Navegando Posts publicados em fevereiro, 2008

Origens e Trajetória

Silêncio! Guitarra minha,
Deixa ouvir, deixa cantar,
À branda luz do luar
A virgem que adoro e sigo.
Rumores que ides passando
Pelos roseirais em flor,
Vinde ouvir o meu amor.
Sonhando amores comigo.

Simões Dias

O Fado, como expressão significativa da alma portuguesa, tem sido objeto de estudos os mais diversos quanto à qualidade de aprofundamento. É menos provável a penetração, por musicólogos ligados à universidade em Portugal, na temática que tanto revela conteúdos da raça. Explica o fato a abundante ocorrência, em terras lusitanas, da manifestação da música denominada culta ou erudita, a levar quantidade apreciável de estudiosos a se debruçar sobre uma rica informação que se estende basicamente da Idade Média aos nossos dias.
Quando um musicólogo da dimensão de Rui Vieira Nery detém-se na temática do Fado, está-se diante da avaliação competente, do levantamento histórico-musical pormenorizado e do olhar crítico insofismável. Vieira Nery tem oferecido preciosos contributos à comunidade internacional, revelando e divulgando compositores eruditos conhecidos ou não, e até mesmo anônimos que produziram em Portugal criações à altura do que se conhece em outros países da Europa, assim como observando conteúdos sociais pertinentes à Música como um todo. Escreveu mais recentemente um livro da maior importância para as culturas de nossos dias (Vieira Nery, Rui. Para uma História do Fado. Portugal, Público-Corda Seca, 2004, 301 págs.) A precedê-lo, cuidou da elaboração de 19 textos da preciosa coletânea de 20 CDs publicada pelo diário o Público, penetrando no âmago da imagem sonora do universo do fado desde as origens gravadas (“O Fado do Público”. Lisboa, Público e Corda Seca, 20 CDs, 2004). Essa enciclopédia fadista, que teve publicação hebdomadária, levaria Vieira Nery à precisa sistematização que o tempo estreito exigia. O amálgama foi absoluto. A audição de fados registrados fonograficamente e textos lúcidos do musicólogo estabeleceram a ponte necessária a ser transposta, a fim de que a obra literário-musical a seguir adquirisse o sentido de abrangência, a atender às expectativas do leigo e daqueles que captam de maneira mais contundente a linguagem musical e literária do Fado. A revisão dos textos que acompanham os CDs levou à ampliação da pesquisa sob todos os fundamentos, a tornar Para uma História do Fado em seu formato livro, um marco nesse aprofundamento que se faz necessário em torno do Fado. Este – apesar de mutações naturais – traduz expressões da alma de um povo, genuinamente autênticas, resultando em salvaguarda para o estabelecimento de critérios alentadores.

O caminho escolhido por Vieira Nery tem o olhar acadêmico, sem contudo apresentar as armadilhas de um texto da Academia, invariavelmente freqüentado por aqueles que a ela pertencem. Sem as regras que regem artigos e teses universitárias, dificilmente um candidato encontra o norte representado pela aceitação. Estar na Universidade de Évora e dela ser um expoente, mas entender a amplitude de um tema que, aceito na Instituição, tem, no caso de Para uma História do Fado, destinação mais ampla, é tarefa árdua, a transparecer, paradoxalmente, leveza, conteúdo e esclarecimentos, muitos deles definitivos.
O livro está dividido em sete capítulos. Neles, o autor, a partir daquilo que afirma no prefácio, como o estar ciente da “consciência tranqüila no plano do rigor de fundamentação bibliográfica e documental”, estabelece das origens à contemporaneidade a trajetória do fado. Curiosamente, data de 1822 a primeira menção à palavra Fado com conotação musical, escrita por um geógrafo italiano, Adriano Balbi, que a ele se refere como uma das danças populares “mais comuns e notáveis do Brasil”. Alguns anos após, um capitão francês faria menção à dança em terras brasileiras. Poder-se-ia dizer que os capítulos da obra não sofrem descontinuidade e os aspectos fulcrais referentes ao Fado lá estão inseridos, estrategicamente articulados num sentido harmonioso. Lê-se a importância das danças afro-brasileiras, a penetração do Fado na capital portuguesa, todas as muitas transformações que sofreria o gênero, tanto sob o aspecto da própria estrutura como das ingerências políticas. Vieira Nery percorre o roteiro do Fado, suas “mutações” através da história, dos meios menos cultos ao Teatro de Revista, assim como a prática futura nas casas típicas onde pode ser ouvido. O autor acompanha a recepção pelos meios de divulgação, desde os primórdios. Quanto ao Teatro de Revista, aponta os direcionamentos, a eclosão do Fado em palco com rica coreografia, onde não faltam bailarinos, guitarristas e outros músicos. Pormenoriza também o Fado no cinema e sua aceitação.
Ao longo desse entrelaçamento nos capítulos, ressalte-se a intrigante associação, ou contágio, poder-se-ia acrescentar, das manifestações ideológicas, do olhar atento do Estado frente ao conteúdo das letras. Frise-se que Salazar teria confidenciado ser o Fado deprimente. Após o 25 de Abril de 1974, ideologias diferenciadas e efervescentes têm atuação no gênero como um todo, até o denominado “Novo Fado”. Em sendo o Fado uma categoria musical em que a letra é absolutamente entrelaçada à música, mesmo nos textos mais prosaicos, a possibilidade de mensagem que possa ferir susceptibilidades do establishment é enorme e tem seu preço a depender dos regimes.
Para uma História do Fado é farta e pertinentemente ilustrada. Poder-se-ia dizer que nenhuma das inúmeras ilustrações deixa de ter a sua importância. O olhar corrobora a absorção do discurso de Vieira Nery. O amálgama texto-iconografia encaminha o leitor a uma viagem ao universo do Fado. Frise-se a quantidade extraordinária de músicos e artistas outros que, na pena do autor, adquirem vida e estão a permear essa saga fadista, permanente libelo da alma portuguesa, tão rica em tantos outros gêneros musicais espalhados pelo território lusitano. A vasta bibliografia enriquece o conteúdo da obra, a indicar rumos aos interessados.
É significativa a dedicatória de Rui ao seu pai, Raul, “com carinho e admiração infinitos”. Grande guitarrista que é, transmitiu ao filho ilustre a relação amorosa com o Fado.

The fado is an essential part of the Portuguese soul. This music genre has been minutely and clearly explored in the book “Para uma História do Fado”, written by the musicologist Rui Vieira Nery: its origins, development, modern-day expressions, repertoire, performers, performance setting, influence of political ideologies. An indispensable reading for anyone with a true interest in the Portuguese Fado and its history.

O Reaparecimento
Pedro. Desenho a lápis - Maria Fernanda Martins Rosella

Si j’étais Dieu, j’aurais pitié du coeur des hommes…
Maurice Maeterlinck
(Pelléas et Mélisande)

Conheci Pedro no início da década de 70. Chamou-me a atenção aquele rapaz de traços finos, barba e cabelos desalinhados, vestes surradas, que permanecia sempre na mesma confluência de vias importantes de minha cidade-bairro, Brooklin. Ficava sentado, olhar distante, sem nada pedir. Havia, contudo, qualquer semelhança com aqueles personagens saídos da pena de Dostoievsky. Se algo lhe era oferecido, agradecia e voltava a sentar de maneira curiosa, como se estivesse numa concha. Um dia perguntei seu nome e comecei a estabelecer um breve diálogo com ele. Como nada pedia, levava-lhe periodicamente algum mantimento ou vestuário. Simplesmente agradecia.
O Brooklin ainda não tinha sido invadido pela quantidade desmesurada de edifícios em processo predatório do espaço, a causar, no futuro, problemas irrecuperáveis, pois a insaciabilidade imobiliária está a planejar sempre prédios mais altos. Da Rua Jesuíno Maciel com a Av. Santo Amaro avistavam-se as colinas do Morumbi. Dessa confluência, indaguei a Pedro o que ele buscava. Sua resposta deixou-me perplexo. Disse-me que estava a procura da cadência e que sem ela perde-se o sentido das coisas. Quis saber mais e ele, em poucas palavras, comentou que a cadência estava bem longe, a apontar as colinas visíveis do Morumbi. Ao questionar sobre sua vida, permaneceu silencioso.
Certa vez dei-lhe um par de sapatos. Ficou feliz, mas em noite chuvosa pisou em uma madeira com prego, que destruiu a sola e perpassou-lhe o pé, levando-o a algum pronto-socorro. Durante muito tempo andou a mancar, primeiramente com faixas que ficaram escurecidas em pouco tempo. Dificilmente conseguia extrair de Pedro uma frase. Naquele tempo, escrevi um texto sobre o personagem intrigante, em caderno de anotações do cotidiano. O tempo passou e continuei a encontrar o andarilho, que jamais me contou onde se abrigava à noite. Naquele morador de rua havia alguma história diferenciada que se mantinha secreta. Não insistia, mas levava ao Pedro coisas básicas de que precisava. Parado, naquela posição quase fetal, via-o apenas no cruzamento. Deste, como epicentro, Pedro caminhava com rapidez em um diâmetro de cerca de três a quatro quilômetros, sempre a olhar para a frente e sem nada solicitar aos transeuntes. É provável que àquela época mantivesse a esperança de um dia encontrar a cadência.
Comentei em casa o desaparecimento de Pedro. Já fazia parte da minha rotina do olhar e das muitas indagações que elucubrava a seu respeito. Muitos anos após, reagrupando papéis espalhados, encontrei o texto que escrevera sobre ele em 1979, hoje perdido para sempre ao ter organizado outros escritos. Fiquei a pensar em Pedro. Certamente já teria morrido, pois a existência de um morador de rua está sujeita às mais difíceis agruras: alimentação, doenças, inverno, chuvas, violência. Quando passo pela esquina, outros moradores lá estão, na mendicância absoluta, ou outros personagens, como vendedores e acrobatas do infortúnio, alguns com raras habilidades. Pedro faz falta, pois representava a angústia interior a nada mais reivindicar da sociedade.
Há um mês tive uma sensação muito forte. Encontrei Pedro em um sábado, próximo à feira que freqüento, no Campo Belo. Não acreditei ser possível ter ele passado mais de três décadas e sobrevivido a tudo. Parei meu carro no meio-fio e chameio-o pelo nome. Naquela mesma posição fetal, ergueu a cabeça e olhou-me, sem nada dizer. O tempo é ainda mais implacável para os infortunados. Perdera um olho, o rosto marcado pelo total abandono, cabelos e barba desgrenhados, mas havia naquele homem uma dignidade na atitude. Levantou-se. Lentamente lembrei-lhe o passado, os nossos mínimos diálogos, o par de sapatos, as agruras. Algo veio-lhe à memória, pois me olhou fixamente. Falei-lhe da cadência e a recordação vinda das profundezas insondáveis afluiu. Sim, a cadência. Ainda a buscava. Nessa angústia, entendi vagamente que a cadência era seu pai, após cuja morte, confessou-me, saíra pelo mundo sem qualquer rumo, a buscar a cadência hipotética. Ainda não a encontrara, contudo ela existe, afirmou-me. A postura fetal, o caminhar sempre e a busca da cadência faziam sentido.
Tenho-me encontrado aos sábados com Pedro. O ciclo continua. Alquebrado pelo esquecimento de todos, ele um dia deverá encontrar a cadência que tanto almeja.
Escrevera anteriormente sobre Sisuphos (vide Sisuphos, 22 de Março de 2007, categoria Cotidiano). A sua saga persiste. Vejo-o passar diariamente pela rua. Pedro e Sisuphos são naturezas diferentes. Sisuphos, bem mais velho, leva seu carrinho de mão contendo os mesmos objetos de sempre. É mais irascível, pois quando descontente esbraveja e grita. Houve momentos em que, ao encontrá-lo nesse estado, tentei acalmá-lo. Conto sempre com seu sorriso apagado que vem do cerne da história, pois atemporal. Pedro e Sisuphos, moradores da intempérie, sobrevivem, a apontar o dilema absoluto das sociedades. Sem contar a incúria governamental que, preocupada com o assistencialismo que gera votos, coloca no mesmo patamar do esquecimento voluntário obras de saneamento do subsolo e infortunados moradores de rua. Estes, arautos do desespero, impossíveis eleitores. Incapazes de se defender, respiram o verdadeiro ar rarefeito da intolerância humana. Não morrem, porém. Suas chagas interiores, sem despertar a menor caridade, expõem nossas próprias chagas,uma delas a indiferença.

Pedro is a street dweller who since the seventies used to wander up and down the streets in my neighborhood. Silent and lonely, he never asked for anything. I used to give him food and clothes and on one occasion he told me vaguely he was searching for what he called “the cadence”. He then vanished and for the last ten years I thought him dead, given the difficult conditions affecting the homeless. Sometime ago he reappeared unexpectedly, looking old and worn out. I reminded him of our past encounters and for the first time he stammered something regarding the death of his father. Still searching for the cadence, which I understood as the balance he lost after his father died, leaving him alone and adrift, without means of survival. Just one more victim of our callous unconcern for anyone but ourselves and of the government’s lack of interest in addressing the systemic problems that prevent multitudes from living decent lives. After all, Pedro is not a voter.

Férias Inesquecíveis

La Querye, aquarela. Colette Robert (1929-1947)

O Bienheureux qui peut passer sa vie
Entre les siens, franc de haine et d’envie,
Parmy les champs, les forests et les bois,
Loin du tumulte et du bruit populaire,
Et qui ne vend sa liberté pour plaire
Aux passions des princes et des rois !

Philippe Desportes (1546-1606)

Estava a tomar água de côco com uns amigos numa lanchonete de supermercado em nossa cidade-bairro, Brooklin, e lindas moças e senhoras bronzeadas passavam em direção às compras. Observei que todo o “sacrifício” relativo à longa exposição ao sol durante as férias resultaria em quatro certezas: a beleza à disposição dos olhares, a vontade de conseguir a cor morena, a duração efêmera da tonalidade e a gravação pela pele dos raios solares que, sur le tard, pode provocar degenerações. Serviu para comentários descontraídos.
Um dos amigos perguntou-me se tirava férias. Disse-lhe que me lembrava com saudades daquelas da infância na praia de Itararé e de outras, bem mais tarde, em que levávamos as filhas a Tremembé durante o verão. Continuei, a considerar que durante as viagens anuais ao Exterior, para recitais de piano e gravações, dou férias ao olhar, que desfruta de tudo o que vê: paisagens, construções antigas, exposições, pessoas diferentes que transitam e o sorriso de queridos amigos.
Duas temporadas, em Julho de 1960 e 1961, tornaram as férias inesquecíveis e lá ficaram arquivadas na memória. Estava em França e uma família de amigos absolutos adotou-me como membro permanente. Os Roberts, clã numeroso ao qual não faltavam muitos filhos, sob o olhar da generosa matriarca Madame Robert, tia Denise, completamente cega, mas que tudo enxergava, e outros mais da família. Odile, colega pianista, Antoine, que me orientou em tantas leituras fundamentais, Chantal, Monique, Anne, todos bons companheiros. Em Paris, quase invariavelmente aos sábados atravessava a cidade, do XVIIème até a Rue d’Assas, 120, onde ficava até domingo à noite. Na gaveta de um sofá cama ficava guardado meu pijama. Odile e eu repartíamos os dois pianos do grande apartamento. Quando visito Paris, estar com os Roberts e amigos daquele período, como a competente violinista Nicolle Billy e seu marido Emmanuel, é obrigatório e prazeroso (vide Paris e o outro olhar, 09 de Maio, categoria Impressões de Viagem).

La Querye, 1960

Naqueles longínquos anos, passei as férias na propriedade dos Roberts, denominada La Querye, em cujas terras ergue-se um casarão amplo do século XIX, mas sem os quesitos de tantas construções melhor arquitetadas da região de Auvergne. Situa-se La Querye no departamento denominado Allier, a 5 quilômetros da pequena cidade de Gannat, a cerca de 18 de Vichy, cidade de águas medicinais, e outros 40 e poucos de Clermont-Ferrand, entendida como capital de todo o Maciço Central.

La Querye, Roberts e J.E.M. 1960

Éramos 10 ou 12 a aproveitar o verão ameno. Um piano vertical na sala principal era utilizado por Odile Robert, pianista de mérito, e por mim, mas havia tempo para tantos lazeres agradáveis, passeios pelas redondezas, jogos divertidos, conversas descontraídas e muita leitura. Foi em La Querye, aconselhado por Antoine Robert, que comecei a leitura de La Peste, de Albert Camus, que me levaria a tantas outras obras do grande escritor francês nascido na Algéria, assim como de La Condition Humaine, de André Malraux.
Os dias tinham interesse, descontração e enriqueciam olhar e idéias. Quase tudo ficou gravado na memória devido à qualidade do cotidiano: o café da manhã em família, onde não faltavam leite das vacas da propriedade, o célebre queijo Bleu d’Auvergne e frutas da estação, e as refeições simples e saudáveis, sempre regadas pelo bom tinto de mesa da região comprado em litro. Após, preparava eu o café. À noite, no interregno antes do repouso, jogávamos um divertido Rome contre Carthage, quando sorte e destreza levavam uma dupla à vitória. Depois, Madame Robert servia tizane, íamos dormir, e tudo recomeçava no dia seguinte.

Revezávamos, Odile eu, nos estudos pianísticos, pois preparávamos concursos europeus de outono. Como necessitava sempre de horas adicionais, ia diariamente de bicicleta à uma bela mansão, distante uns bons 10 quilômetros, e lá estudava em antigo piano de cauda Erard. Tinha de passar por atalhos e estradas vicinais. Tudo era agradável. Por duas vezes fatos inusitados interromperam o meu percurso. Em pleno campo, gansos atacaram, perdi o equilíbrio e caí, sofrendo escoriações que não me impediram de subir celeremente em uma carroça abandonada. Cerca de meia hora após, camponeses passaram e livraram-me das aves, que não saíam de perto de meu refúgio. Felizmente, ganso não voa. Em outra oportunidade, passei por cima de uma serpente não venenosa denominada coulevre. Escura, deveria ter metro e meio de comprimento. Mais um tombo, desta vez feio, a provocar muitas outras escoriações. Felizmente a cobra, apesar do acidente, continuou seu caminho, e meus arranhões foram cuidados com álcool canforado por Madame Robert.
A bicicleta servia para passeios tranqüilos. Lembro-me de ter ido algumas vezes a Vichy, bela cidade freqüentada pela qualidade de suas águas. Foi a sede do governo do Estado Francês durante a Segunda Grande Guerra. Gannat, bem próxima, era visitada aos fins de semana. Não havendo banheiro em La Querye, o que nos obrigava a banhos de bacia, a pequena cidade era um bálsamo devido aos banhos públicos. Ficavam abertos só aos sábados e domingos, mas serviam para prolongados banhos quentes. O retorno de bicicleta, contudo, levava à transpiração e o ciclo continuava.
Durante o dia, havia tempo para a prática de pingpong e passeios pelo campo, por vezes à noite. Ficaram gravadas as cenas das visitas noturnas à tante Denise, uma senhora muito culta que perdera completamente a visão ainda na juventude. Quando chegávamos à sua casa, bem próxima à La Querye, lá estava ela, na mais absoluta escuridão, a cuidar das rosas, podando galhos e deslumbrada com os resultados. Denise Robert descrevia a flor com toda competência. Quando perguntei-lhe, certa vez, sobre outros prazeres, disse-me que adorava ir aos museus com seu amigo Leonel. Este descrevia os quadros e ela voltava encantada. Com a mesma desenvoltura, comentava a respeito da pintura impressionista, modernista e de vanguarda. Elogiava e criticava as técnicas utilizadas. Uma lição de vida, coragem e amor.

CélineHavia uma serviçal muito idosa que morava em La Querye desde a juventude. Céline era seu nome. Magricela, apoiava-se em um cajado, e o forte acento da região de Auvergne tornava-a atemporal. Ninguém sabia exatamente o número de décadas acumuladas pela anciã. Entendia-me com Céline. Certa vez presenteou-me com duas laranjas. Vi que estavam com um carimbo Oranges du Brésil. Perguntei-lhe se alguma vez ouvira falar de nosso país. Com um acento bem da região, respondeu-me: “Sim, fica atrás daquelas montanhas”. Céline seria personagem típica de um filme.

Nathalie (1960); Anne, Nathalie e J.E.M. (1961)Uma de minhas atribuições, a que me prestava com prazer, era cortar os cabelos das crianças e lavar os das mulheres. Divertia-me a valer nessas tarefas, mas constrangeu-me um dia ver um dos meninos ficar com verdadeiro “caminho de rato” entre os cabelos, pois errei a medida exata do corte, leia-se “poda”. Entenderam os pais, amigos fraternos, que errar era bem humano. Consertei da melhor maneira o estrago feito, e o miúdo teve dois meses para que os fios crescessem até o início das aulas. Posteriormente, não mais falhei nas outras podas, pois adquiri prática sofrível às custas da garotada.
La Querye é sempre motivo de conversas animadas quando de meus encontros com os Roberts ao longo dos anos. Detalhes são rememorados, aumentando o prazer que o tema sempre nos traz. Presentemente, a propriedade continua com descendentes da família. Reformas foram feitas, salas de banho hoje existem e o todo está sendo muito bem cuidado. Preservar o domaine significa muito para aqueles que viveram meses inesquecíveis em plena Auvergne.

Recollections of holidays spent in the fifties at La Querye, the XIXth century property of my lifelong friends, the Roberts, in France. Leisure hours with much reading, piano practice, games, bike ridings through the countryside, regular visits to the public baths of Gannat, life tuned to a gentler key… Still in the family, restored and well preserved, the old mansion helps keep alive the memories of those distant summers in Auvergne.