Navegando Posts publicados em fevereiro, 2009

Qualidade sem Empáfia

Etienne Siebens, ladeado por Johan Kennivé e J.E.M. Antuérpia, Fevereiro 2009. Clique para ampliar.

Si l’on vient à consulter les maîtres,
on apprendra que la première condition pour apprendre à penser,
c’est de cultiver en soi la faculté de l’étonnement.

Jean Guitton

Em uma tarde fria de domingo, acompanhei Johan Kennivé, amigo e competente engenheiro de som, à Antuérpia. Na noite anterior patrocinado pela De Rode Pomp, apresentei meu recital na Parnassus, antiga igreja dominicana, diante de um público receptivo. Estava pois disponível para viver jornada agradável e experiência enriquecedora. Johan viera à cidade, a fim de gravar o concerto da Sinfonieorkest Vlaanderen na grande sala da deSingel na Antuérpia, onde dias antes me apresentara na área reservada à musica de câmara e conferências, a kleine zaal van deSingel.
Tendo chegado horas antes do concerto, assisti aos ensaios enquanto Johan preparava os microfones para a gravação. Impressionou-me a competência não apenas do excelente regente Etienne Siebens, como também a homogeneidade da orquestra. Estive a me lembrar de uma entrevista concedida há décadas por Eleazar de Carvalho. A certa altura, a uma pergunta sobre a razão para ele reger pouco Debussy no Brasil, respondeu que a dificuldade maior residia na perfeição, inatingivel para nossas orquestras, quanto às baixíssimas intensidades, preferencialmente nos naipes das cordas. Como Debussy sempre foi um de meus interesses mais acentuados, não esqueci suas palavras, mormente pelo fato de que 80% da dinâmica debussyniana situar-se entre p e pp. Haveria, possivelmente, na resposta do maestro referência às diferenças qualitativas acentuadas entre os instrumentos dos músicos. Siebens obtinha dos impecáveis conjuntos das cordas, naquela grande sala, os estágios desses sons quase inaudíveis. Não apenas a dinâmica mostrava-se absolutamente proporcional nas diferentes intensidades, como a agógica, essa flexibilização dentro de determinado movimento, tornava-se quase etérea, tamanha a elasticidade dentro de profundo respeito à partitura.
No Concerto às 15 horas, duas obras capitais foram apresentadas: a 3° Sinfonia de Franz Schubert (1797-1828) e a 4° de Gustav Mahler (1860-1911). Sala plena, posicionei-me em lugar estratégico e previamente escolhido por Kennivé. Duas execuções maiúsculas sob a condução de Etienne Siebens, maestro que eu desconhecia. Para a execução da longa Sinfonia de Mahler, poderia asseverar que instantes mágicos foram vividos.
Ao final do concerto, conversei longamente com Siebens a respeito de sua observância, no limite possível, dessa flexibilização nos movimentos, o que implica, com certeza, um domínio absoluto quando nas intensidades abissais. Teria gostado da pergunta, pois disse-me ser essa uma de suas grandes preocupações relacionadas às Sinfonias de Gustav Mahler.
Em determinado momento, fiz uma pergunta provocativa: “Como considera a Sinfonieorkest Vlaanderen no cenário musical?” Com a maior naturalidade respondeu-me que se tratava de uma boa orquestra belga, nada mais. Senti da parte do competente regente a mais absoluta tranquilidade. Qual a razão de ranquear a orquestra, se ela é realmente boa?
No regresso a Gent comentamos, Johan e eu, sobre o que é de fato bom. Se o nível atingido é de excelência, não há a menor necessidade de se alardear, o que poderia, sob outro aspecto, demonstrar insegurança ou empáfia. A SOV tem raras qualidades, assim como seu regente titular. Já não bastam? Frise-se que todo o resultado sonoro, de altíssimo nível, é obtido com o mínimo de gestual por Etienne Siebens.
Fiquei a pensar nas orquestras brasileiras e nessa necessidade – falta de parâmetros nestas latitudes – de classificação qualitativa, até em comparação internacional, sendo que a realidade é e será sempre subjetiva e não propensa, hélas, ao que realmente almejaríamos. Não vi nenhum vedetismo por parte de Siebens, tampouco fotos grandiloquentes demonstrando “intenso” empenho, aparências da verdade ou da competência. Siebens ou tantos outros realmente bons não precisam glorificar seu trabalho. O que é captado pelos ouvidos do público já é resposta. Sob outra égide, o julgamento do regente não adquire dignidade quando simplesmente se considera entre aqueles que buscam fazer o melhor? Sempre estamos a aprender.
Apresentaremos neste Março, pela USP-FM, gravações da Sinfonieorkest Vlaanderen sob a direção de Etienne Siebens, que nunca regeu no Brasil. Todas as gravações da SOV foram realizadas ao vivo por Johan Kennivé.

After listening to an absolute brilliant live performance of the Sinfonieorkest Vlaanderen playing Schubert and Mahler under Etienne Siebens, I asked the conductor how he would rate his orchestra. He replied it was a good Belgian orchestra, not more than that. His words made me reflect upon how pointless it is to attempt to rank “the top orchestras in the world” − always a subjective evaluation. If Siebens’ restrained and inspiring conducting and his excellent musicians led the orchestra to a great performance, a pleasure to the audience, no need to show off. They rank themselves simply among those many who are doing their best and that’s all that counts.

A Música Destinada às Empatias

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La musique de Fauré, comme la pudeur elle-même,
est une espèce de secret:
elle décourage les lourdauds, les frivoles et les touristes,
mais elle parle tout bas à l’oreille de ceux qui méritent d’entendre.

Vladimir Jankélévitch

Muda o registo, eis uma barcarola:
Lírios, lírios, águas do rio, a lua…

Camilo Pessanha

Durante meu recital em Gent, num gélido 14 de Fevereiro, foi lançado pelo selo De Rode Pomp o CD contendo unicamente obras para piano de Gabriel Fauré. Gravei-o em 2008. Fauré, o menos tocado dos três grandes compositores franceses do período – Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937) – é pouquíssimo frequentado pelos pianistas. De sua obra pianística, o público conhece um ou dois Impromptus ou dois ou três Nocturnes. E é só. Essa lamentável situação deve-se a fatores vários: a não existência, em sua opera omnia para o instrumento, de coletâneas compactas encontráveis em Debussy e Ravel, exceção aos Neuf Préludes op. 103 ou as Pièces Brèves op. 84. Se a Ballade op. 19 para piano solo é mais conhecida em sua versão com orquestra e o Thème et Variations op. 73 tem longa duração, nem por isso entram em programas como obras de résistance, o que estaria a evidenciar um equívoco. Sob outra égide, os empresários não estimulam a introdução de Fauré nos repertórios por motivos relativos à existência de grandes ciclos na obra do compositor, mas percorrendo décadas de criação. São os casos dos 13 Nocturnes e das 13 Barcarolles, escritos respectivamentes entre 1883-1922 e 1881-1922 assim como dos 5 Impromptus, que surgiram de 1881 a 1909. Essa descontinuidade teria sido uma das razões a rotular Fauré como autor de pequenas peças. Ledo engano perpetrou-se e a obra do ilustre compositor permanece pouco tocada.
Há que se considerar uma característica essencial na produção de Gabriel Fauré. Vive o período romântico da segunda metade do século XIX e dos primeiros decênios do XX, quando já se faziam sentir as várias tendências levando a tonalidade ao impasse. Procedimentos novos se instalam. Sob outro aspecto, convive com autores que tinham em mente a renovação sonora. Fauré, sem aderir aos novos anseios e tampouco tendo como meta caminhos timbrísticos específicos, mantem-se fiel aos seus princípios. Escreveria à sua mulher aos 23 de Agosto de 1904: “Como é difícil fazer boa música que não deve nada a ninguém, mas que possa interessar algumas pessoas”. Torna-se axiomática essa assertiva, pois o romantismo faureano não busca jamais o grandiloquente. Há algo velado, contido, intenso, pressionado, mas de fina elegância. Música do inefável. Realmente a interessar não à multidão, mas parcela de ouvintes. Paradoxalmente, o “som” em sua obra é único.
A renovação faureana estaria expressa na condução de sua escrita voltada à intensa trama polifônica, pois o autor em tantas obras apresenta o discurso musical nesse sentido horizontal, onde as linhas têm o seu caminhar inusitado. Talvez o fato de ser ambidestro tenha conferido à sua escrita pianística dificuldades análogas para ambas as mãos. No CD em pauta, a extraordinária Ballade op. 19, infelizmente pouco tocada em sua versão original para piano solo, é um exemplo claro, assim como o monumental 6º Nocturne ou o 4º Impromptu.
Sob o aspecto da interpretação, acredito ser Fauré um dos compositores mais complexos. Poder-se-ia dizer que há uma sonoridade faureana. Ela estará a serviço dos temas longos e generosos, da polifonia singular, dos contrastes dinâmicos tantas vezes abruptos, da agógica sensível, de uma técnica apurada quanto ao emprego dos pedais.
A minha relação com a obra para piano de Gabriel Fauré vem da adolescência. Quando meu pai fez-nos ouvir um LP com os Nocturnes do compositor, fiquei subjugado, tamanha foi a penetração daqueles sons etéreos em meus ouvidos. Ao estudar durante quatro anos em Paris com Marguerite Long, ratifiquei preferências. Mme Long criara a Ballade op 19 em sua versão para piano e orquestra, e a ela Gabriel Fauré dedicou o 4º Impromptu. No meu de profundis, sinto a pressão dos dedos da ilustre pianista e professora sobre meus ombros quando tocava em sala de aula o 4º Nocturne, dizendo-me: “C’est comme ça”, a querer transmitir herança recebida do mestre.
Do novo CD da Rode Pomp constam: Ballade op. 19, Thème et Variations op. 73, Nocturnes 4 e 6, os cinco Impromptus (integral) e a 12ª Barcarolle.
Abrir as portas da imaginação, estar propenso a entender esse romantismo velado, mas não alheio à intensa emoção, deixar-se penetrar por esses sons mágicos são tópicos que podem propiciar ao coração transferir à razão sentimentos destinados a “poucas pessoas”. É só estar propenso ao entendimento.

Clique para ouvir o Noturno no.4 de Gabriel Fauré, na interpretação de J.E.M. Gravação realizada em Mullem, Bélgica – 2008. Selo De Rode Pomp.

Revisitação Anual

Saint-Nicholas, Beffroi e Saint-Bavon. Foto Tony Herbert. Fevereiro, 2009. Clique para ampliar.

Encanta-me Gent. O inverno rigoroso salienta sua arquitetura criada nesse espírito voltado às tonalidades cinzentas, não desprovidas de beleza. Das estações, a mais fria pode também ser a mais contagiante. Contrastes fortes que nos levam a dormir com a paisagem habitual e, ao acordar, ver tudo imaculadamente branco, mercê da nevasca da noite. Em posts anteriores já demonstrei minha admiração pela bela cidade. Quando converso com conterrâneos que visitaram a Bélgica, sempre falam de Bruges, típica cidade flamenga, a guardar na essência a integridade medieval. Pouco sabem de Gent e muitos a desconhecem. Algumas dezenas de quilômetros as separam por via férrea, mas a notoriedade maior de Bruges é insofismável. As ligações musicais e afetivas com Gent levaram-me à cidade mais de vinte vezes, o que poderia tornar parcial minha posição. Contudo, a cidade guarda todos os encantos que a Idade Média proporcionou a Bruges, tendo contudo se expandido, a tornar-se um forte centro industrial, comercial e cultural. O centro de Gent é de extraordinária beleza. Ruas estreitas, outras não tanto, levam o visitante a permanentes maravilhamentos. Todas essas jóias da arquitetura medieval ali estão, configuradas de maneira harmoniosa, proporcionando à austeridade das construções uma significação ímpar. Iluminadas nessas noites gélidas de Fevereiro, tornam-se mágicas.
Sempre causam-me forte impacto as igrejas e a catedral medievais gantoises. O estilo sóbrio de seus templos harmoniza-se com as construções típicas dos centros flamengos. A mente privilegia-nos com o filtramento das imagens. É só tentar entendê-las em seu contexto histórico, pois chegam até nós absolutamente intactas.

J.E.M. em foto de Tony Herbert. Fevereiro 2009. Clique para ampliar.

Impõe-se majestosa a magnífica Catedral de Saint-Bavon (Sint-Baafskathedraal), um dos mais importantes monumentos religiosos da Europa medieval. Localiza-se no centro histórico de Gent e, em linhas retas, tem-se o não menos imponente Beffroi (Belfort) e, mais adiante, a Igreja de Saint-Nicholas (Sint-Niklaaskerk), os três monumentos separados por praças que abrigam em suas laterais restaurantes, cafés e algumas lojas. Tendo apenas uma torre, uma das mais altas construídas no período, a construção de pedra e granito de Saint-Bavon tem em seu interior cripta em estilo românico. O coro gótico da Catedral foi construído entre os séculos XIII e XIV, sendo que a torre definitiva data dos séculos XV e XVI. A nave magnífica e transcepto foram terminados num período de 20 anos, de 1539 a 1559. Em Saint-Bavon, Carlos V (1550-1558), nascido em Gent e futuro imperador, com influência e poder marcantes na Europa, foi batizado. Púlpito e altar datam do século XVIII, contrastando harmoniosamente com o todo. Saint-Bavon abriga preciosidades, sendo que a maior delas, verdadeiro patrimônio da humanidade, A Adoração do Cordeiro Místico (1432) dos irmãos Van Eyck, está exposta na capela à esquerda da entrada da Catedral. Atraído pelo extraordinário políptico, não deixo de visitá-lo periodicamente. A cada novo olhar, algo diferenciado apreendo da obra. Mencione-se igualmente a magnífica escultura em mármore branco e negro de Jerôme de Quesnoy, homenageando Antoon Triest.
A primeira construção da Igreja de Saint-Nicholas data do século XI. Reza a história que, durante um longo período de fome, a população fez orações ao Santo, patrono dos barqueiros, dedicando-lhe a igreja a seguir. O fogo destruiu-a no século seguinte, mas houve a reconstrução, no século XV, às custas de donativos da alta burguesia, Saint-Nicholas impôe-se pelo aspecto compacto. É dos templos de Gent, aquele com que mais me identifico, pelo seu exterior austero.
Saindo-se desse centro mágico, tantas outras igrejas em Gent evidenciam períodos de grande esplendor da cidade. Mencionaria as Igrejas de Saint-Michel, datada do século XVI, a Igreja de Saint-Jacob com sua pequena praça, onde um concorrido mercado de antiguidades instala-se nas manhãs de sábados e domingos. Visito-o sempre.
Após o recital na bela Antuérpia, tenho de ensaiar para o recital de amanhã em Gent sob o patrocínio da minha querida De Rode Pomp, o que me faz interromper a breve descrição. São tantos os outros belos templos, edifícios, museus, praças, canais visitados ao longo dos anos. Gent continua a me encantar, e isso é uma dádiva.