Eterna Lembrança
Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem.
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm.
Fernando Pessoa
Vila Bonfim, hoje integrada à cidade de Ribeirão Preto, viu nascer minha mãe, Alay Ferreira Gandra, aos 16 de Julho de 1907. Os avós maternos tiveram 16 filhos e minha mãe intermediava a grande prole. Infância, adolescência e juventude foram vividas na simplicidade, no espírito econômico e, sobretudo, no saber dividir. A alegria dos primeiros anos permaneceria durante toda a vida. Em 1933, quando se casa com meu pai, José da Silva Martins, após longo noivado, transfere-se para São Paulo e aí permanece até seus últimos dias: Alay Gandra Martins, doravante.
Como mãe, soube acalentar os sonhos de seus quatro filhos: Ives, José Paulo, João Carlos e eu. Ter pertencido a uma grande família talvez a tenha ensinado a não ter predileções. Seu amor era distribuído de maneira sempre equânime.
As lembranças mais marcantes remontam ao passado longínquo. Minha mãe lutou bravamente para que nada nos faltasse, a ter um verdadeiro instinto de como proteger, sem excessos, seus filhos. Se meu pai foi um lutador, trabalhando duramente, era ela que, atenta, zelava por tudo em casa, jamais deixando, entre tantas atribuições familiares, de estimular o marido nesse labor cotidiano e intenso. Estou a me lembrar dos anos da Segunda Grande Guerra, quando alguns racionamentos eram naturais. Levava-nos à fila na padaria e cada um recebia seu pão de milho. Em casa, cuidava com meu pai de um galinheiro doméstico, onde não faltavam aves para o abate e ovos matinais. Da horta, entendia todos os atalhos que levam às belas hortaliças. No ambiente feliz desses primeiros anos íamos vivendo sob o inefável olhar materno. Na distribuição dos serviços de casa, ficou a mim reservado, entre outros, levar o carrinho à feira-livre. Eram extraordinários seu bom humor, os diálogos com os feirantes – sabia o nome de todos – e a certeza das escolhas. Se freqüento até hoje, com prazer, a feira-livre, certamente devo à minha mãe tal preferência. Cozinhava à perfeição as variedades de receitas relacionadas ao bacalhau, ao frango – do abate à mesa -, ao cuscuz, às tortas, às sopas – caldo verde, juliana, de feijão -, aos doces – de abóbora, de batata, seu incomparável arroz doce, entre tantas outras receitas mágicas. Havia sempre a alegria contagiante não só no preparo de todas essas iguarias, mas também ao perceber a aprovação de todos. Outro verdadeiro dom que a mãe possuía era a arte de fazer frivolitê com uma habilidade extraordinária. De posse de duas navetes de madrepérola, após o preenchimento das bobinas interiores com linhas especiais, criava toalhas de mesa, outras pequenas para adornos e até blusas. Tenho ainda em meus ouvidos aquele ruído seco e constante dos fios passando pelas bordas da navete. Dona Olímpia, uma professora muito educada, ensinara esse mister e outros mais à pupila e durante anos freqüentou nossa casa. Ensinou também bordados e crochê, e minhas filhas guardam belos cobertores plenos de personagens do lúdico infantil, todos idealizados pelas mãos hábeis de minha mãe. Lembro-me, ainda miúdo, que Dona Olímpia jantava às quartas-feiras após a aula e pegava o bonde que a conduziria ao bairro de Moema, até então êrmo, a ser sua casa uma das poucas existentes. Ainda voltarei ao tema desses bondes, dito camarões, que nos levavam todos os domingos pela manhã a Santo Amaro, quando visitávamos os avós maternos. A morada ficava pouco abaixo do Largo Treze, então verdadeiro cartão postal de pacata cidade de interior, com sua Igreja, ruas estreitas e tão pouca gente.
Minha mãe contrapunha à disciplina espartana – mas não desprovida de afeto – que meu pai impunha aos filhos, quanto aos estudos e às responsabilidades de cada um, o carinho, a criar o equilíbrio. Reprimendas impostas por ele, em uma época em que tal prática mostrava-se comum, eram sempre atenuadas, mercê dessa santa intermediação.
Vêm-me à memória auditiva as melodias do cancioneiro popular que a mãe cantava, fazendo-se acompanhar ao violão, em um todo harmonioso. Nós adorávamos, os amigos que freqüentavam nossa casa sentiam esse ambiente diferenciado, pois a mãe foi, igualmente, uma anfitriã simples e contagiante. Meu pai, que sonhava música e tinha fascínio pelo piano – reminiscências de sua difícil juventude em Portugal – comprou um de armário, um belo Schwartzmann, a acreditar que minha mãe pudesse estudar. Não o fazendo, João Carlos e eu iniciamos então nosso aprendizado. Estávamos ainda a realizar os primeiros exercícios dos cinco dedos, escalas e arpejos, e já nossos pais, sentados num sofá após o jantar, queriam ouvir os resultados, estimulando-nos, hábito que mantiveram durante a adolescência e juventude dos filhos pianistas.
Quando em França para os anos de estudos de música, semanalmente recebia cartas plenas de carinho, de saudades e de estímulo. Qualquer portador era pretexto para que enviasse ao filho distante alimentos ou roupas. Guardou por toda a vida meus cartões enviados da Europa. Hoje em minhas mãos, são a evidência de um afeto muito profundo e de sua imensa preocupação com minha saúde, pois reiterava eu nesses escritos, a fim de não inquietá-la, a minha boa disposição.
Da mesma maneira, soube repartir, sem distinções, seu amor entre netos e bisnetos. Nos partos de suas noras, lá estava a postos, atenta a tudo. Ela, que sofreu quase vinte intervenções cirúrgicas durante sua longa existência. Minha primeira filha talvez não houvesse nascido viva não fosse a firmeza de minha mãe que, já no hospital, horas antes do parto, soube impor-se à inexperiente enfermeira, saindo ela própria à procura do médico, pois percebeu que era chegada a hora.
Nos últimos anos, uma névoa começou a sobrevoar sua mente e o mal de Alzheimer foi pouco a pouco se instalando. Suas últimas recordações eram melodias que cantara alegremente numa outra época. Ao partir, aos 31 de Maio de 1999, meu pai entendeu que sua vida também se encerrava, sobrevivendo um ano à morte da mulher com quem fora casado durante 66 anos. Tinha ele 102.
No centenário de minha mãe, fica esse sentimento de saudade, sim, mas de plena felicidade por tudo o que ela foi para as gerações que tiveram o privilégio de conhecê-la.
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