Qualidade sem Empáfia
Si l’on vient à consulter les maîtres,
on apprendra que la première condition pour apprendre à penser,
c’est de cultiver en soi la faculté de l’étonnement.
Jean Guitton
Em uma tarde fria de domingo, acompanhei Johan Kennivé, amigo e competente engenheiro de som, à Antuérpia. Na noite anterior patrocinado pela De Rode Pomp, apresentei meu recital na Parnassus, antiga igreja dominicana, diante de um público receptivo. Estava pois disponível para viver jornada agradável e experiência enriquecedora. Johan viera à cidade, a fim de gravar o concerto da Sinfonieorkest Vlaanderen na grande sala da deSingel na Antuérpia, onde dias antes me apresentara na área reservada à musica de câmara e conferências, a kleine zaal van deSingel.
Tendo chegado horas antes do concerto, assisti aos ensaios enquanto Johan preparava os microfones para a gravação. Impressionou-me a competência não apenas do excelente regente Etienne Siebens, como também a homogeneidade da orquestra. Estive a me lembrar de uma entrevista concedida há décadas por Eleazar de Carvalho. A certa altura, a uma pergunta sobre a razão para ele reger pouco Debussy no Brasil, respondeu que a dificuldade maior residia na perfeição, inatingivel para nossas orquestras, quanto às baixíssimas intensidades, preferencialmente nos naipes das cordas. Como Debussy sempre foi um de meus interesses mais acentuados, não esqueci suas palavras, mormente pelo fato de que 80% da dinâmica debussyniana situar-se entre p e pp. Haveria, possivelmente, na resposta do maestro referência às diferenças qualitativas acentuadas entre os instrumentos dos músicos. Siebens obtinha dos impecáveis conjuntos das cordas, naquela grande sala, os estágios desses sons quase inaudíveis. Não apenas a dinâmica mostrava-se absolutamente proporcional nas diferentes intensidades, como a agógica, essa flexibilização dentro de determinado movimento, tornava-se quase etérea, tamanha a elasticidade dentro de profundo respeito à partitura.
No Concerto às 15 horas, duas obras capitais foram apresentadas: a 3° Sinfonia de Franz Schubert (1797-1828) e a 4° de Gustav Mahler (1860-1911). Sala plena, posicionei-me em lugar estratégico e previamente escolhido por Kennivé. Duas execuções maiúsculas sob a condução de Etienne Siebens, maestro que eu desconhecia. Para a execução da longa Sinfonia de Mahler, poderia asseverar que instantes mágicos foram vividos.
Ao final do concerto, conversei longamente com Siebens a respeito de sua observância, no limite possível, dessa flexibilização nos movimentos, o que implica, com certeza, um domínio absoluto quando nas intensidades abissais. Teria gostado da pergunta, pois disse-me ser essa uma de suas grandes preocupações relacionadas às Sinfonias de Gustav Mahler.
Em determinado momento, fiz uma pergunta provocativa: “Como considera a Sinfonieorkest Vlaanderen no cenário musical?” Com a maior naturalidade respondeu-me que se tratava de uma boa orquestra belga, nada mais. Senti da parte do competente regente a mais absoluta tranquilidade. Qual a razão de ranquear a orquestra, se ela é realmente boa?
No regresso a Gent comentamos, Johan e eu, sobre o que é de fato bom. Se o nível atingido é de excelência, não há a menor necessidade de se alardear, o que poderia, sob outro aspecto, demonstrar insegurança ou empáfia. A SOV tem raras qualidades, assim como seu regente titular. Já não bastam? Frise-se que todo o resultado sonoro, de altíssimo nível, é obtido com o mínimo de gestual por Etienne Siebens.
Fiquei a pensar nas orquestras brasileiras e nessa necessidade – falta de parâmetros nestas latitudes – de classificação qualitativa, até em comparação internacional, sendo que a realidade é e será sempre subjetiva e não propensa, hélas, ao que realmente almejaríamos. Não vi nenhum vedetismo por parte de Siebens, tampouco fotos grandiloquentes demonstrando “intenso” empenho, aparências da verdade ou da competência. Siebens ou tantos outros realmente bons não precisam glorificar seu trabalho. O que é captado pelos ouvidos do público já é resposta. Sob outra égide, o julgamento do regente não adquire dignidade quando simplesmente se considera entre aqueles que buscam fazer o melhor? Sempre estamos a aprender.
Apresentaremos neste Março, pela USP-FM, gravações da Sinfonieorkest Vlaanderen sob a direção de Etienne Siebens, que nunca regeu no Brasil. Todas as gravações da SOV foram realizadas ao vivo por Johan Kennivé.
After listening to an absolute brilliant live performance of the Sinfonieorkest Vlaanderen playing Schubert and Mahler under Etienne Siebens, I asked the conductor how he would rate his orchestra. He replied it was a good Belgian orchestra, not more than that. His words made me reflect upon how pointless it is to attempt to rank “the top orchestras in the world” − always a subjective evaluation. If Siebens’ restrained and inspiring conducting and his excellent musicians led the orchestra to a great performance, a pleasure to the audience, no need to show off. They rank themselves simply among those many who are doing their best and that’s all that counts.
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