A Profissão e o Olhar Diferenciado
Ir, pelas tardes, até a fonte
Ver as pequenas, a encher e a rir,
E ver entre elas o Zé da Ponte
Um pouco torto quase a cair.
António Nobre
A Crônica é um gênero literário especial. Reunidas em coletânea, ficam a evidenciar ao longo do tempo, à maneira de um conta gotas, o corpus de um autor. Assemelha-se, em parte, à missiva, pois esta tipifica as mensagens a destinatários os mais diversos, aquela estabelece um solilóquio em que, paulatinamente, o olhar do cronista cerca suas preferências, ou até idiossincrasias.
António Menéres é arquiteto. Este registro é fundamental para o entendimento de Crónicas Contra o Esquecimento (Matosinhos, Edium, 2006, 231 pág.). O autor viaja à sua infância e de lá sobrevoa as planuras da lembrança com uma nitidez absoluta, sem nuvens a embaçar a visão lúdica e onírica. Nascido em 1930 em Matosinhos, ao lado de Leça da Palmeira, Menéres, com formação mergulhada na precisão das estruturas e dos projetos, não perde jamais a flama reverencial aos primeiros anos de alegria. As duas cidades são constantes e amorosas referências. Próximas do Porto, é contudo esse binômio o básico fulcro de suas crônicas. Revisitadas, as pequenas urbes revolvem cinzas resultantes da ação predadora de interesses, por vezes inconfessos, do progresso. O autor está permanentemente a insistir na necessidade de preservação. Se o rio que atravessava Leça em sua infância transformou-se num filete, ainda assim lá está ele com suas parcas águas em direção ao mar. Constata a existência, pois é parte de seu acervo de recordações. A Festa do Senhor de Matosinhos é lembrada sob a égide carinhosa daquele que dela participou tantas vezes. Festejo sacro-profano, da comunidade inteira, mas enraizado na fé interior de cada indivíduo que o freqüenta, após um longo ano de espera.
Rememorar o passado é ter em mente Dona Cacildinha, a professora dos primeiros anos que, após boas notas do miúdo Antoninho, oferece-lhe Os Três Porquinhos com bonita dedicatória. Importa considerar o efeito desse livro, “ para mim tão valioso como um diploma que, muitos anos depois, também me foi conferido mas que é um bom livro de contos infantis, isso mesmo: Lombada vermelha, bem viva ainda, com o título Os três porquinhos numa edição da bem tripeira Livraria Lello & Irmão – Porto, que começava como todas as histórias: Uma vez eram três porquinhos, gordos, muito alegres, de corpo rosado, focinho risonho…”. Menéres, a partir desse livro pueril, apreende o gosto pela leitura. Diz-nos em plena maturidade: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios”. Tornar-se-ia amante dos alfarrabistas, das raridades lidas e cultuadas. Ter encontrado no Rio de Janeiro uma edição de A Formosa Lusitânia, de Lady Jackson, livro prefaciado e anotado pelo notável romancista Camilo Castelo Branco, uma alegria, pois a obra fora impressa no Porto, em 1877. Faz um longo comentário sobre os personagens envolvidos.
Menéres venera o passado literário de Portugal. Desfilam em suas crônicas, entre tantos ilustres: Camões, Camilo Castelo Branco, Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Antônio Nobre, Miguel Torga. Deste último, uma frase que deveria ser sempre um axioma: Quando um escritor escreve uma coisa significativa, fá-lo tendo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. O debruçar nesse culto é evidente, mas Menéres jamais permanece na citação ou no comentário superficial. Obras lidas, analisadas e mais, amorosamente guardadas. A familiaridade com figuras tão marcantes talvez tenha contribuído para o estilo esmerado do autor das Crónicas Contra o Esquecimento, a provocar no leitor um prazer adicional.
Apesar de confessar que “nunca me foi possível distinguir um dó dum ré, o que não me impede de escutar, quase quotidianamente, boa música…” é evidente a sua admiração por Óscar da Silva (1870-1958), notável pianista e compositor de méritos, nascido na cidade do Porto e falecido em Leça da Palmeira. Sessenta anos separam o compositor – um dos últimos alunos de Clara Schumann – do cronista, mas indelével fica a imagem sonora: “Rememoro os inúmeros momentos naquela sala de Leça, em que os filhos da casa e eu o ouvíamos tocar, explicando pormenores e contando ocorrências sempre curiosas – quantas vezes com ironia…” , comenta o autor. A admiração fá-lo propagar vida e obra do homenageado. Louve-se o empenho das Instituições de Matosinhos nessa constante recuperação de vulto significativo da cultura musical em Portugal. O arquiteto sensível foi, inclusive, o autor do projeto do túmulo do pianista compositor.
Não obstante as homenagens merecidas aos que permaneceram pela qualidade cultural, Menéres pormenoriza-se também nos personagens do cotidiano de Matosinhos ou Leça, cidadãos tratados com ternura, dir-se-ia, verdadeiro outro culto aos que se foram e participaram da comunidade como um todo.
Sem pieguices, os textos evocam, sugerem, apontam soluções, rememoram, provocam.
Nem todas as Crônicas são lembranças diáfanas. Revolta-se contra a destruição de monumentos históricos ou, ainda, indigna-se profundamente contra vandalismos. Sentir o período em que se vive, se sob um prisma estabelece até o inconformismo, sob ângulo outro permite a evocação do passado e a vivência atual de uma de suas paixões, as águas marítimas: “o fascínio que sobre mim sempre exerceu aquele ‘Diálogo do Vento e do Mar’, parafraseando o título dado por Debussy a um de seus Três Esboços Sinfônicos”. Velejaria, como hobby, pelo litoral lusitano, a compreender a sensação de liberdade. Traça o histórico de sua dinastia de homens ligados ao mar. Vocação entre vocações. Não é um acaso a citação, em crônica sobre Leça antiga, dos versos finais do soneto As algas, de António Nobre: E eu cismo, ao ver esses trapos, / Que as algas são os farrapos / Dos vestidos das sereias! Esse alumbramento pelo mar à busca do vento, do ondular, e quem sabe…das sereias.
A crônica São Sebastião do Alto e a Minha Família Brasileira revela a avó materna, brasileira, e os ensinamentos passados à progenitora de Menéres: “Minha mãe teve pois uma educação com sabor carioca e recordo que, bem menino, tínhamos sempre feijão preto aos sábados, que delícia Santo Deus!” Outra verdadeira delícia é a leitura de Crónicas contra o Esquecimento. Poucos autores souberam transmitir tão sinceramente, e com tanta riqueza de pormenores, o cotidiano através do caminhar, assim como a descoberta dos livros que serve de acúmulo ao simplesmente vivido. Vale a pena percorrer essas preciosas crônicas.
Crónicas contra o Esquecimento (Chronicles against Oblivion):
In his book, the Portuguese architect António Menéres remembers, among other facts, events of his childhood spent in Matosinhos, delving into the emotions of experiencing such events, tells us of his love of books and music and of his indignation at the destruction of historic monuments of Portugal.
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