Infinitesimais Sonoridades Fronteiriças
Chaque fleur s’évapore ainsi qu’un encensoir…
Charles Baudelaire
Um dos grandes segredos da interpretação é saber lidar com a dinâmica (do grego dynamiké), termo utilizado na música para determinar as oscilações da intensidade sonora, da máxima à mínima. A música denominada clássica, erudita ou de concerto convive com essa maleabilidade no tratamento das intensidades. Saliente-se que o domínio absoluto desses opostos é de rara dificuldade. Em 1961, estudava em Paris e, ao visitar a insigne professora Nadia Boulanger (1887-1979), uma das mais importantes mestras francesas do século XX, toquei emocionado várias obras para ela. Após, durante os preciosos momentos em que passei em sua residência, recebi conselhos sobre interpretação que permaneceram como normas. No quesito dinâmica, jamais me esquecerei de seu conceito. Para ela, o instrumentista que soubesse utilizar toda a extensa gama, que vai dos sons basicamente inaudíveis ao volume mais acentuado, estaria a dominar parte dos segredos da interpretação, pois a grande maioria permanece, ao lidar com a dinâmica, entre uma intermediação, não chegando aos limites que se fariam necessários. Dias depois, recebi encorajadora carta de Nadia Boulanger, doada recentemente à Fundação que leva seu nome, em Paris.
Os limites extremos do som sempre despertaram interesse. Na música erudita tradicional há essas fronteiras que são precisas e que atendem, inclusive, à percepção auditiva do homem. Baixa, média e alta intensidades obedecem a critérios interpretativos que deveriam ser sempre seletivos. Ao longo dos anos ficou-me o axioma da ilustre personalidade musical francesa, especialmente quando iniciei estudos para a apresentação da integral para piano de Claude Debussy, que se deu pela primeira vez em 1980. O compositor francês é a representação maior dos sons infinitesimais, pois 80% de suas composições encontram-se nas baixas e baixíssimas intensidades (p e pp, piano e pianíssimo no léxico musical). Se for considerada a terminologia utilizada por Debussy no desiderato de exprimir a constante presença das baixas intensidades em sua obra, ter-se-á a poética a fazer fronteira com o silêncio. Essa divisão entre o nada e sonoridades quase inaudíveis, assim como a situação contrária a levar ao silêncio, é insistentemente assinalada pelo autor, que dá as senhas precisas para a interpretação. Dir-se-ia que há nesses casos verdadeira volatilização sonora, analogia com as fragrâncias, Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir, como escreve Baudelaire em verso apreendido por Debussy. Ingredientes simbolistas estariam a penetrar nesses termos expressivos sempre que o limite extremo sonoro voltado aos pianíssimos estimulasse a sensibilidade do compositor. Dir-se-ia que expressões como en se perdant, en retenant et en s’effaçant, encore plus lent et plus lointain, morendo jusqu’à la fin, très éffacé contêm essência desse encantamento pelo quase inaudível. No subcapítulo Le Presque-Rien: L’Air et le Vent, do terceiro volume da trilogia sobre o músico francês Debussy et le mystère le l’instant (Paris, Plon,1976), Vladimir Jankélévich observa, ao abordar essa penetração abissal: “É no instante em que a eternidade e a inexistência, a aparição e o desaparecimento, o positivo e o negativo coincidem, pois a música de Debussy é a arte do infinitesimal”. O autor apreende, a partir de metáforas, a problemática das intensidades em Debussy, assim como o universo das longas quedas buscando sons em baixas intensidades, ou, desde logo, o caminho em direção à luz, quando ascensões sonoras se fazem presentes. O leitor terá mais informações das obras sobre música do grande filófofo francês ao acessar meu texto incluído no site (vide Vladimir Jankélévitch e os Opostos Sonoros em Harmonia, no item Essays).
Neblina, buée irisée ; a noite e seus mistérios; a lua em percepção única, Et la Lune descent sur le Temple qui fut (E a Lua desce sobre um Templo que Existiu); a água a permear a criação, desde as grandes ondas até aquela imóvel e estagnada; a neve e a chuva; o vento tenebroso ou rotineiro; reflexos; e tantas outras representações da natureza seriam parte essencial da respiração em Debussy. Toda essa mutabilidade perceptível aos sentidos no corpo de uma mulher seria traduzida pelos cabelos em permanente transformação. Longos, a seduzirem e a provocar encantamento. Têm eles essa fraterna ligação com a instabilidade da natureza. Imprecisos, rebelam-se contra a fixação. Em Pélleas et Mélisande, é ela que inebria Pélleas no terceiro ato, com seus longos cabelos; quando de La fille aux cheveux de lin, Debussy sugere; em La Chevelure, a partir de poema de Pierre Loüys: Cette nuit, j’ai révé. J’avais ta chevelure autour de mon cou. J’avais tes cheveux comme un collier noir autour de ma nuque et sur ma poitrine. / Je les caressais, et c’étaint les miens; et nous étions liés pour toujours ainsi, par la même chevelure… E o inefável dos cabelos integra o universo das imagens do compositor. Sons e quadros intangíveis, mas a serem buscados na essência pelo intérprete e pelo ouvinte. Jankélévich escreve: “entre o nada e ele há justamente a diferença desse quase, que é uma diferença infinita: a presença quase-ausente é fugaz, mas presente”. Nesse sonoro em que reinam as baixas intensidades, os cabelos e toda a sensualidade e pureza, paradoxo amalgamado, traduziriam essência essencial do pensar de Debussy. Camille Soulla acrescenta o objeto indispensável: “…o pente a modificar, ao ser manuseado, o mutante edifício chamado penteado”.
Essas observações vêm a propósito do não-dito, do não-composto, do não-pensado. O universo simbolista, do qual Debussy é o representante excelso, não teria apreendido o infinitesimal do infinitesimal, captado por uma miúda em sala de aula. Sim, há o “quase” silêncio, irmão gêmeo do “quase” inaudível, pois pertencentes à mesma intenção. Ao fazer parte de banca examinadora de um dos mais originais trabalhos acadêmicos que analisei em minha vida intramuros (Pedro Paulo Salles. Gênese da Notação Musical na Criança. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FEUSP, 1996, pág. 149), deparei-me com algo rigorosamente inédito e extraordinário, pois vindo de uma menina em tenra idade. Escreve Pedro Paulo Salles, competente e criativo professor, binômio cada vez mais raro a ser atribuído a um docente: “Certa ocasião, uma menina de sete anos entrou na sala de aula e disse: ‘Pedro, eu tenho um som! Mas preciso do máximo de silêncio.’ As outras dezesseis crianças e eu fizemos, então, um silêncio sepulcral, não se ouvia um nada de coisa alguma. Construído esse microcosmo de silêncios, cúpula para ressonâncias, a menina de longos cabelos castanhos retirou, lenta e cuidadosamente de sua mochila, uma escova de cabelos: a situação era para pasmos e suspensões. Então, de ouvidos (e olhos) arregalados e de respiração suspensa, pudemos perceber a lenta, leve e repetida ‘respiração’ do escovar. Mímica: mínima música. Diante de nós: intensidade (presque-rien), duração (cabelos longos; som longo), timbre (fricção), densidade (os fios da chevelure) e mistério. Cabelos tangidos em movimentos precisos, gestos sem gravidade regendo intensidades, desembaraçando significações. Formado em grande parte por silêncios, o escovar é quase um som conceitual e evoca as levíssimas brumas de Debussy e as filigranas de Webern”. Qual não teria sido a reação do autor de Sirènes se tivesse conhecimento desse ineditismo? Ao ler o texto à minha filha Maria Fernanda, dias após apresentou-me a materialização do fato singular. O pente como símbolo da evaporação sonora, sem mácula, a não deixar vestígios.
A few comments on sound and silence in the works of Claude Debussy, and a seven-year old girl’s original approach to the subject.
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