A Valorização do Humanismo
Estuda o teu trabalho e realiza-o,
trabalhando como um Hércules.
Thomas Carlyle
Eduardo Etzel (1906-2003) foi um homem extraordinário, figura das mais marcantes que conheci. Médico por formação, tornou-se um dos pioneiros da cirurgia de pulmão no Brasil. Em um período em que a tuberculose grassava impune, desenvolveu técnica reverenciada por seus coetâneos. Um de seus discípulos, o célebre Dr. Eurípedes Zerbini, que realizou o primeiro transplante de coração no Brasil, considerava-o seu primeiro mestre na arte cirúrgica. Operava em São Paulo e também, nos finais de semana, no Sanatório Vicentina Aranha em São José dos Campos, assistindo as comunidades mais carentes. O arguto senso anatômico, unido à vocação de observador e pesquisador, teriam desenvolvido em Eduardo Etzel a admiração pela arte sacra popular, pois estava clinicando na região do Vale do Paraíba, riquíssima nessa manifestação. Com o advento dos antibióticos e dos quimioterápicos e conseqüente queda vertical da importância da cirurgia da tuberculose, formou-se psicanalista ortodoxo e durante décadas desenvolveu essa atividade. Paralelamente ao trabalho como psicanalista, dedicou-se também às pesquisas de campo relacionadas à Arte Sacra Popular. O quadro mostrar-se-ia perfeito. O médico a entender a anatomia do corpo humano, o psicanalista a penetrar o de profundis dos pacientes. Esta somatória prepararia Eduardo Etzel para outro ato inédito, ou seja, o de ser também pioneiro no desvelamento, através da pesquisa de campo, da Arte Sacra Popular do Brasil, coletando rico material e escrevendo livros antológicos sobre a especialidade. Parte de seu acervo está hoje depositada no Museu de Arte Sacra de São Paulo e no Museu de Antropologia de Jacareí, no Vale do Paraíba.
Conheci-o de maneira inusitada. Meu sobrinho, Roberto Vidal da Silva Martins, e eu freqüentávamos periodicamente o mercado da “Breganha”, como é chamada a feira de Taubaté aos domingos. Certa vez, deparei-me com pequenas imagens de barro cozido bem antigas, uma datada de 1836, e o fato intrigou-me. Tendo encontrado num alfarrabista Imagens Religiosas de São Paulo ( São Paulo, Melhoramentos Edusp, 1971), fiquei encantado com a precisão, o rico material iconográfico e o conhecimento profundo do autor, Eduardo Etzel, sobre a matéria. As peças que vira assemelhavam-se a algumas existentes no livro. Após a leitura, procurei na lista telefônica o número do autor e liguei, apresentando-me como um admirador. Soube que assistira a um meu recital. Convidou-me para jantar em sua casa no dia seguinte com minha mulher e uma profunda amizade entre dois casais nasceria desse encontro. Vendo meu interesse, disse-me que passaria ao já “discípulo” conhecimentos adquiridos. Isto em 1975.
Durante dez anos, percorri aos sábados, juntamente com meu saudoso amigo Carlindo Pavan, a região de Santa Isabel, Parateí, Igaratá, Nazaré Paulista e Itaquaquecetuba, subindo morros, penetrando em pequenas matas, descampados e riachos, a usar botas devido às serpentes que por vezes encontrávamos, na pesquisa prioritária dos traços que o extraordinário santeiro popular Benedito Amaro de Oliveira, o Dito Pituba (1848-1923), deixara na região. Isto só foi possível graças às indicações precisas a mim transmitidas por Eduardo Etzel que, aos 70 anos, já não sentia o mesmo vigor para continuar com essas marchas que se estendiam das 8 da manhã ao anoitecer. Etzel acreditou sempre que apenas o entendimento a partir da pesquisa de campo possibilita ao que a ela se dedica visão mais abrangente do objeto estudado, pois a área pesquisada está impregnada do ambiente que levou ao ato criativo e da vivência do devoto, destinatário da imaginária. Naqueles anos foram encontradas, em casas dos humildes homens do campo, criações de Dito Pituba, paulistinhas anônimas (imagens em terracota pintadas e com a base vasada), nós de pinho (pequenas peças de devoção esculpidas por escravos e seus descendentes), oratórios, crucifixos e outros mais objetos de culto. Muitos, abandonados em santas-cruzes, espécies de “capelinhas” à beira de estradas, onde os devotos largam imagens quebradas ou semidestruídas.
Aos domingos à tarde visitava o Dr. Eduardo, como o chamava, e um universo se abria. Pacientemente ensinou-me a arte da restauração, que consistia basicamente em limpeza, retirada de repinturas com o maior cuidado, colagem de fragmentos quebrados, preenchimento esporádico com gesso pedra, alisamento com lixas especiais e cuidadoso retoque. Para esse mister, Eduardo Etzel desenvolvera técnica própria, prática, segura e de resultados. Disse-me que alguns procedimentos vieram da larga experiência como cirurgião. Não poucas vezes ficávamos surpresos com a descoberta na pintura original, após várias camadas retiradas, das iniciais do santeiro ou mesmo a data de feitura. Durante esses anos privilegiados fui analisado sem o saber. Metodologia sui generis. Etzel conseguiu “restaurar” tantos outros fragmentos de meu passado nessas conversas em torno da imaginária sacra popular.
Em fins de 1977, realizávamos, com ampla aprovação do Professor Pietro Maria Bardi, uma exposição no MASP com obras de Dito Pituba por nós recolhidas em períodos diferentes. Nos anos que se seguiram, continuamos esse trabalho de recuperação, verdadeira ourivesaria. Após o exaustivo restauro, tomávamos um lanche preparado pela sua inseparável companheira Kitinha, seguido de sessão de leitura de suas pesquisas, que resultariam em tantos livros fundamentais à bibliografia da arte sacra no Brasil.
Tardiamente, escreveu também outras obras: o polêmico Escravidão Negra e Branca. O Passado através do Presente (São Paulo, Global, 1976), em que lança olhar singular sobre os séculos de escravidão, que continua existindo com outra roupagem; a autobiografia Um Médico do Século XX Vivendo Transformações (São Paulo, Nobel-Edusp, 1987, 236 pgs.), no qual o analista busca respostas a partir da interpretação de episódios ocorridos desde a infância; Filosofando com o Miró (São Paulo, Ateliê, 2000, 271 pgs.), interessantíssimas reflexões, espécie de “solilóquio”, tendo seu fox-paulistinha Miró como fiel ouvinte. Contudo, são seus excepcionais livros sobre arte sacra que definitivamente estarão a perenizar o grande humanista. Sobre este conjunto monolítico, inigualável no Brasil, farei comentários no próximo post.