É Possível Julgar?
There’s a fine line between genius and insanity.
I have erased this line.
Oscar Levant
Uma aluna fez-me uma pergunta bem mediática: qual o maior pianista do mundo? Sorri, a dizer-lhe que essa é uma longa história, plena de debates e preferências sem fim.
Através dos tempos, o homem tem como uma de suas seguranças a comparação. A reação é rigorosamente humana. Quanto aos escritores, filósofos, músicos, pintores, escultores, cientistas, santos ou sábios, sempre há as predileções. Maior a radicalização, menor o bom senso. Haveria em cada categoria aquele que pudesse ser considerado o melhor? Seria absolutamente impossível catalogar. Sabemos que um atleta tem sua performance aferida pelo cronômetro e será considerado o maior entre todos pelos tempos e recordes quebrados. Aí sim, há algo objetivo que pode ser avaliado.
Em todas as áreas de atuação, mais acentuadamente nestas últimas décadas, elege-se o “maior”. Premiações seriam apenas o corolário de pré-decisões tomadas pelos aficionados, leigos, entendidos, críticos e todas as outras possíveis categorias. Quantas não são as vezes, de Nobel a Oscar, passando-se por milhares de premiações gradativamente menos ventiladas, em que o agraciado desaparece logo após, por falta de bases seguras? Num aspecto menos nobre, muitos prêmios ou homenagens são atribuídos após entendimentos dúbios em bastidores surdos.
Na área pianística, aproximadamente dois séculos viram legiões de maiores pianistas. Críticos e público fizeram as suas escolhas. Havia quem considerasse Carl Tausig (1841-1871) melhor pianista do que Franz Liszt (1811-1886), outros indicariam Ignacy Paderewski (1860-1941), Ferrucio Busoni (1866-1924), Joseph Hofmann (1876-1957), Leopold Godowsky (1870-1938), Wilhelm Kempff (1895-1991), Wilhelm Backhaus (1884-1969), Alfred Cortot (1877-1962), Sergei Rachmaninoff (1873-1943), Vladimir Horowitz (1903-1989), Walter Gieseking (1895-1956). Arthur Rubinstein (1886-1982), Clara Haskil (1895-1960), Claudio Arrau (1903-1991), Vladimir Sofronitsky (1901-1961), Arturo Benedetti Michelangeli (1920-1995), Emil Guilels (1916-1985), Sviatoslav Richter (1915-1997), Gleen Gould (1932-1982) e tantos outros ilustres, a ostentarem o galardão individual outorgado pelos aficionados do “maior pianista”. A lista é realmente extensa. Essas preferências recrudescem sempre, na medida em que, em determinadas gerações, grandes pianistas coexistem dividindo platéias pelo mundo. Quando a morte é precoce, cresce o carisma do pianista desaparecido e ele pode tornar-se uma lenda. Foram os casos de Dinu Lipatti (1917-1950) e William Kapell (1922-1953). Entre os pianistas vivos, escolhas mostram-se claras e por vezes plenas de radicalismo. É motivo a mais para a ebulição que leva à divulgação de nomes que se consagram perante platéias entusiasmadas.
Sob outra égide, é difícil dizer quem foi ou é o “maior”. Primeiramente, aquele que, considerado o melhor, restringe seu repertório a período preciso, mesmo incensado tem suas limitações, pois não teria abrangência. Extraordinário na interpretação de obras de uma época, ser-lhe-ia imputada a dúvida quanto à compreensão de outros períodos da criação musical. Contudo, esse debate passa à margem do grande público. Quando uma expressiva parcela da crítica, do público e de seus pares pianistas detectou em Vladimir Horowitz a primazia como o maior, ateve-se não apenas às qualidades técnico-sonorísticas do intérprete, mas ao seu repertório que se estendia, na perfeição possível, de D. Scarlatti a Prokofieff, Kabalewsky e Barber, seus contemporâneos. Teríamos, pois, na excepcionalidade e na extensão repertorial, critérios de aferição. Todavia não há, nem poderia haver unanimidade em área tão subjetiva como a da interpretação. Horowitz, inclusive, serviu de modelo, e como toda imitação tem suas características detectáveis, tentaram espelhar-se em sua exuberância técnico-pianística, sem contudo alcançarem a abrangência, buscaram a musicalidade e o “toque”, mas o resultado mostrar-se-ia arbitrário. Chegaram até a escrever transcrições à la Horowitz.
É notório, entre os intérpretes mais conhecidos em todas as áreas instrumentais, o auto-incensar, a necessidade de passar, quando competência existe, a aura do insuperável. Este fato é mais palpável entre cantores, violinistas, pianistas e regentes, num sentido geral. Toda uma estrutura é edificada e empresários, mídia e público recebem o ídolo e o cultuam. E este será comparado a outro pelas correntes contrárias. Faz parte da existência o espírito dialético.
Em termos brasileiros, um trio de mulheres notáveis evidenciaria divisões de opiniões. Antonieta Rudge (1885-1974), Magdalena Tagliaferro (1893-1986) e Guiomar Novaes (1896-1979) teriam atingido níveis raros de qualidade. Nem por isso, crítica e público deixaram de ter as suas preferências. Se a carreira de Guiomar Novaes foi direcionada unicamente à performance, se em Magdalena Tagliaferro a intérprete estaria amalgamada à grande mestra, nem por isso Antonieta Rudge, que teve uma trajetória mais curta, deixou de evidenciar qualidades absolutamente extraordinárias. As três foram indubitavelmente paradigmáticas.
A proliferação de pianistas da média e da nova geração, entre 15 e 40 anos, diluiu de maneira acentuada a idéia do “maior”. Contam-se às muitas centenas pianistas de mérito percorrendo o mundo ou, muitas vezes, apenas o seu próprio país. Quantas não foram as vezes que se ouviu ou se leu: tal figura é o maior pianista de seu país? Para aqueles que viajam, há sempre quantidade de surpresas qualitativas, algumas de altíssimo nível. Essa assertiva tornaria até insensata a possibilidade de se nomear o melhor, pela diversidade do avaliar. Quais os critérios? Baseados em repertório ou repertórios? Estruturados na performance ao vivo ou nas gravações? Num aspecto mais pragmático, não haveria por parte do público essa predileção pelo repetititivo ad nauseam, a provocar no intérprete a necessidade imperiosa de se repetir para continuar sua sobrevivência? E, em sua limitação repertorial absoluta, esse público não compararia apenas poucas obras interpretadas, ilusão de conhecimento, mas verniz social? Saint-Exupéry, em seu isolamento sobre as nuvens, já ponderava que a vaidade é uma doença. Sob outro aspecto, a internet inunda aqueles que a ela têm acesso de profusão de fantásticos pianistas, assim como de legião de pouco ou nada capazes. Está tudo registrado. Se, de um lado, análise elementar faz separar o joio do trigo, nem sempre a aferição é perceptível pelo leigo. Daí joio e trigo convivendo na tela do computador. Democracia dos opostos. Em Tempo de Concerto da USP-FM, 97.3, no programa Idéia, Criação e Interpretação que vai ao ar às terças-feiras (22,00 horas), estarei a apresentar quatro pianistas paradigmáticos do passado: Wilhelm Kempff, Vladimir Horowitz, Emil Guilels e Clara Haskil.
Se tantos foram considerados o Maior do Mundo, se outros tantos se autoproclamam os melhores do planeta, ou de seus territórios, a única certeza foi expressa pelo bom pianista, compositor e ator norte americano Oscar Levant (1906-1972), autor da epígrafe deste post. Atribui-se a ele a resposta a uma pergunta a respeito de qual seria o maior pianista do mundo. Teria respondido que, como todos almejam ser ou se consideram os melhores, ele estava absolutamente tranqüilo, pois tinha a convicção de ser o segundo maior pianista do Terra, posição jamais reivindicada por qualquer colega.
The World’s Greatest Pianist:
The media and the public take great pleasure in electing the best in every category. It is not different with pianists. But would it be possible to choose “the greatest pianist in the world”? I guess not, with so many serious contenders. Many hundreds of excellent pianists are scattered all over the globe. On which criteria should the evaluation be based: the flawless technique, the exuberance of the touch, the extension of the repertoire, live or recorded performance?. Maybe the best answer to this question was given by the American pianist, composer and actor Oscar Levant (1906-1972), who is quoted to have said that since all are hailed as “the best” – or proclaim themselves as such – he was happy to be the second best pianist in the world, a position never claimed by any of his fellow musicians.