O Perigo do Circunstancial Endêmico

Le trop grand empressement qu’on a
de s’acquitter d’une obligation
est une espèce d’ingratitude.

La Rochefoucauld

Elegemos nossos temas de vida. - Foto J.E.M.

Voltava de minha caminhada habitual pelas ruas do Brooklin, quando encontro um ex-aluno de curso que ofereci em um dos programas de pós-graduação na Universidade de São Paulo. Convidei-o para um café. Instalados, perguntei-lhe a respeito da conclusão de seu mestrado e dos caminhos trilhados nesses últimos dois ou três anos. Disse-me que fora aprovado como mestre e que tentava, presentemente, o doutorado, a fim de obter uma bolsa junto a um dos Institutos de Fomento existentes para continuar a viver, já que não tinha emprego, apenas dava algumas aulas particulares. Indaguei-lhe se continuaria com o tema que desenvolvera para o mestrado. Respondeu-me prontamente que de forma alguma voltaria àquela temática que o cansara tanto. Pretendia um outro “assunto”, que lhe desse tranqüilidade. Insisti. Nem tenho idéia, respondeu. Tomamos o café, despedimo-nos e cada qual continuou seu caminho. Fiquei a pensar que a cena se repete. Alguns outros, a quem fiz idêntica pergunta no campus universitário nesses últimos anos, deram-me rápido a mesma resposta, como um verdadeiro leitmotiv.
Sem ser regra, pois há uma grande diversidade de áreas na Universidade, antolha-se-me contudo preocupante a repetição de tais casos. Em algumas das especificidades das Humanas, a pequena possibilidade de absorção pelo mercado de trabalho torna imperiosa a busca pela sobrevivência. Os que se enquadram no perfil mencionado, a buscarem a bolsa, correm em direção ao título e que venha ele o mais rápido possível. O tema de Dissertação de Mestrado, ou Tese de Doutorado, pareceria um “mal necessário” aos desideratos reais. Frise-se, há constante preocupação das instâncias superiores, a almejarem duração menor dos cursos que levam à conclusão de Dissertações e Teses.
Deparei-me, ao logo de minha vida acadêmica, com outra situação, não distante do princípio da primeira: o pós-graduando que se dirige sequioso aos Congressos, Seminários ou Colóquios, com o objetivo precípuo de ler um paper e vê-lo publicado. A questionamentos que faço, a resposta vem direta: “Professor, conta pontos junto aos Institutos de Fomento”. Se aceito pelas organizações dessas Reuniões, a pontuação estará garantida. Destaque-se que muitas vezes esses Encontros têm necessidade de determinado volume de trabalhos, o que significa “importância e respeitabilidade”, a resultar em captação de verbas públicas. Neste caso específico, paper aceito, o candidato à bolsa estará a evidenciar desempenho.
A Rádio Jovem Pan tem apresentado um segmento exemplar: Educação, Semente do Amanhã, Alicerce da Pátria. O competente Joseval Peixoto apresentou o depoimento de dezenas de crianças que cursavam a Escola Pública e nada sabiam após alguns anos. Numa segunda etapa, professores estão sendo ouvidos e a situação mostra o desmoronamento educacional neste país de tantos desvios. Em todos os níveis, pois as mais diferentes categorias de docentes estão a ser ouvidas.
Creio que as nuvens plúmbeas aproximam-se igualmente da Universidade Pública no Brasil, inclusive na pós-graduação. Estou a me lembrar de teses defendidas em décadas anteriores, quando o número de candidatos ao mestrado e ao doutorado era bem inferior. Havia, preferencialmente, o gosto pela investigação. Temas de mestrado continuavam seu percurso no doutorado, tornando-se roteiros de vida. Um, dois ou mais objetos de estudo acompanhavam a trajetória acadêmica daquele estudioso. Mostrar-se-ia inequívoco o resultado, a dar subsídios valiosos à ainda precária bibliografia brasileira em tantas áreas.
O Governo alardeia o aumento de mestrados e doutorados no país, como se a quantidade fosse o fulcro da questão. Político sim, mas qualitativamente uma tragédia que se anuncia. Há um guarda-chuva imenso a cobrir a pós-graduação neste país. O sinônimo é pesquisa. Todos são pesquisadores, bons e maus, ótimos e péssimos. Joio e trigo freqüentam os mesmos bancos da pós-graduação. Curso findo, temas são abandonados abruptamente, a interromper um estudo mais pormenorizado, o que constitui um prejuízo irrecuperável, pois bolsas foram concedidas e trabalhos arquivados após a aprovação dos novos mestres ou doutores. Contudo, não se dá o mesmo em tantas construções públicas dispendiosas abandonadas pelo Brasil? A analogia faz-se lembrada. Ressalvem-se dissertações e teses meritórias, que tendem à publicação em revistas arbitradas ou tornam-se livros de referência.
Não obstante a presença de tantos estudiosos de respeito, jovens que eventualmente trocam de temática após o mestrado, apenas para recuperá-la mais tarde, quando outro for o embasamento, observam-se exemplos em que a mudança do objeto de estudo pode estar a acontecer aleatoriamente. Se houver princípio de interdisciplinaridade nesse novo projeto, ou se ele tiver uma força abrangente a enriquecer o todo de um pós-graduando, que seja bem-vindo. Dificilmente um bom orientador deixará de compreender as nuances da escolha de um candidato na apresentação de um projeto de dissertação ou tese. Um mau orientador sempre abrigará qualquer projeto. Neste caso, acentua-se o caminho da fatalidade, peristilo da tragédia, a pós-graduação circunstancial, hoje endêmica. A corroborar tal situação, verifica-se que muitos mestres ou doutores chegam às conclusões de dissertações e teses, respectivamente, sem biblioteca doméstica. Quando perguntei àquele ex-aluno sobre o seu acervo livresco, respondeu-me que na verdade tinha em casa algumas poucas publicações não específicas. A modernidade, a apresentar o “benefício” das fotocópias ou a busca via internet – importantes veículos para o conhecimento -, ceifou o gosto pelo livro, companheiro de vida. Não seria este brusco corte, igualmente, um foco do desinteresse pelo aprofundamento? Perde-se o norte. A afeição pelo livro, necessária a todo desenvolvimento intelectual, não chega sequer a abortar, pois não foi gerada.
O regresso ao verdadeiro sentido vocacional pleno pareceria uma miragem. Realmente, é o auxílio através da bolsa de pós-graduação um empecilho ao desenvolvimento acadêmico? É-o, na medida em que, mutatis mutandis, assemelha-se, em tantos casos, à bolsa-família meramente assistencialista do governo federal; é-o, a evidenciar ao pós-graduando que as vagas docente-universitárias estão basicamente preenchidas, restando a ele a bolsa como salvação temporária, a prejudicar o real sentido do aprofundamento; e é-o, quando, em certos casos, dá origem ao pós-graduando bolsista “profissional”. E todo o mal estará feito.
Solução haveria? Acredito que um maior rigor na concessão dessas bolsas seja imperioso, sem generosidade excessiva por parte dos Institutos de Fomento, que tendem a mostrar índices quantitativos. Felizmente, ainda são muitos os verdadeiros vocacionados, para os quais a verba da bolsa retorna à comunidade brasileira através de profissionais preparados, que souberam extrair de cada centavo, semente do amanhã, o conhecimento abrangente. A austeridade permitiria um estudo do verdadeiro “DNA” do candidato, suas origens educacionais, seu desempenho, sua dedicação, e seu desiderato final. Se isso ocorresse, enriqueceria o país com o “fim” do desperdício, aumentaria o número dos verdadeiros estudiosos, a grande Bibliografia Brasileira em todas as áreas tornar-se-ia uma certeza e a Comunidade Brasileira receberia realmente os profissionais de maior competência.

The drama of the postgraduate courses:
Funding agencies and the problem of allocation of funds for scholarships for postgraduate students.
Circumstantial projects versus thoughtful research projects with personal and social relevance.