Férias Inesquecíveis

La Querye, aquarela. Colette Robert (1929-1947)

O Bienheureux qui peut passer sa vie
Entre les siens, franc de haine et d’envie,
Parmy les champs, les forests et les bois,
Loin du tumulte et du bruit populaire,
Et qui ne vend sa liberté pour plaire
Aux passions des princes et des rois !

Philippe Desportes (1546-1606)

Estava a tomar água de côco com uns amigos numa lanchonete de supermercado em nossa cidade-bairro, Brooklin, e lindas moças e senhoras bronzeadas passavam em direção às compras. Observei que todo o “sacrifício” relativo à longa exposição ao sol durante as férias resultaria em quatro certezas: a beleza à disposição dos olhares, a vontade de conseguir a cor morena, a duração efêmera da tonalidade e a gravação pela pele dos raios solares que, sur le tard, pode provocar degenerações. Serviu para comentários descontraídos.
Um dos amigos perguntou-me se tirava férias. Disse-lhe que me lembrava com saudades daquelas da infância na praia de Itararé e de outras, bem mais tarde, em que levávamos as filhas a Tremembé durante o verão. Continuei, a considerar que durante as viagens anuais ao Exterior, para recitais de piano e gravações, dou férias ao olhar, que desfruta de tudo o que vê: paisagens, construções antigas, exposições, pessoas diferentes que transitam e o sorriso de queridos amigos.
Duas temporadas, em Julho de 1960 e 1961, tornaram as férias inesquecíveis e lá ficaram arquivadas na memória. Estava em França e uma família de amigos absolutos adotou-me como membro permanente. Os Roberts, clã numeroso ao qual não faltavam muitos filhos, sob o olhar da generosa matriarca Madame Robert, tia Denise, completamente cega, mas que tudo enxergava, e outros mais da família. Odile, colega pianista, Antoine, que me orientou em tantas leituras fundamentais, Chantal, Monique, Anne, todos bons companheiros. Em Paris, quase invariavelmente aos sábados atravessava a cidade, do XVIIème até a Rue d’Assas, 120, onde ficava até domingo à noite. Na gaveta de um sofá cama ficava guardado meu pijama. Odile e eu repartíamos os dois pianos do grande apartamento. Quando visito Paris, estar com os Roberts e amigos daquele período, como a competente violinista Nicolle Billy e seu marido Emmanuel, é obrigatório e prazeroso (vide Paris e o outro olhar, 09 de Maio, categoria Impressões de Viagem).

La Querye, 1960

Naqueles longínquos anos, passei as férias na propriedade dos Roberts, denominada La Querye, em cujas terras ergue-se um casarão amplo do século XIX, mas sem os quesitos de tantas construções melhor arquitetadas da região de Auvergne. Situa-se La Querye no departamento denominado Allier, a 5 quilômetros da pequena cidade de Gannat, a cerca de 18 de Vichy, cidade de águas medicinais, e outros 40 e poucos de Clermont-Ferrand, entendida como capital de todo o Maciço Central.

La Querye, Roberts e J.E.M. 1960

Éramos 10 ou 12 a aproveitar o verão ameno. Um piano vertical na sala principal era utilizado por Odile Robert, pianista de mérito, e por mim, mas havia tempo para tantos lazeres agradáveis, passeios pelas redondezas, jogos divertidos, conversas descontraídas e muita leitura. Foi em La Querye, aconselhado por Antoine Robert, que comecei a leitura de La Peste, de Albert Camus, que me levaria a tantas outras obras do grande escritor francês nascido na Algéria, assim como de La Condition Humaine, de André Malraux.
Os dias tinham interesse, descontração e enriqueciam olhar e idéias. Quase tudo ficou gravado na memória devido à qualidade do cotidiano: o café da manhã em família, onde não faltavam leite das vacas da propriedade, o célebre queijo Bleu d’Auvergne e frutas da estação, e as refeições simples e saudáveis, sempre regadas pelo bom tinto de mesa da região comprado em litro. Após, preparava eu o café. À noite, no interregno antes do repouso, jogávamos um divertido Rome contre Carthage, quando sorte e destreza levavam uma dupla à vitória. Depois, Madame Robert servia tizane, íamos dormir, e tudo recomeçava no dia seguinte.

Revezávamos, Odile eu, nos estudos pianísticos, pois preparávamos concursos europeus de outono. Como necessitava sempre de horas adicionais, ia diariamente de bicicleta à uma bela mansão, distante uns bons 10 quilômetros, e lá estudava em antigo piano de cauda Erard. Tinha de passar por atalhos e estradas vicinais. Tudo era agradável. Por duas vezes fatos inusitados interromperam o meu percurso. Em pleno campo, gansos atacaram, perdi o equilíbrio e caí, sofrendo escoriações que não me impediram de subir celeremente em uma carroça abandonada. Cerca de meia hora após, camponeses passaram e livraram-me das aves, que não saíam de perto de meu refúgio. Felizmente, ganso não voa. Em outra oportunidade, passei por cima de uma serpente não venenosa denominada coulevre. Escura, deveria ter metro e meio de comprimento. Mais um tombo, desta vez feio, a provocar muitas outras escoriações. Felizmente a cobra, apesar do acidente, continuou seu caminho, e meus arranhões foram cuidados com álcool canforado por Madame Robert.
A bicicleta servia para passeios tranqüilos. Lembro-me de ter ido algumas vezes a Vichy, bela cidade freqüentada pela qualidade de suas águas. Foi a sede do governo do Estado Francês durante a Segunda Grande Guerra. Gannat, bem próxima, era visitada aos fins de semana. Não havendo banheiro em La Querye, o que nos obrigava a banhos de bacia, a pequena cidade era um bálsamo devido aos banhos públicos. Ficavam abertos só aos sábados e domingos, mas serviam para prolongados banhos quentes. O retorno de bicicleta, contudo, levava à transpiração e o ciclo continuava.
Durante o dia, havia tempo para a prática de pingpong e passeios pelo campo, por vezes à noite. Ficaram gravadas as cenas das visitas noturnas à tante Denise, uma senhora muito culta que perdera completamente a visão ainda na juventude. Quando chegávamos à sua casa, bem próxima à La Querye, lá estava ela, na mais absoluta escuridão, a cuidar das rosas, podando galhos e deslumbrada com os resultados. Denise Robert descrevia a flor com toda competência. Quando perguntei-lhe, certa vez, sobre outros prazeres, disse-me que adorava ir aos museus com seu amigo Leonel. Este descrevia os quadros e ela voltava encantada. Com a mesma desenvoltura, comentava a respeito da pintura impressionista, modernista e de vanguarda. Elogiava e criticava as técnicas utilizadas. Uma lição de vida, coragem e amor.

CélineHavia uma serviçal muito idosa que morava em La Querye desde a juventude. Céline era seu nome. Magricela, apoiava-se em um cajado, e o forte acento da região de Auvergne tornava-a atemporal. Ninguém sabia exatamente o número de décadas acumuladas pela anciã. Entendia-me com Céline. Certa vez presenteou-me com duas laranjas. Vi que estavam com um carimbo Oranges du Brésil. Perguntei-lhe se alguma vez ouvira falar de nosso país. Com um acento bem da região, respondeu-me: “Sim, fica atrás daquelas montanhas”. Céline seria personagem típica de um filme.

Nathalie (1960); Anne, Nathalie e J.E.M. (1961)Uma de minhas atribuições, a que me prestava com prazer, era cortar os cabelos das crianças e lavar os das mulheres. Divertia-me a valer nessas tarefas, mas constrangeu-me um dia ver um dos meninos ficar com verdadeiro “caminho de rato” entre os cabelos, pois errei a medida exata do corte, leia-se “poda”. Entenderam os pais, amigos fraternos, que errar era bem humano. Consertei da melhor maneira o estrago feito, e o miúdo teve dois meses para que os fios crescessem até o início das aulas. Posteriormente, não mais falhei nas outras podas, pois adquiri prática sofrível às custas da garotada.
La Querye é sempre motivo de conversas animadas quando de meus encontros com os Roberts ao longo dos anos. Detalhes são rememorados, aumentando o prazer que o tema sempre nos traz. Presentemente, a propriedade continua com descendentes da família. Reformas foram feitas, salas de banho hoje existem e o todo está sendo muito bem cuidado. Preservar o domaine significa muito para aqueles que viveram meses inesquecíveis em plena Auvergne.

Recollections of holidays spent in the fifties at La Querye, the XIXth century property of my lifelong friends, the Roberts, in France. Leisure hours with much reading, piano practice, games, bike ridings through the countryside, regular visits to the public baths of Gannat, life tuned to a gentler key… Still in the family, restored and well preserved, the old mansion helps keep alive the memories of those distant summers in Auvergne.