima as crianças e os jovens da magia que é a Música. Está sempre atenta a todos os métodos inovadores de ensino para, através do piano, estimular o despertar infanto-juvenil no universo dos sons. No Conservatório de Braga, aplicou seus conhecimentos durante 36 anos.
Viajou o mundo. Em Dili, no Timor, deu o primeiro recital de piano aos timorenses. A uma pergunta, respondeu-me: “senti-me útil à comunidade local”. É este sentir-se útil, integrando-se aos povos, que a levaram aos Açores – durante um ano – e a tantos países da Europa, do leste ao oeste, ao Japão, às Américas, colhendo experiências de vida para enriquecer a prática pedagógica em cidades portuguesas e outras mais. E obtém resultados surpreendentes.
Conversamos muito. Seus dois pianos de cauda estão sempre generosamente abertos para os estudos deste amigo e de tantos outros que a visitam. Faço de sua casa meu porto seguro no Porto, epicentro de meus recitais ao norte de Lisboa. Desta vez, em acréscimo, participo de um júri na Escola Superior de Música e das Artes do Espetáculo do Instituto Politécnico do Porto. A família de Kiki, uma união permanente, de Michu e Manuel, irmã e cunhado que vivem no andar superior ao de minha amiga, aos outros irmãos e às dezenas de sobrinhos e primos. Ao todo, cerca de 500 familiares! Conheço muitos de seu clã e pude comprovar esse convívio intenso. Percorrer a Biblioteca da amiga, conservada desde muitas gerações, a levar-nos às edições originais de obras fundamentais da literatura portuguesa dos séculos XVII e XVIII, é um privilégio. Ir com Kiki, todas as vezes que passo pela cidade, à Ribeira, onde nos espera o típico Tripas à moda do Porto, um prazer especial. Após a prática pianística, por vezes percorremos o belo jardim que separa sua morada do ponto de encontro do Douro com o mar. Seria possível compreender a ação da natureza sobre Kiki. Essa confluência das águas, a provocar, em tantas oportunidades, vagas imensas, teria forjado nela a inquietação, a independência, o destemor, o gosto pelo inusitado. Kiki é uma personagem da história da sociedade portuense. Absolutamente típica, todavia única em sua maneira de entender a vida.