Breves I
De regresso ao Brooklin, minha cidade-bairro em São Paulo, rememoro alguns momentos especiais vividos com amigos antigos e novos, assim como cenas do cotidiano, flashes do acontecido. O leitor seguirá comigo esse percurso humano enriquecedor. Figuras de atividades tão diferenciadas, mas plenas de idéias. Amálgama das gentes, extratos que fazem entender preferências.
Ao chegar à estação ferroviária Sint-Pieters em Gent, na Bélgica, caminhava pelo corredor que leva aos táxis, quando uma bela moça me interpela em flamengo. Disse-lhe em francês que não entendia sua língua. Num francês corrente, pergunta-me se não estava a transportar um teclado mudo. Surpreso, respondi que sim, indagando-lhe o porquê da questão. Disse-me que o Museu de Instrumentos de Bruxelas – um dos mais importantes da Europa – tem um semelhante. Sorriu e continuou o seu caminho. Realmente uma surpresa. Quando o repertório é barroco, costumo levar um teclado mudo para a prática durante estadias em hotéis. Esse em questão é francês, das primeiras décadas do século XX, com teclas de marfim, e me foi presenteado pela pianista e professora Nair Medeiros que, nos anos 20, estudou com o célebre pianista Ricardo Viñez em Paris, responsável pelas primeiras audições de obras Debussy, Ravel, De Falla, I. Albéniz e tantos outros.
No recital em Gent foram apresentados dois Études para piano de Raoul de Smet. Excelente compositor da Antuérpia, até o presente compôs seis Études, interpretados ao longo das récitas na Rode Pomp. Smet está sempre a inovar. Há propostas diferenciadas para a pianística atual. Escreverá mais seis que pretendo seguir apresentando.
Daniel Gistelinck esteve no recital e prometeu-me um Estudo para a coleção que, iniciada em 1985, já conta com cerca de 70 criações específicas, escritas por compositores brasileiros e do Exterior. Gistelinck é Professor de Harmonia e Composição no Conservatório de Gent e autor de Résonances, obra que gravei no CD New Belgian Etudes (Gents Muzikaal Archief Vol. 24). A elaboração visando à interpretação dessa obra ímpar é semelhante a de um ourives. Gistelinck penetra nos limites do universo timbrístico. A rítmica é preciosista, plena de curtos motivos e frases que estão sempre, após breves silêncios, impulsionando a obra nessa busca incessante ao timbre diferenciado. Diria que há uma herança vinda do Étude pour les Sonorités opposées de Claude Debussy. Esperemos o Étude desse ótimo músico flamengo.
Em Paris, ficamos hospedados no belo apartamento do casal Emmanuel e Nicole Billy. Ele durante muito tempo esteve ligado ao mundo das finanças; ela uma excelente violinista. Trabalhou durante décadas na Orchestre Nationale e hoje dedica-se à Música de Câmara. Manu é um colecionador refinado. Esculturas do Egito, da Grécia Antiga e do Extremo Oriente convivem com uma selecionada Biblioteca que contém em suas estantes livros cujas edições remontam ao século XVI. Qualquer das obras tem a sua história contada com entusiasmo pelo amigo. Juntos rememoramos a nossa amizade de quase cinqüenta anos e discutimos entusiasmados, assuntos musicais. Nicole e eu temos idéias bem próximas quanto à descaracterização que se tenta imprimir aos andamentos nas obras de Claude Debussy. O compositor francês foi o nosso assunto fulcral, pois o primeiro a tudo assinalar quanto às suas reais vontades interpretativas. Essa tendência hodierna voltada ao virtuosismo é uma ameaça. Com a aceleração, poder-se-ia alterar a dinâmica, ou seja, no caso, a indevida elevação sonora. E pensar-se que a opera omnia de Claude Debussy situa-se entre p e pp (80%), índices que revelam a baixa intensidade.
Conheci Odile Robert em Nápoles em 1959. Primeiro Prêmio do Conservatório de Paris e laureada em concursos internacionais, Odile é a amiga de sempre. Camerista de destaque, está sempre disposta ao conhecimento da Música e dos mais variados assuntos culturais. Atualizamos constantemente nossas conversações sobre Música e Interpretação. A família Robert como um todo “adotou-me” quando de meus estudos em Paris. Antoine, o irmão, fez-me conhecer as principais obras da literatura francesa e, ainda hoje, prazerosamente revisa meus textos quando a publicação é em França. Estar com os Roberts, quando em Paris, é-me extremamente necessário. O recital privé em Paris deu-se no belo apartamento da amiga, cercado de obras artísticas referenciais.
Por intermédio do saudoso François Lesure, então Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale de Paris, conheci Myriam Chiménes nos anos 80. Encontros em torno de Debussy prosseguem até hoje. Presentemente, Myriam é Secretária Geral do Centre de Documentation Claude Debussy. O Presidente, Pierre Boulez. O Centre está muito bem organizado e sediado junto à Bibliothèque Nationale. Myriam é igualmente Diretora de Pesquisa no CNRS (Institut de Recherche sur le Patrimoine Musical em France). Foi ao meu recital e presenteou-me com duas de suas obras recentes. Entre suas últimas produções, ressaltem-se: Francis Poulenc – Correspondance (1910-1963), reunida, escolhida, apresentada e anotada por Chimènes (Paris, Fayard, 2004, 1128 pgs.); La vie Musicale sous Vichy, sob a direção da ilustre amiga (Bruxelles, Complexe, 2001, 420 pgs.); Mécènes et Musiciens – Du Salon au Concert à Paris sous la IIIe République (Paris, Fayard, 2004, 776 pgs).; Marguerite de Saint-Marceaux – Journal (1894-1927); editada sob a direção de Myriam Chimènes (Paris, Fayard, 2007, 1467 pgs.). Desde 1983 colaboro para os Cahiers Debussy, publicação ímpar do Centre de Documentation sobre o grande compositor francês. Um pequeno texto-comentário sobre correspondência específica em torno de Debussy e um longo artigo abordando os Études para piano de 1915, são desafios próximos a me proporcionarem alegria.
Sonia Rubinsky é uma excelente pianista brasileira. Radicada em Paris, tem uma bela trajetória. Esteve em meu recital e apreendi que Sônia acaba de finalizar a gravação da integral para piano de Villa-Lobos para o consagrado selo Naxos. Ter sido escolhida para essa realização já é motivo respeitável. São oito CDs, que se somam a outros muito bem gravados pela pianista nascida em Campinas. Em suas gravações, percebe-se não apenas a sua pianística abrangente, como também uma inteligência acurada. Sônia menciona em todos os programas ter estudado com a minha sogra, a lendária professora Olga Normanha. Gratidão.
José Francisco Bannwart realizou na Universidade de São Paulo, sob minha direção, seu mestrado, versando sobre obras para piano de orientação mística e religiosa do excelente compositor Almeida Prado. Presentemente, em Paris, prepara junto à Sorbonne o seu Doutorado. O tema estende-se às influências recebidas por Almeida Prado de nomes fundamentais do ensino em França na segunda metade do século XX: Olivier Messiaen e Nadia Boulanger. Foram professores do compositor brasileiro. Fundamentais referências. José Francisco tornou-se padre durante o curso visando ao mestrado. É realmente uma figura aplicada, inteligente, curiosa e sensível. Tenho acompanhado o seu desenvolvimento. Impecável.
Proximamente penso escrever textos sobre a obra de um de meus escritores preferidos, Antoine de Saint-Exupéry. Li a sua opera omnia. Busquei traços que pudessem levar-me à memória de um grande e saudoso amigo, a quem sou profundamente grato, Baron André de Fonscolombe. Exerceu, entre tantos outros cargos importantes, o de Cônsul de França em São Paulo. Reencontrei-o muitas vezes nos cursos públicos de Marguerite Long. Freqüentava às quartas-feiras à noite seu apartamento, onde o Baron e sua mulher recebiam Simone de Saint-Exupéry, irmã do grande escritor e prima dos de Fonscolombe. Simone lia trechos de Citadelle, obra que foi até considerada como a Bíblia do século XX. Referencial. Conversei com Benoît de Fonscolombe, primo de André e de Antoine de Saint-Exupéry. Colhi informações fundamentais, a fim de partir das origens de meu conhecimento da obra do autor de Vol de Nuit, Pilote de Guerre, Courrier Sud, Le Petit Prince…