Firmino é um homem do mar. Pescador durante 60 anos, só bem recentemente vendeu seu barco. Septuagenário, vê as águas marítimas com amor e saudades do ondular da embarcação. Sente quaisquer alterações que interfiram no mar: fases da lua, ventos, aguaceiros, mudanças de temperatura. Firmino é uma enciclopédia do oceano algarvio. É, contudo, ao falar das pescarias vividas durante decênios que sua voz se altera e seus olhos brilham. Não há exageros. Sua competência, mercê de longa experiência, impede a empáfia, tipicidade do amador. Quando a noite descia, Firmino buscava o mar, só regressando pela manhã, aquinhoado ou não.
Conheci Firmino em Lagos, ao sul do Algarve. Em um fim de semana livre, aceitei o convite do colega e amigo, professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso. Firmino é pai de Maria Manuela, esposa do amigo musicólogo. Em casa dos sogros lacobrigenses ficamos hospedados. Igualmente mestre na culinária pesqueira, Firmino apreendeu o momento exato da perfeição ao assar sardinhas, carapaus, peixes-espada, cavalas. Algo inesquecível apreciar o que o velho homem das noites marítimas prepara. Há ciência, da escolha dos peixes à exatidão do ponto em que devem estar prontos.
Fiz-lhe muitas perguntas. A todas respondia com serenidade, mas amorosamente. Algumas poucas vezes sua vida esteve em risco, pois amalgamou-se ao mar e a intimidade se fez. Quando estivemos no Cabo de São Vicente, ponto referencial do ciclo das navegações em Portugal, falou-me do medo. Sim, nas primeiras viagens entre Sagres e o Cabo, a fim de pescar sardinhas, não decifrara ainda as correntes desse oceano que encontra em terra as grandes falésias. Insisti, e depois? Tornamo-nos íntimos, respondeu tranqüilamente. O que você encontrou durante aqueles sessenta anos passados diariamente nessas águas tantas vezes bravias? Qual o segredo do mar? Firmino olha-me e responde com sabedoria: O segredo do mar é o vento.
Na austera Igreja de Santa Maria, em Lagos, José Maria e eu ouvimos um belo concerto em que foi apresentado o Magnificat em Talha Dourada op. 17, de Eurico Carrapatoso. Dois corais, soprano, orquestra de cordas e cravo deram à obra uma interpretação entusiasmada. O Magnificat visita formas antigas, alternando-as com a modernidade. Esta associação proporciona um rico interesse. Carrapatoso é um dos compositores de destaque em Portugal. Quanto à Igreja de Santa Maria, foi construída no século XVI, tendo havido intervenções posteriores.
José Maria e eu, com as nossas respectivas esposas, não retornamos a Lisboa pela auto-estrada. Fomos serpenteando até bem além do Alentejo, para depois atingirmos novamente a rodovia principal. Ele quis que conhecêssemos duas das cidades que constam das Viagens na Minha Terra, de Lopes-Graça, coletânea de 19 peças por mim gravadas em CD pelo selo Portugaler. Silves, com sua cruz medieval trabalhada em pedra logo à entrada da cidade e sua bela Igreja ao alto, fez-nos lembrar de Em Silves já não há moiras encantadas. Ao visitar a lendária Ourique, veio-nos à mente Em Ourique do Alentejo , durante o S.João. Quanto a José Maria Pedrosa Cardoso, ele está presente em vários de meus textos. Inteligência rara, competência impecável no conhecimento da música do século XVI ao XVIII em Portugal e latinista profundo. Em Coimbra, fez os comentários de meu recital e apresentou um data show referente às Sonatas Bíblicas programáticas de Johann Kuhnau.
Ao conhecer, em 2004, João Gouveia Monteiro, Professor Associado da Universidade de Coimbra, pertencia o amigo à equipe reitoral da Universidade, como Pró-Reitor para a Cultura. Absolutamente ímpar na organização do Colóquio Carlos Seixas, que teve lugar nos próprios da Universidade, quando tive o privilégio de dar um recital na Biblioteca Joanina e uma conferência. Especialista em Estudos Militares, mais precisamente da História Medieval, Gouveia Monteiro é freqüência obrigatória nas mais importantes universidades, dentro e fora de Portugal. Entre suas numerosas publicações, salientem-se A Guerra em Portugal nos finais da Idade Média (Lisboa, 1988) e Aljubarrota, A Batalha Real (Lisboa, 2003). Sereno, com ampla visão da Universidade – senti bem essa qualidade quando até este ano esteve à frente da Pró-Reitoria – João Gouveia Monteiro é um estudioso vocacionado, voltado ao conhecimento profundo de sua área e conversar com o amigo é enriquecedor.
No dia do recital em Évora tive duas grandes alegrias. Almoçava com a dileta e competente amiga Idalete Giga, Diretora do Centro Ward Júlia D’Almendra em Lisboa e Professora da Universidade de Évora, quando, em dado momento, chegou o jornalista e historiador Joaquim Palminha Silva. Polêmico, é um apaixonado pela história de Évora. Li com profundo interesse seu livro Évora – Cidade Esotérica e Misteriosa (Lisboa, Europress, 2005, 270 págs.). Ofereceu-mo com bela dedicatória durante nosso encontro. Ouvi-lo contar as epopéias eborenses milenares é uma aula. Quanto à Idalete, foi em torno da saudosa gregorianista Júlia de Almendra, em cuja morada em Lisboa, à Rua d’Alegria,nº 25, hospedei-me diversas vezes na década de 80, que uma amizade se fez com a fidelíssima discípula da grande Mestra. Em todos os retornos à Lisboa, reencontro Idalete e sigo sua bela trajetória como educadora musical e gregorianista.
No recital no Convento dos Remédios estiveram presentes os amigos e professores da Universidade de Évora: João Vaz, organista, que está a realizar uma carreira consistente, e Manuel Moraes, Diretor e Regente do consagrado Segréis de Lisboa. Moraes ofereceu-me Gil Vicente e Évora – nos alvores de Quinhentos (Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2005, 121 págs.), importante coletânea de textos. Moraes contribuiu com o estudo Música para as peças de Gil Vicente estreadas em Évora e um CD, encarte do livro, com as obras mencionadas no texto interpretadas pelo conjunto por ele dirigido.
Rui Vieira Nery é figura exemplar na cultura musical portuguesa nos dias de hoje. Solicitado pelo mundo, percorre a Europa e as Américas proferindo palestras e conferências em Congressos, Seminários e Colóquios. Professor da Universidade de Évora, é Diretor Adjunto da Secção de Música da prestigiosa Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. Com a mesma facilidade, escreve sobre a música dos primórdios de Portugal ao Fado, essa expressão tão genuína do país. Ainda estou a ler o seu livro fundamental, Para uma História do Fado ( Lisboa, Público, Corda Seca, 2004, 301 págs.), onde está depositado um profundo conhecimento, atávico certamente, pois seu pai, Raul Nery, teve belíssima carreira de guitarrista de fado. Estivemos juntos, desta vez, em três oportunidades e sempre com uma alegria mútua. Disso tenho certeza.
Amizades mais recentes formaram-se a partir da Academia de Amadores de Música. Antônio Ferreirinho, professor de guitarra – violão, no Brasil – tem feito um belo trabalho visando à divulgação de Lopes-Graça e da música específica para guitarra em Portugal. No ano passado, fez-me conhecer parte da obra do excelente poeta José Gomes Ferreira, autor de poemas musicados por Lopes-Graça. Ferreirinho tem uma profunda admiração pela arte violonística do nosso Edelton Gloeden. Alexandre Branco Weffort, professor de flauta no Conservatório Nacional, desenvolve paralelamente um substancioso trabalho de recuperação da obra de Lopes-Graça (vide texto sobre Lisboa). José Carlos Florentino é entusiasta sereno do grande mestre nascido em Tomar. Generoso, sempre tem algo para mim. Desta vez, ofereceu-me o livro Olga Prats – Um Piano Singular, conversas com Sérgio Azevedo (Lisboa, Bizâncio, 2007, 369 págs.). Olga Prats divulga há décadas, com plena dedicação, as obras de Lopes-Graça e de outros importantes compositores contemporâneos portugueses.
Maria José de Souza Guedes e Luís Meireles formam um duo singular. Professores do Conservatório do Porto, a pianista e o flautista realizam uma carreira de mérito e já gravaram CDs referenciais, privilegiando a música contemporânea portuguesa. A atuação do casal estende-se a muitos países da Europa, mormente no Leste Europeu. Em todas as visitas ao Porto com eles me encontro e os temas interpretativos e didáticos dominam nossas conversas.
Através do amigo e arquiteto Benedito Lima de Toledo, conheci na cidade portuense seu colega António Menéres, Professor convidado da Universidade Lusíada do Porto. Figura de imensa cultura, apesar de não ser músico, tem prestado um contributo especial à música portuguesa na divulgação da obra de Óscar da Silva (1870-1958), compositor que pertenceu ao saudosismo - corrente estimulada pelo poeta Teixeira de Pascoais – e cuja obra é muito bem escrita. Menéres conheceu pessoalmente Óscar da Silva, tendo concebido o túmulo definitivo em Leça da Palmeira, homenagem ao ilustre compositor. A Sonata Saudade para violino e piano, de Óscar da Silva, tem essa atmosfera decorrente do prolongamento romântico tão característico também em obras do nosso Henrique Oswald (1852-1931). Versátil, Menéres escreveu Crónicas Contra o Esquecimento (Matosinhos, Edium, 2006, 238 págs.). Lerei com prazer.
José Abel Carriço, Professor da Escola de Música da Póvoa de Varzim, atendendo a um apelo de Pedrosa Cardoso, apresentou-me a Igreja Românica de São Pedro de Rates na Vila de Rates, berço do Primeiro Governador Geral do Brasil, Thomé de Souza. Há décadas pretendia visitá-la. Pormenorizou a construção, exterior e interior, e suas múltiplas particularidades. Saí absolutamente encantado. Tendo recebido uma rica bibliografia, penso um dia escrever um texto sobre esse maravilhamento.
Em meu programa Idéia, Criação e Interpretação, apresentado todas as terças-feiras, das 22 às 23 horas, na Rádio USP-FM 93.7, divulgarei apenas CDs inéditos de música portuguesa que recebi nessa viagem. Destaco In Memoriam Béla Bartók, suítes de Fernando Lopes-Graça para piano, na excelente interpretação de António Rosado; Polifonistas da Sé de Évora dos séculos XVI e XVII, na versão do Coro Eborae Musica, assim como, Música para o Teatro de Gil Vicente na interpretação dos Segréis de Lisboa.