Si j’étais Dieu, j’aurais pitié du coeur des hommes…
Maurice Maeterlinck
(Pelléas et Mélisande)
Conheci Pedro no início da década de 70. Chamou-me a atenção aquele rapaz de traços finos, barba e cabelos desalinhados, vestes surradas, que permanecia sempre na mesma confluência de vias importantes de minha cidade-bairro, Brooklin. Ficava sentado, olhar distante, sem nada pedir. Havia, contudo, qualquer semelhança com aqueles personagens saídos da pena de Dostoievsky. Se algo lhe era oferecido, agradecia e voltava a sentar de maneira curiosa, como se estivesse numa concha. Um dia perguntei seu nome e comecei a estabelecer um breve diálogo com ele. Como nada pedia, levava-lhe periodicamente algum mantimento ou vestuário. Simplesmente agradecia.
O Brooklin ainda não tinha sido invadido pela quantidade desmesurada de edifícios em processo predatório do espaço, a causar, no futuro, problemas irrecuperáveis, pois a insaciabilidade imobiliária está a planejar sempre prédios mais altos. Da Rua Jesuíno Maciel com a Av. Santo Amaro avistavam-se as colinas do Morumbi. Dessa confluência, indaguei a Pedro o que ele buscava. Sua resposta deixou-me perplexo. Disse-me que estava a procura da cadência e que sem ela perde-se o sentido das coisas. Quis saber mais e ele, em poucas palavras, comentou que a cadência estava bem longe, a apontar as colinas visíveis do Morumbi. Ao questionar sobre sua vida, permaneceu silencioso.
Certa vez dei-lhe um par de sapatos. Ficou feliz, mas em noite chuvosa pisou em uma madeira com prego, que destruiu a sola e perpassou-lhe o pé, levando-o a algum pronto-socorro. Durante muito tempo andou a mancar, primeiramente com faixas que ficaram escurecidas em pouco tempo. Dificilmente conseguia extrair de Pedro uma frase. Naquele tempo, escrevi um texto sobre o personagem intrigante, em caderno de anotações do cotidiano. O tempo passou e continuei a encontrar o andarilho, que jamais me contou onde se abrigava à noite. Naquele morador de rua havia alguma história diferenciada que se mantinha secreta. Não insistia, mas levava ao Pedro coisas básicas de que precisava. Parado, naquela posição quase fetal, via-o apenas no cruzamento. Deste, como epicentro, Pedro caminhava com rapidez em um diâmetro de cerca de três a quatro quilômetros, sempre a olhar para a frente e sem nada solicitar aos transeuntes. É provável que àquela época mantivesse a esperança de um dia encontrar a cadência.
Comentei em casa o desaparecimento de Pedro. Já fazia parte da minha rotina do olhar e das muitas indagações que elucubrava a seu respeito. Muitos anos após, reagrupando papéis espalhados, encontrei o texto que escrevera sobre ele em 1979, hoje perdido para sempre ao ter organizado outros escritos. Fiquei a pensar em Pedro. Certamente já teria morrido, pois a existência de um morador de rua está sujeita às mais difíceis agruras: alimentação, doenças, inverno, chuvas, violência. Quando passo pela esquina, outros moradores lá estão, na mendicância absoluta, ou outros personagens, como vendedores e acrobatas do infortúnio, alguns com raras habilidades. Pedro faz falta, pois representava a angústia interior a nada mais reivindicar da sociedade.
Há um mês tive uma sensação muito forte. Encontrei Pedro em um sábado, próximo à feira que freqüento, no Campo Belo. Não acreditei ser possível ter ele passado mais de três décadas e sobrevivido a tudo. Parei meu carro no meio-fio e chameio-o pelo nome. Naquela mesma posição fetal, ergueu a cabeça e olhou-me, sem nada dizer. O tempo é ainda mais implacável para os infortunados. Perdera um olho, o rosto marcado pelo total abandono, cabelos e barba desgrenhados, mas havia naquele homem uma dignidade na atitude. Levantou-se. Lentamente lembrei-lhe o passado, os nossos mínimos diálogos, o par de sapatos, as agruras. Algo veio-lhe à memória, pois me olhou fixamente. Falei-lhe da cadência e a recordação vinda das profundezas insondáveis afluiu. Sim, a cadência. Ainda a buscava. Nessa angústia, entendi vagamente que a cadência era seu pai, após cuja morte, confessou-me, saíra pelo mundo sem qualquer rumo, a buscar a cadência hipotética. Ainda não a encontrara, contudo ela existe, afirmou-me. A postura fetal, o caminhar sempre e a busca da cadência faziam sentido.
Tenho-me encontrado aos sábados com Pedro. O ciclo continua. Alquebrado pelo esquecimento de todos, ele um dia deverá encontrar a cadência que tanto almeja.
Escrevera anteriormente sobre Sisuphos (vide Sisuphos, 22 de Março de 2007, categoria Cotidiano). A sua saga persiste. Vejo-o passar diariamente pela rua. Pedro e Sisuphos são naturezas diferentes. Sisuphos, bem mais velho, leva seu carrinho de mão contendo os mesmos objetos de sempre. É mais irascível, pois quando descontente esbraveja e grita. Houve momentos em que, ao encontrá-lo nesse estado, tentei acalmá-lo. Conto sempre com seu sorriso apagado que vem do cerne da história, pois atemporal. Pedro e Sisuphos, moradores da intempérie, sobrevivem, a apontar o dilema absoluto das sociedades. Sem contar a incúria governamental que, preocupada com o assistencialismo que gera votos, coloca no mesmo patamar do esquecimento voluntário obras de saneamento do subsolo e infortunados moradores de rua. Estes, arautos do desespero, impossíveis eleitores. Incapazes de se defender, respiram o verdadeiro ar rarefeito da intolerância humana. Não morrem, porém. Suas chagas interiores, sem despertar a menor caridade, expõem nossas próprias chagas,uma delas a indiferença.
Pedro is a street dweller who since the seventies used to wander up and down the streets in my neighborhood. Silent and lonely, he never asked for anything. I used to give him food and clothes and on one occasion he told me vaguely he was searching for what he called “the cadence”. He then vanished and for the last ten years I thought him dead, given the difficult conditions affecting the homeless. Sometime ago he reappeared unexpectedly, looking old and worn out. I reminded him of our past encounters and for the first time he stammered something regarding the death of his father. Still searching for the cadence, which I understood as the balance he lost after his father died, leaving him alone and adrift, without means of survival. Just one more victim of our callous unconcern for anyone but ourselves and of the government’s lack of interest in addressing the systemic problems that prevent multitudes from living decent lives. After all, Pedro is not a voter.