Lembrá-lo Eternamente

Desenho a lápis. Carlos Oswald (1882-1971). Clique para ampliar.

E não me chamem de Mestre
sou apenas aprendiz
daquilo que me é o mundo
e do que sendo me diz

Agostinho da Silva

Professor é alguém que ajuda os outros a aprender;
Mestre é, sobretudo, aquele que ajuda os outros a “desaprender”:
a desaprender conceitos errados de vida, de verdade, de sabedoria, de Amor…

José Flórido

Tenho o maior apreço pela etimologia da palavra mestre. Vem o termo do latim magister. A designação de mestre era uma referência extraordinária àqueles que mereciam ostentar o título, mesmo que simbólico. No coletivo, tem-se Mestres Espirituais, da Pintura, da Música, da Ourivesaria. Em França, o termo maître, seja ele aplicado, como exemplos, a um grande músico ou a um especialista em culinária, tem sua carga competente. Ainda hoje, particularizado em tantas funções, Mestre do desenho, do teclado, de obras, de carpintaria. Qual a razão? Pelo fato de que se tem alguém a ensinar ciência, arte ou qualquer outro ofício. Seria o mestre a figura fulcral em sua especialidade, aquele a dominar o seu métier no sentido amplo. Não por outro motivo, a chave-mestra designa aquela que abre todas as portas. Em qualquer atividade, as portas da mente serão abertas quando influências de mestres competentes tiverem sido assimiladas, filtradas e até dimensionadas.
As gerações atuais pouco a pouco esquecem-se de honrar os verdadeiros mestres. Ao perguntar sobre a relação com os mestres a muitos colegas e alunos, nem sempre há a recordação precisa dos ensinamentos recebidos, mormente se foram inúmeros a ensinar e, tantas vezes, em salas coletivas. Ficam vagas lembranças, mas quando alguns mencionam com respeito determinado mestre, tem-se a fixação. Mensagens foram assimiladas. Num aspecto outro, vive-se a era em que superficialidade e interesse têm mais peso do que ensinamentos que penetrem inteiramente no de profundis. Torna-se necessário, para aferições curriculares, a quantidade de cursos realizados. Questionários não solicitam o que foi efetivamente aprendido. Sob outra égide, acentuam-se cursos realizados via internet. Telões apresentam um professor transmitindo para uma câmera o que deve ser passado. Um dileto amigo, que frequentemente visita a China, disse-me que essa prática atinge, inclusive, as classes de ensino de piano, pois naquele país há cerca de 30 milhões de praticantes! O que esperar de geração formada sem elos para a amarra de uma cadeia? A realidade tem sido cruel frente ao verdadeiro significado de mestre. Se mestres existem no Ocidente em todas as áreas, não estão a ser devorados pelo Leviatã da globalização?
O mestre autêntico é aquele que aprende todos os dias e, assim sendo, permanece sempre um aprendiz, o maior deles. Se ele tem essa consciência, fruto de mundo interior singular, certamente não terá empáfia, e os holofotes, se houver, serão entendidos apenas como luzes que precisam de uma tomada de eletricidade para que se acendam e não como meta final. Seu objetivo maior, o culto à qualidade exemplar. O mestre responsável entende como dádiva o que assimilou de outros mestres, não se achando acima de seus ascendentes, mesmo que os supere. Há nele, sempre, a compreensão quanto aos passos do discípulo, em qual estágio estiver, e felicidade ao ver horizontes mais extensos que o seu, se este o ultrapassa na trajetória. Difere visceralmente do pseudo-mestre, cuja intenção é tornar o aluno um eterno dependente. Ponderaria que são poucos os mestres autênticos que permanecem perenemente no pensamento de um discípulo autêntico, pois o amálgama se dá de mente para mente, e nem sempre a transmissão encontra campos propícios. Na acepção, evita delegar seu dever àqueles ainda não preparados para o mister, mas está sempre disposto a guiá-los. Pode ter “candidatos” a mestre bem próximos, mas permanece inteiro no ensino, diante dos aprendizes. Sente-se merecedor. Verdadeira missão.
Hodiernamente no Ocidente, mormente na vida acadêmica, mestre é títulação inicial, preferenciando a Academia os subsequentes, como doutor e outros mais. Há quase que o olhar benevolente daqueles que se encontram acima na carreira universitária para o que se tornou mestre. Isso é fato. Banalizou-se a palavra, extinguindo-se-lhe a força intrínseca, espiritual e a essência essencial, pois legiões obtêm o título de mestre anualmente. Paradoxalmente, muitos daqueles que concluem o mestrado, motivados pela necessidade acadêmica, já o são de fato pela experiência. Nesses casos, o papel apenas indicaria a “oficialização” da Academia para possível ascensão na carreira. Contudo, em muitas universidades públicas brasileiras o mestrado não serve sequer para que esse recém-titulado concorra a uma vaga acadêmica quando concurso é aberto. Menos mal que o título fique restrito intramuros, a permanecer, para a grande maioria, a palavra com seu real e abrangente significado fora da Academia. Destruiu a universidade a magia do termo. Não seria a minimização da palavra mestre, no caso, um desvirtuamento terminológico?
O tema surgiu a propósito de sub-capítulo de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer de Sogyal Rinpoche (São Paulo, Talento-Palas Athena, 2008, 11º edição, 530 págs.). A reverência, amor mesmo, respeito, admiração que se depreende da leitura da bela apologia levou-me a considerar a posição que um autêntico mestre exerce sobre nós. Um mestre budista é muitas vezes um ser iluminado.
Escreve Sogyal Rinpoche: “No nível mais profundo e mais elevado, o mestre e o discípulo não são nem podem ser em caso algum separados, porque a tarefa do mestre é nos ensinar a receber, sem obscurecimento de qualquer tipo, a mensagem clara de nosso próprio mestre interior, e levar-nos a perceber a contínua presença desse mestre máximo dentro de nós”. Aplicado à categoria dos mestres do budismo, a analogia com aquilo que deveríamos entender por mestre no Ocidente pode ser aventada. Quem cultua o mestre permanente entende a sua importância fundamental, principalmente quando, ao ensinamento na área, soma-se a compreensão da cultura humanística como um todo. Num sentido amplo, o mestre permanecerá como um farol. A cada flash de luz, como em noites sombrias no mar, lições aprendidas permanecerão pela existência afora, consubstanciando mensagens que são passadas às nova gerações pelo agora discípulo mestre.
Ficaria implícito que reverência seria sinal de gratidão por parte do aluno que soube assimilar as palavras do mestre, mais intensamente gravadas na mente do discípulo se houver abrangência por parte do magister. Competência e sensibilidade do mestre, receptividade e gratidão por parte do aluno. O ser grato ao mestre é uma consequência? É-o, mesmo que com gradações, no cerne do relacionamento entre quem transmite e aquele que absorve; é-o, se considerarmos a metáfora, proposta por Sogyal Rinpoche, de que o discípulo é aquele que jamais viu seu próprio rosto, mas que só dele tomou conhecimento quando o mestre apresentou-lhe um espelho capaz de revelar traços apenas imaginados. Mestres cultuados e discípulos a entenderem a continuidade do pensar não seriam formas de se atenuar a crescente vaga de desinteresse, desrespeito e irresponsabilidade existente no triste panorama que vemos diariamente nos noticiários? Demole-se pouco a pouco a relação elevada que deveria existir. O homem a caminho do esquecimento das tradições. Contudo, não podemos deixar de acreditar, e os exemplos vivos da perfeita harmonia mestre-aluno representam a luz que ainda não se apagou.
Se, ao longo destes quase dois anos e meio, posts têm sido publicados ininterruptamente, em muitos deles meus saudosos mestres foram e serão lembrados. A trajetória se tornou mais harmoniosa, mercê da dádiva de com eles poder ter apreendido ensinamentos. No turbilhão do viver, a tentativa de compreensão do mistério da vida passa inexoravelmente pelo culto àqueles que nos guiaram. A partir deste, há a possibilidade de entendermos partícula mínima, infinitesimal da existência e colaborar, como um grão de areia, na edificação de um mundo melhor.

A reflection on the qualities that make a good teacher, a master in the true sense of the word. Unfortunately, universities in the West do not understand the real meaning of the word with its spiritual implications. The new generations often show little or no reverence for their masters. Only Oriental religions and the great artistic movements of the West are aware of the traditional values that dictate the master-disciple bond.