Em torno de um Centenário ( I )

Camargo Guarnieri e J.E.M. - 1954 - foto: José da Silva Martins

Um ego forte, bem estruturado,
enfrenta e luta, tergiversa,
contorna e ressurge acima dos obstáculos,
pois viver é lutar e vencer
na repetição dos impecilhos até o final.

Eduardo Etzel

Mozart Camargo Guarnieri nasceu em Tietê, Estado de São Paulo, no dia 1º de Fevereiro de 1907, vindo a falecer em 1993. As comemorações de seu centenário, apesar de esforços, não estão à altura do grande compositor que ele foi. Obras são executadas em festivais ou isoladamente, mas não com a freqüência que seu trabalho merece. Dir-se-ia, uma pálida manifestação geral. Artigos e livros têm destacado a vida e a criação de Camargo Guarnieri, alguns relevantes, mas ainda pouco se fez. Considerável parcela de sua produção permanece em manuscritos autógrafos. Camargo Guarnieri pertenceu à tríade ímpar da música brasileira de uma época, completada por Villa-Lobos (1887-1959) e Francisco Mignone (1897-1986).
Sobre o homenageado, diria dele ter guardado lembranças indeléveis de 1952 a 1964. Os contatos posteriores, em São Paulo, foram mais esporádicos. No decênio de 50, Guarnieri freqüentou muito a casa de meus pais, que o convidavam reiteradas vezes para jantar. Apreciadores de um bom vinho, o ilustre amigo e meu pai deliciavam-se com algumas garrafas de safras raras. Guarnieri, nessas oportunidades, ouvia-nos, ao João Carlos e a mim, sendo que dedicaria no período duas obras para meu irmão. Tendo nosso professor de piano, José Kliass, espírito “ecumênico”, raro entre os mestres da especialidade, recebemos então, à Rua Lupércio Camargo, onde morava o compositor, muitas aulas de música e também de interpretação pianística. Aprendemos, sobremaneira, a lidar com a frase musical, uma das tantas qualidades do também professor de música na ampla acepção.
Permaneci alguns anos em Paris, a estudar nas classes dos pianistas e professores Marguerite Long e Jean Doyen. Morava no XVIIème, 17 bis, Rue Légendre, em um terceiro e último andar. Tratava-se da sede social de uma importante casa de essências para perfumaria, da qual meu pai foi agente em S.Paulo durante seis décadas: Roure Bertrand & Justin Dupont, com fábrica em Grasse, a capital das essências. Nesse andar, onde eram guardados os arquivos da empresa, podia estudar até altas horas da noite, pois não tinha vizinhos após às 17 horas.
Quando Guarnieri chega a Paris, em fins de Janeiro de 1960, o colega e pianista Gilberto Tinetti e eu fomos recepcioná-lo no terminal de ônibus dos Invalides. Chegara cansado e amargurado devido a problemas afetivos. Dias conturbados, merecendo reflexões, daí ter escolhido Paris, onde permaneceria cerca de um mês. Ao comentar com o Presidente da Roure Bertrand a importância de Camargo Guarnieri no cenário musical e a fase difícil pela qual passava, Charles Vidal pediu-me que o convidasse, em seu nome, para hospedar-se no terceiro andar, pois espaço não faltava. O compositor exultou, porque teria maiores facilidades de vida e de estudo. Tempo extraordinário foi o convívio. “Monsieur” Vidal levou-nos para jantares em restaurantes do padrão de La Tour d’Argent, Le Fouquet ou Maxim’s, completamente fora de nossas possibilidades, e lá íamos nós bem felizes.

Kleusa de Pennaforte e J.E.M. - 1960 - foto: Antoine Robert

Durante a estadia de Guarnieri, recebíamos a visita de músicos e amigos. A cantora Kleusa de Pennaforte vinha sempre ensaiar, pois realizaram recitais na França e na Itália. Também lá estiveram o competente compositor, regente e professor Louis Saguer – com quem estudei durante três anos matérias teóricas, a conselho do grande Fernando Lopes-Graça – e outros mais. Ricardo Tacuchian, em artigo exemplar (Relações da Música Brasileira com Lopes-Graça, in Brasiliana, Revista Quadrimestral da Academia Brasileira de Música, nº 17, maio de 2004, p. 18), comenta: “Em bilhete informal de Paris, 28.2.1960, Guarnieri comunica que está naquela cidade desde o dia 29 de Janeiro e que encontrou, no apartamento de José Eduardo Martins, dois outros amigos comuns: Louis Saguer e Jean Riculard”. Sob o mesmo teto e com dois pianos, não havia dificuldades quanto aos nossos estudos. Permanecia Guarnieri a compor, utilizando-se muitas vezes do piano, ou a escrever suas cartas, pois era um missivista absoluto. Nesse período, eu estudava em média de seis a oito horas por dia. Estou a me lembrar de que Guarnieri achava absolutamente necessária a disciplina na fase de aperfeiçoamento. Não tínhamos, assim, problema algum de relacionamento. Ia aos meus cursos e o compositor aos seus compromissos na cidade, mas conversávamos muito sobre os mais variados assuntos, a preferir contudo contextos musicais. Jantávamos em bistrots, ou tomávamos lanches no próprio apartamento. Por várias vezes o amigo almoçou na cantina da firma e, com bom senso de humor, granjeou admiração de todos os funcionários.
Após o seu regresso ao Brasil, mantivemos um bom relacionamento epistolar. Tópicos das cartas de Camargo Guarnieri referentes ao convívio amistoso estarão no texto a ser publicado na próxima semana.