A Mística de um Locutor de Rádio à Antiga
Em meu último post relatei a emoção única de ter participado e concluído a lendária Corrida de São Silvestre. Recebi inúmeros e-mails, vindo do Brasil e do Exterior. As lutas do João Carlos, o Grande Maestro do Povo, e deste seu irmão sublimaram-se naquele abraço pleno de lágrimas, quando de minha chegada.
Comentava no texto o encantamento traduzido pelas transmissões radiofônicas da São Silvestre. Num sentido mais amplo, meu pai ouvia jogos de futebol com os filhos aos domingos, trabalhando a horta do quintal, e nós acompanhávamos as narrações dos locutores sempre em alguma atividade no grande espaço que abrigava pássaros, cachorros, galinheiro, aquários. Um alto falante instalado no beiral da casa era comunitário e todos podiam ouvir e torcer. Vida de diferente interação, hoje estiolada pela tecnologia tão necessária.
Estou a me lembrar do jogo final da Copa de 1950, em que perdemos para o Uruguai. Foi no dia 16 de Julho, aniversário de nossa mãe. Tristeza absoluta, só anestesiada com os parabéns cantado na hora do apagar as velas do bolo. Recordo-me de Pedro Luís, Edson Leite, do comentarista Mario Moraes, Fiori Gigliotti e de alguns mais que, com suas vozes, preenchiam-nos com imagens. Elas eram narradas com tal precisão que as fotos dos jornais no dia seguinte apenas ratificavam o que fora dito na véspera. Meu apego era pelos locutores de nossa cidade. Apesar da força das rádios do Rio de Janeiro, desinteressavam-me as transmissões feitas pelos conhecidos homens de rádios cariocas.
Em meados da década de 50 surge Flávio Araújo. Em pouco tempo dominou espaços na poderosa Rádio Bandeirantes. Transmitia tudo: futebol e seus campeonatos, assim como as Copas de 1962 a 82; Eder Jofre x Harada no Japão; Fórmula 1 e a primeira vitória dessa lenda que é Emerson Fittipaldi; memoráveis jogos de basquete, quando a nossa “saudosa” seleção era composta de Wlamir, Rosa Branca – recentemente falecido -, Amauri e tantas outras glórias. Disseram-me um dia que Flávio era tão polivalente que, se a Rádio Bandeirantes tivesse que irradiar campeonato de cuspe à distância, ele seria chamado. Comandou bem mais tarde a equipe da Rádio Gazeta e até hoje é comentarista sobre os mais variados temas na Rádio Cultura de Poços de Caldas. Sendo o futebol uma paixão, Flávio Araújo permanece o arguto articulista em vários órgãos da imprensa, assim como no segmento on line. Trata-se de nome referencial e mencionado permanentemente pelos locutores de rádio e da televisão deste país. De suas transmissões ficaram-me certezas da narração exata, sem paixões desmedidas ou cacoetes que infestam, hélas, os profissionais voltados aos esportes dos meios de comunicação de nossos dias.
Flávio Araújo transmitiu muitas corridas de São Silvestre. Escreveu para www.ribeiraopretoonline.com.br um texto a partir de meu post anterior. Prazerosamente divido com os fiéis leitores essa descrição, que é parte de sua história. Agradeço a extrema generosidade do competente articulista em seus elogios, assim como o ter permitido a publicação de sua crônica neste blog.
Lição de Vida na São Silvestre
“Em grande estilo Raul Inostroza do Chile cruza a faixa de chegada. É o grande campeão da São Silvestre de 1948.” –
O locutor da Rádio Panamericana descrevia assim o final da esperada corrida que funcionava como uma deixa para que os rojões espocassem, os sinos badalassem e os corações vibrassem nos abraços apertados que saudavam a chegada de 1949.
Naquele momento, um garotinho de 10 anos, inteligência aguçada e raciocínio em altíssima velocidade ouvia atento todos os detalhes do grande evento esportivo promovido pelo jornal A GAZETA ESPORTIVA. Ao seu lado, o pai o acompanhava na vibração que o locutor de rádio sempre proporciona aos que acompanham essa atividade onde os brasileiros sempre se destacaram. O locutor esportivo do nosso país sempre recebeu admiração em todas as partes do mundo e o nosso estilo é copiado na maioria dos países. Foi no embalo dessa vibração que a intenção se firmou. O menino prometeu então a si e ao pai que um dia disputaria a São Silvestre.
Demorou 60 anos para que o desejo se concretizasse e somente na última quarta-feira o hoje septuagenário José Eduardo Martins cumpriu a promessa e o desejo do menino que continua morando dentro de si. A participação do José Eduardo teve, entretanto, um significado muito mais amplo do que a pretensão de qualquer pessoa de participar de um fato tão importante. Não só pela sua idade, não só pelo que tem feito na vida como grande mestre de piano, professor titular da Universidade de São Paulo, concertista de renome internacional com gravações feitas em alguns dos principais estúdios de algumas das maiores cidades do planeta Terra.
José Eduardo cumpriu a promessa de uma forma muito mais brilhante e completa do que se simplesmente completasse o difícil trajeto. Vestiu uma camisa com os dizeres “CÂNCER X VIDA” na parte da frente e “SUPERAÇÃO” às costas, enviando uma mensagem de fé e esperança aos que o divisassem. O grande mestre vem de superar o mal e a comemoração maior que encontrou foi dividir sua felicidade com tantos que precisam do incentivo para encontrar coragem para lutar e vencer a doença. Foi o lado mais belo e emocionante dessa última corrida que encerrou as atividades esportivas de 2008.
Sempre tive uma ligação bastante estreita com a Corrida de São Silvestre.
Poderia até dizer que de unha e carne. Com os ferimentos que tal contato pode provocar. Por quê ?
Ora, sabe lá o que é em todo 31 de dezembro estar a postos para narrar o evento, terminar um ano e começar o outro amarrado (literalmente) na traseira de uma viatura deslocando-se pelas ruas de São Paulo e levando ao ar todos os detalhes da grande prova?
Pois saibam que eu gostava muito desse trabalho. Se o congraçamento familiar tinha que esperar algumas horas, havia o entrelaçamento de tantas amizades mundo afora, que naqueles extraordinários momentos eu explorava ao máximo. Parece que o hemisfério sul se unia e as possantes ondas curtas da Bandeirantes me levavam a tantos países onde tantos amigos estavam me ouvindo. Dias após era esperar a correspondência que viria acalentar o ânimo e lustrar a auto-estima.
Eram outros tempos onde, sem Mercosul e sem essa babilônica explosão de siglas, a América do Sul estava unida pelo esporte e com valorosos competidores. Entre eles o colombiano Victor Mora, que venceu de 1972 a 1981; o equatoriano Rolando Vera, que ganhou por 4 anos consecutivos. Notem que não alongo a memória até o argentino Osvaldo Suarez ou a locomotiva Emil Zatopek, o fantástico corredor tcheco. Isto foi antes do “meu reinado”, que na São Silvestre começou em 1958. Mas uma simbiose já me unia à corrida desde então. E foram vitórias do belga Gastón Roelants ou do magnífico português Carlos Lopes que narrei ao longo de tantos anos.
Cheguei a acompanhar também a portuguesa Rosa Mota, que ganhou todas as provas femininas de 1981 a 1986.
A grande expectativa era o dia em que se registrasse a vitória de um brasileiro, o que teria para o evento o mesmo significado que a Copa do Mundo da Suécia em 1958 teve para o nosso futebol. E chegou finalmente com o garçom José João da Silva, em 1980, vindo João da Mata três anos depois ratificar o valor de nossos atletas.
Mas, simultaneamente com minha saída de cena e com alguns triunfos esparsos dos nossos patrícios, a São Silvestre deixou de ter aquela fisionomia de bandeiras do mundo hasteadas ao vento. Nada contra os quenianos, mas é indiscutível que a prova perdeu muito de seu brilho desde a primeira vitória de Simon Chemwuoyo em 1992 e os sucessivos triunfos de Paul Tergat, o seu maior vencedor na atualidade. Hoje, a São Silvestre resumiu-se a uma disputa entre brasileiros e quenianos, com visível vantagem destes. Acabou aquela confusão de idiomas e bandeiras entrelaçadas.
Além disso, aquele brilho que a noite lhe dava, a magia da passagem do ano, tudo ficou para trás cedendo aos interesses comerciais de uma grade de programação televisiva. É preciso lembrar que a São Silvestre nasceu quando o jornalista Cásper Líbero viu na França os corredores, em 1924, correndo com tochas acesas e trouxe a idéia para o Brasil. A mudança do percurso para a Avenida Paulista, fruto de mudança da própria Fundação que leva o nome de seu pioneiro, foi bastante acertada, mas o horário atual diminuiu em muito a grandiosidade mítica do evento.
Com tudo isso e voltando ao princípio destes escritos, reafirmo a minha alegria ao ver as fotos da chegada no tapete vermelho da Paulista do grande José Eduardo Martins completando o percurso e cumprindo o sonho do menino.
Do abraço do irmão e amigo João Carlos Martins, nome planetário, pianista de lotar o Metropolitan de Nova York, não menos grande portanto, não menos importante, mas naquele instante apenas o irmão feliz pela felicidade que o fato representou.
José Eduardo Martins, um dos mais ilustres pianistas deste planeta e que, do alto de seus 70 anos, saltitou como se dedilhasse notas de Mozart ou de Tchaikowsky e com as mesmas foi distribuindo amor a todos aqueles que tenham ou possam vir a ter a felicidade de conhecê-lo. E, quem sabe, a necessidade de se servir do impulso que seu gesto magnânimo ofereceu.
Flávio Araújo
Ao clicar no link, o leitor ouvirá a magistral transmissão de Flávio Araújo do milésimo gol de Pelé, aos 19 de Novembro de 1969, no Estádio do Maracanã no Rio de Janeiro, quando o locutor era grande expoente da Rádio Bandeirantes. O jogo: Vasco da Gama x Santos.
After reading my previous post on the St. Silvester Road Race, Flávio de Araújo, one of the foremost Brazilian sports journalists of the 2nd half of the 20th century, wrote his own account of the 2008 St. Silvester race, comparing it to those he covered so many times in the past. His article was posted on Ribeirão Preto Online sports section. With his permission, I reproduce it here, not without thanking him for his generous judgment of my musical activity. Readers of this blog may also listen to his narration of Pelé scoring his 1.000th goal in a penalty kick in 1969.