Navegando Posts publicados em julho, 2009

Lembrá-lo Eternamente

Desenho a lápis. Carlos Oswald (1882-1971). Clique para ampliar.

E não me chamem de Mestre
sou apenas aprendiz
daquilo que me é o mundo
e do que sendo me diz

Agostinho da Silva

Professor é alguém que ajuda os outros a aprender;
Mestre é, sobretudo, aquele que ajuda os outros a “desaprender”:
a desaprender conceitos errados de vida, de verdade, de sabedoria, de Amor…

José Flórido

Tenho o maior apreço pela etimologia da palavra mestre. Vem o termo do latim magister. A designação de mestre era uma referência extraordinária àqueles que mereciam ostentar o título, mesmo que simbólico. No coletivo, tem-se Mestres Espirituais, da Pintura, da Música, da Ourivesaria. Em França, o termo maître, seja ele aplicado, como exemplos, a um grande músico ou a um especialista em culinária, tem sua carga competente. Ainda hoje, particularizado em tantas funções, Mestre do desenho, do teclado, de obras, de carpintaria. Qual a razão? Pelo fato de que se tem alguém a ensinar ciência, arte ou qualquer outro ofício. Seria o mestre a figura fulcral em sua especialidade, aquele a dominar o seu métier no sentido amplo. Não por outro motivo, a chave-mestra designa aquela que abre todas as portas. Em qualquer atividade, as portas da mente serão abertas quando influências de mestres competentes tiverem sido assimiladas, filtradas e até dimensionadas.
As gerações atuais pouco a pouco esquecem-se de honrar os verdadeiros mestres. Ao perguntar sobre a relação com os mestres a muitos colegas e alunos, nem sempre há a recordação precisa dos ensinamentos recebidos, mormente se foram inúmeros a ensinar e, tantas vezes, em salas coletivas. Ficam vagas lembranças, mas quando alguns mencionam com respeito determinado mestre, tem-se a fixação. Mensagens foram assimiladas. Num aspecto outro, vive-se a era em que superficialidade e interesse têm mais peso do que ensinamentos que penetrem inteiramente no de profundis. Torna-se necessário, para aferições curriculares, a quantidade de cursos realizados. Questionários não solicitam o que foi efetivamente aprendido. Sob outra égide, acentuam-se cursos realizados via internet. Telões apresentam um professor transmitindo para uma câmera o que deve ser passado. Um dileto amigo, que frequentemente visita a China, disse-me que essa prática atinge, inclusive, as classes de ensino de piano, pois naquele país há cerca de 30 milhões de praticantes! O que esperar de geração formada sem elos para a amarra de uma cadeia? A realidade tem sido cruel frente ao verdadeiro significado de mestre. Se mestres existem no Ocidente em todas as áreas, não estão a ser devorados pelo Leviatã da globalização?
O mestre autêntico é aquele que aprende todos os dias e, assim sendo, permanece sempre um aprendiz, o maior deles. Se ele tem essa consciência, fruto de mundo interior singular, certamente não terá empáfia, e os holofotes, se houver, serão entendidos apenas como luzes que precisam de uma tomada de eletricidade para que se acendam e não como meta final. Seu objetivo maior, o culto à qualidade exemplar. O mestre responsável entende como dádiva o que assimilou de outros mestres, não se achando acima de seus ascendentes, mesmo que os supere. Há nele, sempre, a compreensão quanto aos passos do discípulo, em qual estágio estiver, e felicidade ao ver horizontes mais extensos que o seu, se este o ultrapassa na trajetória. Difere visceralmente do pseudo-mestre, cuja intenção é tornar o aluno um eterno dependente. Ponderaria que são poucos os mestres autênticos que permanecem perenemente no pensamento de um discípulo autêntico, pois o amálgama se dá de mente para mente, e nem sempre a transmissão encontra campos propícios. Na acepção, evita delegar seu dever àqueles ainda não preparados para o mister, mas está sempre disposto a guiá-los. Pode ter “candidatos” a mestre bem próximos, mas permanece inteiro no ensino, diante dos aprendizes. Sente-se merecedor. Verdadeira missão.
Hodiernamente no Ocidente, mormente na vida acadêmica, mestre é títulação inicial, preferenciando a Academia os subsequentes, como doutor e outros mais. Há quase que o olhar benevolente daqueles que se encontram acima na carreira universitária para o que se tornou mestre. Isso é fato. Banalizou-se a palavra, extinguindo-se-lhe a força intrínseca, espiritual e a essência essencial, pois legiões obtêm o título de mestre anualmente. Paradoxalmente, muitos daqueles que concluem o mestrado, motivados pela necessidade acadêmica, já o são de fato pela experiência. Nesses casos, o papel apenas indicaria a “oficialização” da Academia para possível ascensão na carreira. Contudo, em muitas universidades públicas brasileiras o mestrado não serve sequer para que esse recém-titulado concorra a uma vaga acadêmica quando concurso é aberto. Menos mal que o título fique restrito intramuros, a permanecer, para a grande maioria, a palavra com seu real e abrangente significado fora da Academia. Destruiu a universidade a magia do termo. Não seria a minimização da palavra mestre, no caso, um desvirtuamento terminológico?
O tema surgiu a propósito de sub-capítulo de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer de Sogyal Rinpoche (São Paulo, Talento-Palas Athena, 2008, 11º edição, 530 págs.). A reverência, amor mesmo, respeito, admiração que se depreende da leitura da bela apologia levou-me a considerar a posição que um autêntico mestre exerce sobre nós. Um mestre budista é muitas vezes um ser iluminado.
Escreve Sogyal Rinpoche: “No nível mais profundo e mais elevado, o mestre e o discípulo não são nem podem ser em caso algum separados, porque a tarefa do mestre é nos ensinar a receber, sem obscurecimento de qualquer tipo, a mensagem clara de nosso próprio mestre interior, e levar-nos a perceber a contínua presença desse mestre máximo dentro de nós”. Aplicado à categoria dos mestres do budismo, a analogia com aquilo que deveríamos entender por mestre no Ocidente pode ser aventada. Quem cultua o mestre permanente entende a sua importância fundamental, principalmente quando, ao ensinamento na área, soma-se a compreensão da cultura humanística como um todo. Num sentido amplo, o mestre permanecerá como um farol. A cada flash de luz, como em noites sombrias no mar, lições aprendidas permanecerão pela existência afora, consubstanciando mensagens que são passadas às nova gerações pelo agora discípulo mestre.
Ficaria implícito que reverência seria sinal de gratidão por parte do aluno que soube assimilar as palavras do mestre, mais intensamente gravadas na mente do discípulo se houver abrangência por parte do magister. Competência e sensibilidade do mestre, receptividade e gratidão por parte do aluno. O ser grato ao mestre é uma consequência? É-o, mesmo que com gradações, no cerne do relacionamento entre quem transmite e aquele que absorve; é-o, se considerarmos a metáfora, proposta por Sogyal Rinpoche, de que o discípulo é aquele que jamais viu seu próprio rosto, mas que só dele tomou conhecimento quando o mestre apresentou-lhe um espelho capaz de revelar traços apenas imaginados. Mestres cultuados e discípulos a entenderem a continuidade do pensar não seriam formas de se atenuar a crescente vaga de desinteresse, desrespeito e irresponsabilidade existente no triste panorama que vemos diariamente nos noticiários? Demole-se pouco a pouco a relação elevada que deveria existir. O homem a caminho do esquecimento das tradições. Contudo, não podemos deixar de acreditar, e os exemplos vivos da perfeita harmonia mestre-aluno representam a luz que ainda não se apagou.
Se, ao longo destes quase dois anos e meio, posts têm sido publicados ininterruptamente, em muitos deles meus saudosos mestres foram e serão lembrados. A trajetória se tornou mais harmoniosa, mercê da dádiva de com eles poder ter apreendido ensinamentos. No turbilhão do viver, a tentativa de compreensão do mistério da vida passa inexoravelmente pelo culto àqueles que nos guiaram. A partir deste, há a possibilidade de entendermos partícula mínima, infinitesimal da existência e colaborar, como um grão de areia, na edificação de um mundo melhor.

A reflection on the qualities that make a good teacher, a master in the true sense of the word. Unfortunately, universities in the West do not understand the real meaning of the word with its spiritual implications. The new generations often show little or no reverence for their masters. Only Oriental religions and the great artistic movements of the West are aware of the traditional values that dictate the master-disciple bond.

Caminho para Varna

Estação rodoviária de Sófia. Foto J.E.M. 1996. Clique para ampliar.

Felicidade é a certeza de que a nossa vida
não está se passando inutilmente.

Érico Veríssimo

Quantas não são as viagens esquecidas? Aéreas, por vias férreas ou rodovias, parte considerável dos deslocamentos não é lembrada. A memória, com as sucessivas viagens, não pode reter todas elas. Permanecem aquelas em que algo inusitado acontece. Uma primeira vez, visita diferenciada a determinado lugar, relacionamentos novos, transportes os mais diversos, tudo torna indelével uma jornada, ainda mais se fatos quebram a normalidade que se espera.
As décadas acumuladas fizeram-me sentir sensível diferença entre os deslocamentos aéreos e os terrestres. Aeroportos ocidentais de maior porte têm quase sempre características muito próximas. Cosmopolitas, alguns bem mais equipados que outros, todos ostentam certas semelhanças. As pessoas, tanto no check-in como na sala de embarque, mostram-se sérias, geralmente incomunicáveis, algumas até arrogantes, por função profissional que buscam evidenciar através de gestos, trajes, utilização ostensiva de celulares e parafernália outra. Para aqueles que não pertencem à classe econômica, esse distanciamento em relação à categoria “social inferior” fica mais evidente no momento do embarque. Essa atitude pode ser observada também nos comboios no Exterior, mormente nos ótimos e rápidos TGVs, bem mais caros, ainda mais na primeira classe. Mas, nos trens comuns, uma maior interação entre as pessoas fica evidente. São fatos que a simples observação constata. Quanto à viagem coletiva por rodovia, mais abertamente social, chega a haver até congraçamento, a depender das circunstâncias.
Estava a percorrer álbuns de fotografias quando encontro algumas tiradas em 1996, durante viagem de ônibus de Sófia a Varna, na Bulgária. Convidado para um recital nessa cidade às margens do Mar Negro, foi-me oferecida passagem de avião, em percurso de curta duração. Pedi aos organizadores que providenciassem uma por rodovia, jornada que leva sete horas em média, pois tencionava pelo menos ver terras outras, cidades, vilas, aldeias, paisagens e captar uma mínima parcela da índole do povo búlgaro.
A estação rodoviária, simples e um pouco desorganizada, chamou-me a atenção pelas destinações as mais diversas de tantos veículos, assim como a presença desse povo humilde, muitos camponeses, pequenos comerciantes, mulheres com crianças, idosos. Cristãos e muçulmanos entravam nos vários autocars. Liam-se as localidades fixadas em cada um: Atenas, Istambul, cidades da antiga Iugoslávia – havia ainda litígios fratricidas grassando nos países recém-constituídos – e outras mais da região, ilegíveis para um leigo na escrita cirílica.

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O ônibus para Varna saiu lotado. Os passageiros, muitos com traços ciganos, conversavam com certa desenvoltura e em voz alta. A visão do cerne de um país, pois a estrada corta a Bulgária de oeste a leste, ficou marcada pela presença de pequenas florestas nas encostas de montanhas, onde se destacavam pinheiros, plantações de legumináceas, rebanhos esparsos de carneiros, minas ou pedreiras, muitas serras, pequenas cidades e aldeias, campesinos a trabalhar a terra ou a andar pelas margens da rodovia e muitas carroças bem típicas, puxadas por dois animais. Percebia-se em todas as moradias, mesmo as mais singelas, uma certa estrutura, a fim de suportar invernos rigorosos. Tornovo, parada obrigatória no meio do percurso, é a maior delas até chegar-se a Varna. Duas ou três outras paradas mínimas serviram para que eu descesse do veículo, a fim de fotografar camponeses em suas andanças.
A Bulgária abandonara há pouco o regime comunista, com o esfacelamento da antiga União Soviética. Sete anos é tempo curto para a recuperação, e nesse belíssimo país podia-se sentir a dificuldade financeira, pois tudo estava imensamente barato para um ocidental. A moeda era a leva, e refeições e o cotidiano mostravam-se a preços irrisórios.
Algo bem curioso ocorreu durante a ida e o retorno. Dois filmes foram exibidos em cada trajeto, fato normal numa longa viagem. Contudo, sem legendas, todos estavam dublados em búlgaro por uma voz única masculina. Como o sonoro idioma búlgaro é pleno de consoantes, há uma tendência natural às vozes mais graves. Estava eu preferencialmente a observar a paisagem ou a repousar, mas ocasionalmente via alguns segmentos do filme em exibição. Em um deles, a escultural Kim Bessinger estava em cena idílica, possivelmente a declarar amor ao parceiro, mas dublada por voz masculina grave sem nenhuma expressão. Dei boas risadas. Controlei-me ao observar o espanto dos outros passageiros. Em um outro filme, uma criança de cinco ou seis anos entra no quarto dos pais e diz “papa, papa” com voz de adulto. Novamente não me contive, e os olhares dos companheiros de viagem bem evidenciaram que eu não apenas nada estava a entender, como desconhecia essa prática, normal em tempo de transição política. E de pensar que os barítonos búlgaros são excepcionais, assim como as vozes femininas, existindo na Bulgária alguns dos mais perfeitos conjuntos vocais do planeta.

Cartaz do recital de piano de J.E.M. em Varna. 1º de Setembro de 1996. Clique para ampliar.

Ao chegar a Varna, um deslumbramento e a sensação de estar em uma cidade às margens do Mar Negro de tantas lendas, guerras e histórias outras. Mar interior, entre o Sudeste da Europa e a Ásia Menor, banha várias costas: Géorgia, Rússia, Ucrânia, Romênia, Bulgária e Turquia. Sua área total é de 422.000 km2, tendo profundidades bem acentuadas. Saber que esse mar interior apresenta-se frente às cidades como Sebastopol (palco de violentos combates históricos, mormente no famoso cerco durante a Guerra da Criméia -1854-1855, e em episódios épicos em plena Segunda Grande Guerra); Odessa (lá nasceu meu saudoso professor José Kliass); Ialta (cenário da célebre conferência – conjunto de reuniões – em Fevereiro de 1945, com a presença de Churchill, Roosevelt e Stalin, meses antes do término da Segunda Grande Guerra), Constança, antiga Tomis (para onde Ovídio – 43 a.C-17 d.C, o autor de Metamorfoses, foi desterrado); Varna; Istambul (outrora Constantinopla e Bizâncio de fantástica história), causa impacto.

De belo jardim em Varna, pormenor do Mar Negro. Foto J.E.M. 1996. Clique para ampliar.

Como estávamos nos estertores do verão, após o recital, que se deu no fim da manhã, fui até o jardim bem cuidado a proporcionar uma visão única do mar em momento ensolarado. Dele, descendo por escadaria bem antiga, tem-se acesso a uma das praias. Tirei sapatos e meias e caminhei cerca de vinte minutos, a sonhar com lendas e tradições do Mar Negro. Uma sensação de alegria e de emoção ao pisar aquelas águas que povoaram meu imaginário juvenil, quando leituras dimensionavam o misterioso Mar. Lembro-me, ainda miúdo, de um conto russo que minha mãe me leu, e aquele Mar pareceu-me ter uma importância descomunal, pois envolvia barcos tragados misteriosamente pelas águas. Era a primeira revelação. Meu grande amigo Gilberto Mendes pediu-me que incluísse no programa uma peça sua, pois Varna tem para ele uma aura especial, a povoar há muito tempo o seu rico imaginário. Esqueceram-se de colocar o nome impresso, mas toquei Viva-Villa a anteceder obras de Villa-Lobos. Ficou feliz, mas gostaria de ver seu nome no programa. Grande Gilberto.
O regresso deu-se tranquilamente. Os mesmos filmes foram reprisados, mas as paisagens eram diferenciadas, pois apreendidas em sentido contrário. Havia a certeza de que valera a pena ter trocado o meio de transporte, pois, se aéreo, poderia perder-se no esquecimento. O inusitado a ficar gravado. Perenemente.

On my way to Varna:
Unexpected events are hardly forgotten, specially when one is travelling. Flipping through an old photo album brought back memories of singular moments lived in Bulgaria in 1996: embarking on a seven hour trip by bus from Sofia to Varna among locals; strolling barefoot on the shores of the mythical Black Sea.

A Intensidade a Tornar-se Pulsação

Desenho de Luca Vitali, após a leitura do presente post. 2009. Clique para ampliar.

Quand la foi s’éteint c’est Dieu qui meurt
et qui se montre désormais inutile.

Antoine de Saint-Exupéry

Márcia é amiga muito querida. Escreveu-me que em uma palestra encontrou professora da USP por quem nutro profunda amizade, mas com quem não tenho contato há muito tempo. Nossa cidade descomunalmente difícil. Márcia comenta sobre a colega uspiana: “Ficou absolutamente surpresa, aliás, quando contei sobre sua chegada na corrida de São Silvestre. Depois de alguns minutos, contudo, refletiu e disse que você era capaz de fazer qualquer coisa a que se propusesse…”. Confesso ter achado graça no e-mail da amiga. Mas, como ocorre habitualmente, logo após fiquei a pensar sobre o assunto. O que nos leva a enfrentar desafios, vencê-los ou não, mas nunca desistir por desânimo ou receio de ver uma obra complexa não chegar a termo? Meu saudoso pai tinha algumas normas de conduta. Conceitos sobre disciplina, perseverança, entusiasmo, concentração foram, ao longo de nossas formações, insistentemente repetidos. Creio que parcela desses ensinamentos ficou gravada. O homem tendendo à síntese, devido às décadas acumuladas, encontra no amálgama das captações o seu norte, o traço que identifica o seu caminhar pela vida em direção harmoniosa ao seu término, ou recomeço, representado pela morte. As palavras da colega permaneceram gravadas à espera de um motivo para eclodirem em texto semanal. Meses após encontrei Laerte, que não via há umas boas duas décadas. Casualmente nos reconhecemos quando fui às compras na feira-livre do Campo Belo. Estava o ex-colega de escola de passagem, a visitar filhos e netos. Marcamos de imediato um café nas cercanias e, junto às recordações que se fazem necessárias nessas oportunidades, disse-me ele acessar meu blog com certa regularidade, graças a um companheiro de trabalho.
Tem acompanhado de longe a trajetória do amigo. A certa altura, perguntou-me: “há alguma norma ou explicação para o fervor?” Entenderia Laerte que o longo caminho tenha sido resultado do fervor. Não apenas considerei perspicaz a questão como, no que lhe disse naqueles breves momentos, ficaria plantada a semente da reflexão. Os amigos possibilitaram a germinação do tema para o presente post.

>Antoine de Saint-Exupéry. Clique para ampliar.

Vieram-me ensinamentos contidos em Citadelle, de Saint-Exupéry, sobre o fervor, uma das palavras-chave na construção de seu pensar. Não obstante a existência de conceituações diversas para o termo, referimo-nos ao fervor da convicção nobre, conditio sine qua non para se alcançar algo que almejamos. Sem ele, toda a realização apresentará uma falha que seja, a determinar que faltou a chama a ratificar a identidade de um feito, por pequeno que possa parecer. É o fervor que faz emergir a condição para que objetivo seja alcançado, que o torna real, harmonioso. Através dele, o trajeto, mesmo difícil, torna-se meta amorosa.
Fervor inequívoco, a ser entendido como espiritual, artístico, profissional, tem pujança a não corromper a palavra. Para os que vivem a intensidade da fé, fervor é sinônimo inalienável, convicção profunda a não permitir subterfúgios. Fervor não pode ser confundido com ganância, existente em todos os segmentos da atividade humana. Nessa categoria, denominada por Sogyal Rinpoche como aquela de “fantasmas famintos”, encontra-se o desejo do poder, o amealhar fortuna pela fortuna e todos os vícios decorrentes da compulsão pelo dinheiro, aparência do crescimento interior. Fervor não é ambição, mas flama que impulsiona a criação, o espírito. Nos longos voos noturnos, Saint-Exupéry era movido pelo fervor, a estender princípios de fraternidade, solidariedade e justiça à humanidade toda. Voz nas alturas, mas pregação tantas vezes não ouvida em outro deserto – não aquele por tantas vezes sobrevoado pelo autor -, o da esterilidade do sentir, pois o homem continua a perpetrar as mesmas distorções de sempre. Felizmente, a mensagem de Saint-Exupéry é atemporal e remete-nos a conceitos que podem ser encontrados através da história, sob égide outra, nos denominados livros sagrados. Na acepção, entendidos por poucos.
Fervor independe do talento. Se este existe, evidenciará a vontade férrea que frutifica e permanece. Todavia, fervor não é sinônimo de talento e a ausência deste deve expor resultado menor, mas não desprovido de empenho. Saint-Exupéry considera que “o grande escultor nasce do húmus dos maus escultores. Servem-lhe de degrau e são eles que o elevam”. E na concepção de Império que domina Citadelle: “…se você salva somente os grandes escultores, ficará privado dos grandes escultores”. Mas, há salvaguarda: “ O fervor da dança exige que todos dancem, mesmo aqueles que dançam mal. A não ser assim, deixa de haver fervor e passa a haver apenas academia petrificada e espetáculo sem significação”. Continua Saint-Exupéry: “Não invente um império onde tudo seja perfeito. O bom gosto é virtude de guardião de museu. Se você despreza o mal gosto, não terá nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins. O trabalho da terra, que não é propriamente assético, causar-lhe-á repugnância. Dele você ficará privado, mercê do seu vazio desejo de perfeição. Invente um império onde simplesmente tudo seja fervoroso”.
Saint-Exupéry explica-nos a impermanência do fervor. Impossível manter a chama fervorosa noite e dia: “Aqueles que desfalecem e tencionam fazer crer que estiveram a agir sem interrupção, mentem. Mente o sentinela das muralhas que dia e noite proclama o seu amor pela cidade. Contudo, ele prefere a sopa”. Esse fervor que persiste é cantado, mas pode ser trocado ou interrompido pelo cotidiano, sempre negado pelos que professam a presença dessa vontade férrea. Poetas, amantes, viajantes e até santos não seriam avessos a essas interrupções. “Mente o santo que confessa dia e noite contemplar Deus. Às vezes, Ele o abandona à semelhança do mar. E ei-lo mais seco do que uma praia de seixos”. As obras de artista em qualquer das áreas não estariam sujeitas, num outro contexto, à ineroxabilidade de as entendermos realizadas com maior ou menor fervor? Não necessariamente, mas todos os que permaneceram pela qualidade nem sempre atingiram em seus trabalhos o patamar da obra-prima. Falta de inspiração, de fervor? A impermanência na perfeição também atinge os grandes criadores.
Sob outro aspecto, o fervor que permanece, intermediado por tantas outras circunstâncias, lembra o que pensava o compositor russo Alexandre Scriabine. Sentado em um café frente a lago suíço, escreveria, ao ver uma carruagem passar que o grande Eu existia no ato de compor, enquanto o pequeno eu estava atuante a contemplar a carruagem e a tomar chá. Grande Eu do fervor, da criação, condição essencial para que quaisquer metas sejam atingidas amorosamente. Se o fervor, por tantas razões naturais, como adversidades, tragédias, desinteresses outros, fenece, o princípio gerador que leva à realização transfigura-se, a se tornar perceptível a ausência da flama. É ainda Saint-Exupéry que escreve: “Digo que minha obra acabou quando o meu fervor desaparece”. Eu acrescentaria, a independer da faixa etária, pois inúmeras obras que a história preservou foram realizadas no ocaso da existência de seus criadores. Quando a chama intrínseca se apaga, em circunstâncias tantas vezes misteriosas, o homem deixa tombar seu estandarte.
Citadelle contém sabedoria. É a síntese de um pensador que entenderia o fervor, a responsabilidade, o amor, a compreensão do homem com seus defeitos e qualidades, numa ampla acepção. Não há panfletarismo, tão em evidência nos dias de hoje. O fervor ou fé, em contexto próximo e amalgamado, seria a salvaguarda do ser humano sincero, espiritual, a buscar a verdadeira integração fraterna da humanidade. Ainda há tempo para esperanças.

This post is a reflection on the meaning of the word “fervour” as Saint-Exupéry understood it in his book Citadelle (The Wisdom of the Sands): an inner flame essential in the process of man’s full growth.