Navegando Posts publicados em novembro, 2007

É Possível Julgar?

Tocando Debussy - Carlos Oswald, água forte, 1914

There’s a fine line between genius and insanity.
I have erased this line.

Oscar Levant

Uma aluna fez-me uma pergunta bem mediática: qual o maior pianista do mundo? Sorri, a dizer-lhe que essa é uma longa história, plena de debates e preferências sem fim.
Através dos tempos, o homem tem como uma de suas seguranças a comparação. A reação é rigorosamente humana. Quanto aos escritores, filósofos, músicos, pintores, escultores, cientistas, santos ou sábios, sempre há as predileções. Maior a radicalização, menor o bom senso. Haveria em cada categoria aquele que pudesse ser considerado o melhor? Seria absolutamente impossível catalogar. Sabemos que um atleta tem sua performance aferida pelo cronômetro e será considerado o maior entre todos pelos tempos e recordes quebrados. Aí sim, há algo objetivo que pode ser avaliado.
Em todas as áreas de atuação, mais acentuadamente nestas últimas décadas, elege-se o “maior”. Premiações seriam apenas o corolário de pré-decisões tomadas pelos aficionados, leigos, entendidos, críticos e todas as outras possíveis categorias. Quantas não são as vezes, de Nobel a Oscar, passando-se por milhares de premiações gradativamente menos ventiladas, em que o agraciado desaparece logo após, por falta de bases seguras? Num aspecto menos nobre, muitos prêmios ou homenagens são atribuídos após entendimentos dúbios em bastidores surdos.
Na área pianística, aproximadamente dois séculos viram legiões de maiores pianistas. Críticos e público fizeram as suas escolhas. Havia quem considerasse Carl Tausig (1841-1871) melhor pianista do que Franz Liszt (1811-1886), outros indicariam Ignacy Paderewski (1860-1941), Ferrucio Busoni (1866-1924), Joseph Hofmann (1876-1957), Leopold Godowsky (1870-1938), Wilhelm Kempff (1895-1991), Wilhelm Backhaus (1884-1969), Alfred Cortot (1877-1962), Sergei Rachmaninoff (1873-1943), Vladimir Horowitz (1903-1989), Walter Gieseking (1895-1956). Arthur Rubinstein (1886-1982), Clara Haskil (1895-1960), Claudio Arrau (1903-1991), Vladimir Sofronitsky (1901-1961), Arturo Benedetti Michelangeli (1920-1995), Emil Guilels (1916-1985), Sviatoslav Richter (1915-1997), Gleen Gould (1932-1982) e tantos outros ilustres, a ostentarem o galardão individual outorgado pelos aficionados do “maior pianista”. A lista é realmente extensa. Essas preferências recrudescem sempre, na medida em que, em determinadas gerações, grandes pianistas coexistem dividindo platéias pelo mundo. Quando a morte é precoce, cresce o carisma do pianista desaparecido e ele pode tornar-se uma lenda. Foram os casos de Dinu Lipatti (1917-1950) e William Kapell (1922-1953). Entre os pianistas vivos, escolhas mostram-se claras e por vezes plenas de radicalismo. É motivo a mais para a ebulição que leva à divulgação de nomes que se consagram perante platéias entusiasmadas.
Sob outra égide, é difícil dizer quem foi ou é o “maior”. Primeiramente, aquele que, considerado o melhor, restringe seu repertório a período preciso, mesmo incensado tem suas limitações, pois não teria abrangência. Extraordinário na interpretação de obras de uma época, ser-lhe-ia imputada a dúvida quanto à compreensão de outros períodos da criação musical. Contudo, esse debate passa à margem do grande público. Quando uma expressiva parcela da crítica, do público e de seus pares pianistas detectou em Vladimir Horowitz a primazia como o maior, ateve-se não apenas às qualidades técnico-sonorísticas do intérprete, mas ao seu repertório que se estendia, na perfeição possível, de D. Scarlatti a Prokofieff, Kabalewsky e Barber, seus contemporâneos. Teríamos, pois, na excepcionalidade e na extensão repertorial, critérios de aferição. Todavia não há, nem poderia haver unanimidade em área tão subjetiva como a da interpretação. Horowitz, inclusive, serviu de modelo, e como toda imitação tem suas características detectáveis, tentaram espelhar-se em sua exuberância técnico-pianística, sem contudo alcançarem a abrangência, buscaram a musicalidade e o “toque”, mas o resultado mostrar-se-ia arbitrário. Chegaram até a escrever transcrições à la Horowitz.
É notório, entre os intérpretes mais conhecidos em todas as áreas instrumentais, o auto-incensar, a necessidade de passar, quando competência existe, a aura do insuperável. Este fato é mais palpável entre cantores, violinistas, pianistas e regentes, num sentido geral. Toda uma estrutura é edificada e empresários, mídia e público recebem o ídolo e o cultuam. E este será comparado a outro pelas correntes contrárias. Faz parte da existência o espírito dialético.

Antonieta Rudge (1885-1974)

Em termos brasileiros, um trio de mulheres notáveis evidenciaria divisões de opiniões. Antonieta Rudge (1885-1974), Magdalena Tagliaferro (1893-1986) e Guiomar Novaes (1896-1979) teriam atingido níveis raros de qualidade. Nem por isso, crítica e público deixaram de ter as suas preferências. Se a carreira de Guiomar Novaes foi direcionada unicamente à performance, se em Magdalena Tagliaferro a intérprete estaria amalgamada à grande mestra, nem por isso Antonieta Rudge, que teve uma trajetória mais curta, deixou de evidenciar qualidades absolutamente extraordinárias. As três foram indubitavelmente paradigmáticas.

Guiomar Novaes (1896-1979)

A proliferação de pianistas da média e da nova geração, entre 15 e 40 anos, diluiu de maneira acentuada a idéia do “maior”. Contam-se às muitas centenas pianistas de mérito percorrendo o mundo ou, muitas vezes, apenas o seu próprio país. Quantas não foram as vezes que se ouviu ou se leu: tal figura é o maior pianista de seu país? Para aqueles que viajam, há sempre quantidade de surpresas qualitativas, algumas de altíssimo nível. Essa assertiva tornaria até insensata a possibilidade de se nomear o melhor, pela diversidade do avaliar. Quais os critérios? Baseados em repertório ou repertórios? Estruturados na performance ao vivo ou nas gravações? Num aspecto mais pragmático, não haveria por parte do público essa predileção pelo repetititivo ad nauseam, a provocar no intérprete a necessidade imperiosa de se repetir para continuar sua sobrevivência? E, em sua limitação repertorial absoluta, esse público não compararia apenas poucas obras interpretadas, ilusão de conhecimento, mas verniz social? Saint-Exupéry, em seu isolamento sobre as nuvens, já ponderava que a vaidade é uma doença. Sob outro aspecto, a internet inunda aqueles que a ela têm acesso de profusão de fantásticos pianistas, assim como de legião de pouco ou nada capazes. Está tudo registrado. Se, de um lado, análise elementar faz separar o joio do trigo, nem sempre a aferição é perceptível pelo leigo. Daí joio e trigo convivendo na tela do computador. Democracia dos opostos. Em Tempo de Concerto da USP-FM, 97.3, no programa Idéia, Criação e Interpretação que vai ao ar às terças-feiras (22,00 horas), estarei a apresentar quatro pianistas paradigmáticos do passado: Wilhelm Kempff, Vladimir Horowitz, Emil Guilels e Clara Haskil.
Se tantos foram considerados o Maior do Mundo, se outros tantos se autoproclamam os melhores do planeta, ou de seus territórios, a única certeza foi expressa pelo bom pianista, compositor e ator norte americano Oscar Levant (1906-1972), autor da epígrafe deste post. Atribui-se a ele a resposta a uma pergunta a respeito de qual seria o maior pianista do mundo. Teria respondido que, como todos almejam ser ou se consideram os melhores, ele estava absolutamente tranqüilo, pois tinha a convicção de ser o segundo maior pianista do Terra, posição jamais reivindicada por qualquer colega.

The World’s Greatest Pianist:
The media and the public take great pleasure in electing the best in every category. It is not different with pianists. But would it be possible to choose “the greatest pianist in the world”? I guess not, with so many serious contenders. Many hundreds of excellent pianists are scattered all over the globe. On which criteria should the evaluation be based: the flawless technique, the exuberance of the touch, the extension of the repertoire, live or recorded performance?. Maybe the best answer to this question was given by the American pianist, composer and actor Oscar Levant (1906-1972), who is quoted to have said that since all are hailed as “the best” – or proclaim themselves as such – he was happy to be the second best pianist in the world, a position never claimed by any of his fellow musicians.

Fidelidade Eterna

Camisa de Jair Marinho, década de 60.

O futebol é a coisa mais importante
entre as coisas menos importantes.

Milton Neves

Meu padrinho, de nome Paes, era um português falante. Dono de lojas de sapatos no Rio de Janeiro, estava sempre a visitar São Paulo. Em uma oportunidade, tinha eu oito anos, presenteou-me com uma bola de borracha com cores e emblema da Portuguesa de Desportos. Nascia o torcedor. Gostava tanto daquela bola que, antes de dormir, deixava-a ao lado de minha cama. Curiosamente, meu pai, português, era são-paulino e convenceu dois de meus irmãos a aderirem à sua preferência. João Carlos e eu, que dormíamos no mesmo quarto, preservamos nossas origens. Torcer para a Portuguesa era um duplo orgulho, estruturado na paternidade e na cruz de Avis estampada na bola de borracha.
A Portuguesa, nas fronteiras dos anos 40-50, treinava no Parque do Ibirapuera. João Carlos e eu íamos a pé assistir encantados aos treinos. Certa vez, Nininho cobrou um pênalti – o goleiro era Caxambu – e a bola foi para fora, atingindo em cheio o rosto de meu irmão, que estava perto da trave. João deu uma pirueta e caiu desmaiado. Foi um susto!
A adolescência foi um desfilar de alegrias. Em meados dos anos 50, a Portuguesa tinha o melhor time do Brasil. Seis de seus jogadores foram convocados para a seleção brasileira e nove para a paulista. Um timaço que, não obstante a qualidade, não conseguia ganhar o campeonato estadual. Sempre faltou força da Associação Portuguesa de Desportos junto às Federações e aos Conselhos Arbitrais. O time era tão inconteste em sua qualidade que, apesar da desventura de não ter grande torcida e influência política, por duas vezes foi campeão do Torneio Gomes Pedrosa, que reunia os grandes clubes de São Paulo e do Rio de Janeiro. Lembro-me até hoje de um dos esquadrões extraordinários da Portuguesa: Muca, Nena e Noronha, Djalma Santos, Brandãozinho e Ceci, Julinho, Renato, Nininho, Pinga e Simão. Realmente, o timaço. Recebeu a Lusa, por três vezes, a Fita Azul, pois foi o time que, em três excursões à Europa, não perdeu nenhum dos 41 jogos disputados. Ou eram vitórias, ou empates. Sim, numa delas perdeu, contra o poderoso Arsenal, pois chegara pouco antes à Inglaterra, que passava por rigoroso inverno. Nenhum outro, na América Latina, superou esse recorde. O tempo passou, a Portuguesa formaria jogadores extraordinários, mas quase todos acabavam sendo comprados por agremiações mais poderosas financeiramente. Incontáveis os craques que vestiram sua camisa: Ipojucã – Pelé afirmaria, em depoimento, que quando jovem sonhava jogar como ele -, Ivair, Enéas, Dener, Leivinha, Ranulfo, Henrique, Dida, Neivaldo, Reinaldo, Zé Maria, Ditão, Jair Marinho, Jair da Costa, Servílio, Marinho Peres, Pontoni (argentino), Nair, Basílio, Daniel González e Taborda (uruguaios), Cabinho, Pampolini, Wilson Carrasco, os pontas velozes Wilsinho e Ratinho, Dicá, Edu Marangon, Rodrigo Fabri, Leandro Amaral, Ricardo Oliveira e goleiros como Caxambu, Lindolfo, Cabeção, Orlando, Félix – guardião da seleção brasileira campeã em 1970 -, Zecão, Miguel, Aguillera (paraguaio), Clemer… Alguns, como Badeco, maestro do meio campo, Djalma Santos – jamais vi puxetas tão precisas, inacreditáveis -, Capitão – o prenome verdadeiro é Oliude -, Zé Maria, o outro ótimo zagueiro, hoje na Itália, o grande Zé Roberto, jogador de carreira internacional consolidada na Alemanha e artista de nossas últimas seleções, são até hoje torcedores e ídolos da pequena, mas calorosa, torcida lusa. Quando a Portuguesa vai bem, esses torcedores, como em passe de mágica, multiplicam-se. É bom destacar que 8% de todos os jogadores que passaram pela seleção brasileira jogaram determinado período na Portuguesa, sendo que, 4% formaram-se nas escolinhas da lusa. A lista de bons jogadores é enorme e os citados vieram-me no momento da redação do post.
Em 1973, disputávamos o campeonato paulista e tivemos de dividir a taça com o Santos por erros do árbitro Armando Marques. Durante a partida, cometeria uma falha imperdoável ao anular um gol legítimo do ótimo centro-avante luso Cabinho. Na decisão por pênaltis, a Portuguesa desperdiçara três e o Santos acertara dois quando Marques, equivocadamente, encerrou a partida. Errou na matemática, mas nosso Presidente, Osvaldo Teixeira Duarte, entendeu lindamente que houve um êrro de Direito e pediu ao time que se retirasse do campo. Apesar do imbroglio, foi uma alegria. Em 1975, disputamos a final com o São Paulo e perdemos por falhas da arbitragem que, aliás, sempre pendem contra a Lusa. É uma injustiça histórica. Quando a Portuguesa disputou a final do Campeonato Brasileiro em 1996 com o Grêmio, em Porto Alegre, poderíamos até perder por um tento de diferença, mas o gol do time gaúcho ao final levou-nos a esperança de sermos campeões.
Dias difíceis vieram. Nesta década, fomos não apenas para a segunda divisão do campeonato brasileiro, como para a segundona do paulista , categoria que dá “cãibra na vista”, na opinião do célebre Dadá Maravilha. Amargamos e, neste 2007, retornamos às divisões principais dos dois campeonatos.
No dia seis de maio, ganhamos a série B do certame estadual. Um feito. Acabara de dar um recital de piano em Paris e fui ao computador mais próximo, acompanhado da amiga e excelente pianista Sônia Rubinsky. Fiquei eufórico ao saber do título conquistado. Minha mulher, Sônia e eu fomos, a seguir, jantar no apartamento dos amigos Roberts, onde todos aguardavam o instante em que a televisão apresentaria a foto do Presidente eleito da França, pois era o dia do segundo turno. Quando, às oito horas em ponto – tradição no país gaulês –, foi mostrado o retrato de Nicolas Sarkosy, houve alegrias e tristezas. Um amigo, adepto de Segolène Royal, perguntou sobre minha preferência. Disse-lhe apenas que estava um tanto quanto decepcionado. De fato gostaria de ver na tela o emblema da Lusa. Enfim, serviu para boas risadas.
Meu irmão João Carlos, torcedor-símbolo da Portuguesa, convida-me sempre para acompanhá-lo ao estádio quando o jogo é em São Paulo, no Canindé. Não vou. Meu amor pela Lusa é íntimo. Nem pela TV assisto aos jogos, conhecendo os resultados ao final das contendas. Sofro menos. Voltado ao passado, reverencio o trabalho de um grande torcedor, Eduardo Campos Rosmarinho, fundador do Museu Histórico, hoje dirigido pelo competente Vital Vieira Curto. Quantas glórias contidas!
Por outro lado, meu afeto pela Portuguesa data de período romântico, em que jogadores permaneciam nos clubes e amavam a camisa. Hoje tudo mudou. Diria que a massificação do futebol – o esporte mais ventilado em todo o mundo – cresceu de maneira desmesurada e os tempos da moralidade esportiva desapareceram. São os grandes clubes, sempre os mesmos, que estão a ser beneficiados perenemente no Brasil e no Exterior. Nenhum time de nosso país pode manter jogadores, que bem jovens, quando talento existe, vão para todos os continentes. Esses atletas, no estágio brasileiro em clube celeiro, grande ou pequeno, só pensam, não sem razão, no sonho d’além-mar. Só esse fato já não evidenciaria um desequilíbrio abissal entre os melhores times do Brasil e os referenciais de Espanha, Itália, Inglaterra? Se, em disputas de, na realidade, um jogo, times sul-americanos levantam taça em Tóquio quando da Copa Toyota, “aparência” da verdade, nenhum, mas nenhum time latino-americano resistiria minimamente a torneios de longa duração disputados na Europa, justamente pela falta de jogadores extraordinários, pois os melhores de todo o mundo estão a jogar no Velho Continente. É fato.
Sob outra égide, mormente em nossas terras, dirigentes são com freqüência personagens de colunas policiais, a arbitragem é seguidamente contestada, torcidas uniformizadas tornaram-se gangues violentas, bilhetes são adulterados ou ficam em mãos de cambistas, lavagem de dinheiro com a compra e venda de jogadores envolve muita gente e é notíciário constante. Haveria prazer para um torcedor nefelibata, que se afeiçoou um dia a uma bola de borracha com o emblema da terra de seu pai, em freqüentar estádios? Difícil, todavia a fidelidade ao meu time é real, solitária e sem quaisquer possibilidades de abalo.
E a saga da Portuguesa continuará. Prejudicada sempre pelas arbitragens, ela resiste. A esperança está representada por sua pequena, mas fidelíssima torcida, constituída por adultos e jovens. A velha nau encontrou uma vez mais seu rumo, apesar das intempéries, retornando à Série A do Campeonato Brasileiro. Louros ao nosso ex-jogador e hoje técnico Vagner Bennazzi, que conseguiu fazer ressurgir a gloriosa Portuguesa de Desportos. Bem haja, lusa de meu universo lúdico.

Prevenção sem Açodamento

Mãos de J.E.M. - Nanquim, John Howard 1982

Não sabem acender a luz
Com suas mãos entrevadas.

Carlos Drummond de Andrade

Fila em caixa de supermercado pode revelar surpresas. Aguardava minha vez e duas moças à minha frente conversavam preocupadas. Uma delas, acometida pela L.E.R., relatava seu infortúnio à amiga. Durante o trajeto de volta à casa fiquei a lembrar de minha posição a respeito do mal mencionado pouco antes.
Meu irmão, João Carlos, submetera-se a uma derradeira intervenção cirúrgica em sua mão esquerda e recuperava-se em hospital de São Paulo. Fui visitá-lo logo após e conheci o médico que o operou, Dr. Ronaldo Azze, Professor Emérito da U.S.P. e excelente ortopedista, especialista em mãos. O cirurgião trazia-lhe boa e má notícia: a operação transcorrera muito bem, mas a mão encontrava-se em estado crítico. Todos conhecem suas vicissitudes, seus esforços em manter-se como pianista após sucessivos traumas. Hoje é um bem sucedido regente de orquestra, para sua felicidade e a de seus admiradores. Realizou a catarse. Naquele encontro, entre outros assuntos, Dr. Azze conversou com João sobre a L.E.R. Na realidade, João Carlos, após problemas físicos na mão direita, que o levaram à completa impossibilidade pianística, tentou nova carreira e, durante um ano, dedicou-se ao repertório exclusivo para a mão esquerda, a resultar em CD gravado. Utilizando princípio lógico, não científico e rigorosamente inusitado, nessa nova empreitada João Carlos aplicaria outra postura ao piano, a contrariar décadas de posicionamento tradicional: sentava-se bem à direita do teclado. Foi acometido pela L.E.R. e, em acréscimo pelo mal de Dupuytren, outro terrível empecilho para quem pratica exercícios digitais. O Dr. Azze afirmaria com apreensão que a L.E.R. tem sido um dos males a levar mais doentes a auxílios do INSS. Externei minha posição sobre o problema. O generoso cirurgião convidou-me para uma palestra no Departamento de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Maio de 2001. Preparei-me, a buscar subsídios comprobatórios à minha teoria, sem fundamento médico, mas embasada em décadas de observação.
Preliminarmente, a L.E.R. manifesta-se em maior número em países onde a informatização tornou-se absoluta. No Brasil, essa doença funcional estende-se basicamente aos digitadores e resulta, numa visão generalizada, em três categorias de demandas junto ao INSS: auxílio-doença, podendo o acometido retornar ao trabalho após restabelecido; auxílio-acidente, concedido basicamente quando, após um acidente e a consolidação das lesões, ficar demonstrado que houve redução da capacidade laboral para a atividade habitualmente exercida; aposentadoria por invalidez, concedida no caso da incapacidade total ou definitiva. Trata-se, em todos os casos, de algo dantesco, e legiões de lesionados pela L.E.R. comparecem diariamente a solicitar providências do INSS.
Na palestra oferecida frisei aspectos que considero fundamentais: a prevenção planejada e sistemática; a necessidade absoluta de as escolas de informática conhecerem princípios de relaxamento muscular, e de as empresas adotarem processos elementares relacionados à progressiva carga de trabalho de seus funcionários digitadores; a exemplificação insofismável, a demonstrar a eficácia de um processo simples, mas de resultados, ou seja, a técnica do relaxamento; a grande economia do Estado adotando atitudes preventivas, o que resultaria em sensível diminuição de portadores da L.E.R.
Na realidade, a prevenção faz-se através de métodos seguros. Considerando-se que a grande maioria dos ingressantes no mercado de trabalho voltado à informática aprende a especialidade em poucas semanas, a conseqüência é vê-la mais ou menos preparada para a profissão, mas absolutamente não apta fisicamente. Esse amplo contingente concorre às vagas disponíveis no mercado, que abrange várias redes: bancária, telemarketing, empresas privadas e serviço público. Ingressante, o jovem inicia imediatamente um trabalho árduo de aproximadamente oito horas, sem qualquer preparo físico muscular ou digital, tendo que permanecer longas horas frente a um computador. As instituições mencionadas, por motivos sempre voltados ao imediatismo, pouco se importam com os efeitos que estariam por vir. Mostrar-se-iam propensas a proporcionar ao ingressante carga horária gradativa, ou seja, mínima hora num primeiro mês e, com a devida adaptação, o aumento do período até as horas regulamentares? Esse fato seria apenas por desconhecimento?
Impressionou-me o efeito causado pelo trabalho digital sem o estudo acurado das causas provocadoras da L.E.R. Some-se, às exaustivas horas diante da tela, a pressão sofrida pelo ingressante no sentido de não poder errar, sob pena, tantas vezes, da demissão sumária e pronta substituição por um outro funcionário, que estará sujeito às mesmas condições estressantes.
Tendo-se como exemplo o pianista, vemos o contacto com o teclado processar-se desde tenra idade, com início normalmente na faixa de 3 a 9 anos. Jamais essa criança começará com volume excessivo. Para aqueles que se dedicam plenamente e que têm a possibilidade da trajetória pianística, há períodos na juventude em que a carga horária poderá atingir até 10 horas diárias de estudo intenso. Porém, tudo é progressivo, muitas vezes sem outros traumas. Entenda-se que o pianista não apenas se utiliza dos dez dedos, como emprega-os simultaneamente quando na execução de acordes, aplica a passagem do polegar sob a mão, desenvolve uma infinidade de processos absolutamente desconhecidos, inúteis e impossíveis em um teclado de computador.
A técnica da digitação é a que o pianista conhece como técnica dos cinco dedos. Como se não bastasse a elementaridade da utilização digital, o peso empregado sobre cada tecla por um digitador é ínfimo. Na prática, a diferença da pressão feita pelas pontas dos dedos sobre um teclado de piano e sobre as teclas de um computador é imensa. Frise-se, para ter mínimas estatísticas utilizei-me de princípio elementar, mas seguro. Freqüento quase diariamente um supermercado perto de casa, conhecendo bem os colaboradores. Autorizado pelo gerente, fiquei ao lado de uma simpática funcionária. A intuição levava-me a adivinhar que determinado cliente utilizava computador e que seria solícito. Pedia então para que pressionasse, com os olhos fechados, os dedos sobre a balança, como se fosse o seu teclado. Repeti o processo em três visitas ao estabelecimento, a testar 18 pessoas diferentes. Os resultados foram surpreendentes. Geralmente entre as mulheres, dependendo do físico mais ou menos avantajado, expressões tensas ou não, o peso digital variava de 30 a 70 gramas, aproximadamente. Entre os homens, de 60 a 130 gramas. Impressiona saber que este peso, ínfimo para nós, pianistas, leva legiões de digitadores à L.E.R. Tomando-se como exemplo minha gravação de Feuillet d’Album, de Alexander Scriabine (1872-1915), peça em baixa intensidade, a pressão de cada dedo sobre a tecla varia de 150 a 600 gramas. Se eu pressionar com intensidade em outras obras, pode atingir 700 a 1.700 gramas ou mais. Caso utilize quatro ou cinco dedos de uma mão ao mesmo tempo, naquilo que denominamos acorde, em intensidade alta, chegará a 3 ou 4 quilos de pressão, ou bem mais, se os acordes forem dados pelas duas mãos em fortissimo. Testei dois alunos para ter maior amostragem. Geralmente, a digitação em computador de um estudante de piano ou de um pianista tem maior impacto, o que é absolutamente natural.
Essas considerações, não científicas, mas apenas conseqüências da reflexão e da observação, não teriam significado maior se não atestassem que para o pianista, que pressiona o teclado com intensidade bem maior do que a de um usuário de computador, rarissimamente o drama da L.E.R. se instala. Haveria razões transparentes a atestarem a veracidade da afirmação. Frise-se, há outros males que podem atingir o pianista, como o mal de De Quervain, tenossinuvite, tendinite, artrite reumatóide, artrose, mas estamos em compartimentos que muitas vezes nada têm a ver com a prática pianística.
O relaxamento muscular é o princípio fundamental desde o início da formação de um pianista, ainda criança. Desde os primeiros anos, se bem orientado, o miúdo assimila com naturalidade a técnica do relaxamento, indispensável ao bom funcionamento digital. Nesse período, o pequeno estará submetido a estudos progressivos, frise-se, não apenas pela faixa etária, como pela própria concentração, que está ainda em processo de sedimentação. Se talento e disciplina conviverem solidariamente, o promissor pianista terá formação harmoniosa. Em períodos mais laboriosos, representados por concursos, preparação de repertório em prazo preciso, o jovem ou o adulto submetem-se a longos estudos diários, e os dedos sofrem impactos enormes. Qual o motivo de basicamente nada de mal ocorrer? Não seriam a preparação progressiva e a noção exata do relaxamento, transmitida por professor consciente, as causas dessa naturalidade? O mestre atento, mesmo sem os conhecimentos científicos, entende pela tradição que toda a descontração muscular passa pela região dorsal, pescoço, ombros, braços, antebraços, punhos, mãos e dedos, destinação final do peso a ser aplicado. Sem a obediência à trajetória do relaxamento haverá bloqueio em algum segmento do complexo físico, a levar ao estresse ou a qualquer contração comprometedora.
Acredito que os bons fisioterapeutas teriam muito a aprender com os mestres de piano sobre o relaxamento que atinge todo o sistema muscular, que se estende até as pontas dos dedos. Considere-se que o método, no caso de pianistas e professores do instrumento, já tem mais de dois séculos e diariamente prova-se convincente. Se escolas de informática tivessem o cuidado de contratar profissionais que conhecessem essa técnica bissecular, apreendida pelos pianistas, já um primeiro passo seria dado. Se as instituições que contratam jovens digitadores se preocupassem menos com os lucros imediatos e mais com a harmoniosa adaptação dos contratados, dando-lhes, sem pressão alguma, carga horária progressiva e assistência de um profissional de relaxamento, haveria a médio prazo resultados surpreendentes. Quem seriam os beneficiados? Certamente o jovem, que estaria apto física e psicologicamente; as empresas que, a médio prazo, colheriam resultados não pensados; a comunidade como um todo, pois haveria enorme diminuição de acometidos pela L.E.R. a buscarem benefícios junto ao Instituto de Aposentadoria. Em um contexto amplo, o legislador deveria estudar normas de adequação, o que obrigaria empregadores a programarem carga horária progressiva para seus funcionários ingressantes.

Diploma de Honra ao Mérito

Quando adentrei um dos anfiteatros da Faculdade de Medicina para a palestra mencionada, fiquei surpreso com a grande quantidade de professores, assistentes e estagiários. Durante a exposição, coloquei algumas de minhas gravações, evidenciando pesos aproximados de percussão digital. As perguntas foram estimulantes. Poucas semanas após, recebi um diploma da Instituição que me deixou sensibilizado. Guardo-o com carinho ao lado de outros, voltados à Música.

R.S.I. – Repetitive Strain Injury
The increasing number of computer users affected by lesions related to occupational activities led me to think about the effectiveness of the muscular relaxation techniques that pianists and piano teachers have been using for 200 years. Employers and trained therapists should know them to assist in the prevention of the onset of R.S.I.