Partilhando Emoções
Senhor ! Que amor de filha tu me deste !
Dá-lhe um caminho brando e sem abrolhos,
Dá-lhe a Virtude por amparo e guia:
Eugênio de Castro
Prelúdio
O post da semana anterior versou sobre os jovens laboriosos da cidade, exemplificados através daqueles que trabalham em uma das filiais do hortifrúti Natural da Terra. Acabara de redigir e deparava-me com o Dia dos Pais, onde carinho da família não faltou. Maria Beatriz ofereceu-me livro com o título Aprendi com meu Pai – 54 pessoas bem-sucedidas contam a maior lição que receberam dos pais (Luís Colombini, São Paulo, Versar, 2006). Ao final, a editora convida o leitor a redigir aquilo que entende como Minha História “com o mesmo padrão deste livro, para escrever a sua lição, aquela que você aprendeu com seu pai. Uma vez escrita, é só imprimir, recortar e anexar ao livro para criar uma edição especial em homenagem a seu pai”. Tutti riuniti, Maria Beatriz leu o texto que nos comoveu muito. Conhecedores dessa singela e expressiva homenagem, amigos sugeriram que fizesse um post. Fi-lo sucinto e com certa relutância, incluindo-o após a exposição de “Grand Sourire”, pois há carga emotiva compreensiva em Dia dos Pais que me foi tão amoroso. Duas fotos ilustram o texto, tiradas em locais mencionados por Maria Beatriz e guardados entre as minhas recordações. Confesso ao leitor que publico o presente blog sem consultá-la. Conheço-a. Saberá perdoar-me.
“Grand Sourire”
Notei durante minha adolescência. Meu pai interessara-se pela imaginária paulista. Eram imagens feitas em madeira ou terracota, de santos os mais diversos ou de Nossa Senhora, a grande maioria do século XIX ou início do século XX, encontradas na região do Vale do Paraíba, sobretudo em Sta. Isabel e Nazaré Paulista.
Os contatos frequentes com Dr. Eduardo Etzel influenciaram consideravelmente o gosto requintado de papai por esta arte tanto erudita quanto popular e o aprender a restaurar com perfeição cada imagem, muitas vezes cobertas por algumas pinturas posteriores à original, até se chegar à concepção primeira do artista.
Aquele final da década de 70 e início dos anos 80 era ainda época propícia para encontrar essas pequenas esculturas religiosas em seus primeiros nichos, fora do âmbito comercial da grande cidade, pois muita gente simples da roça deixara de ser católica e aquelas preciosidades artísticas não se podiam perder. Agora evangélicos, desprendiam-se das imagens, ou melhor, desfaziam-se delas quando não lhes tinham mais significado – às vezes seu destino era o lixo – e aceitavam a troca por qualquer coisa de que realmente necessitavam: não só dinheiro, mas remédios ou qualquer objeto que sonhavam ter e que papai podia lhes levar da capital na viagem seguinte. Os que mantinham a fé católica aceitavam a troca por imagens “mais bonitas e coloridas” em gesso e aquelas outras necessidades.
Essa pesquisa de campo papai, preparado por Dr. Eduardo, chegou a fazer tão bem quanto o mestre, como este chegou a confessar-lhe, com a seriedade e a competência que são peculiares a seu caráter, aliás, como em qualquer trabalho que até hoje se propõe fazer, seja na área da música ou não. E as viagens papai não fazia sozinho. Gostava de companhia. Geralmente era eu ou meu primo Roberto que o acompanhava. Minha irmã também aproveitou essa experiência. Sempre foi um privilégio viajar com papai, fosse para essas aventuras na região de Sta. Isabel, fosse para além-mar acompanhá-lo para os recitais em Portugal ou na Bélgica, pois seu bom humor, sua disposição, sua inteligência e sua boa conversa com as pessoas, sejam simples, sejam intelectuais, que surgem no caminho são um deleite para quem o acompanha.
Para a pesquisa de campo era preciso adotar um método e ir com frequência àquela região para, primeiro, encontrar um olheiro, que era o elo de aproximação com aquela gente simples da roça. Esse homem tinha seu trabalho extra a cada sábado ou a cada quinzena e, além de necessário, pois fazia uma busca prévia sobre quem concordava em se desfazer das imagens, era importante para a realização do intento. Mas meu pai tinha seu jeito próprio de conquistar e convencer aquela gente, a começar por sua autoconfiança, pela postura de “doutor da capital”, com seus óculos que lhe emprestavam a seriedade na intenção e, óbvio, por seu “grand sourire”.
Assim, não raro voltava em outras viagens às mesmas casas onde já tinha alcançado seu objetivo para levar aquele determinado relógio com que o caboclo sonhara ou aqueles mantimentos ”x” ou remédios “y” de que precisava ou mesmo aquelas palavras animadoras, aconselhadoras ou reconfortantes. E o entrar em cada casa, depois que tinha sido derrubada qualquer barreira com a gente de São Paulo, era muito bom. O sinal do acolhimento era o “chafé” passado na hora.
Aquelas palavras animadoras e reconfortantes sobre a vida pessoal ou de um ente familiar, sobre sua trajetória, precedidas e seguidas do “grand sourire”, são o gesto de que tanta gente do campo ou da cidade, do Natural da Terra, da padaria, do mercado, da farmácia ou da rua, precisa ou que valoriza. Sei que esses gestos podem fazer a diferença no dia dessa gente boa e batalhadora que muitas vezes não teve a oportunidade de traçar o rumo que almejou, que lhe desse mais satisfação pessoal ou maior tranquilidade.
Esses gestos, tão naturais e característicos no viver não só de papai, mas de minha mãe, meu sogro e minha sogra, são marcantes, próprios de quem é magnânimo.
Postlúdio
Maria Beatriz e Maria Fernanda, em momentos distintos, acompanharam-me em viagens que me foram inesquecíveis. Companhias adoráveis. Ainda miúda, Maria Beatriz mostrava-se responsável. Era ela que, compenetrada, levava até o camarim minha pasta de mão quando das apresentações pianísticas em São Paulo, a dizer-se minha secretária. Necessário frisar que jorrou generosidade em seu sensível texto. Amor filial. Naquele domingo, 9 de Agosto, Dia dos Pais, fiquei a pensar longamente ao retornar à casa. Seria coincidência, acaso, ou a detectação de pensamentos que pairam no ar? Maria Beatriz desconhecia o texto publicado na semana que passou e há proximidade em aspectos fulcrais. Creio que a herança que recebemos e buscamos transmitir fica anexada ao DNA subjetivo e tão mais significativa será se o descendente souber decifrar o segredo a conduzir ao aperfeiçoamento das cepas das parreiras. Quando esse milagre acontece, terá valido a existência. Em 2004, logo após prolongadas sessões de quimioterapia, dei recital no Salão Árabe da Bolsa do Porto em Portugal, primeiro depois de vários meses. Minha mulher carinhosamente me acompanhou, pois estava fragilizado e precisava utilizar-me, inclusive, de uma bengala. Chegamos dia 10 de Novembro, um dia antes do recital, e já no dia 13 partiria para apresentação em Bruxelas. Estava a ensaiar pela manhã para a récita da noite, quando avisaram que havia alguém que gostaria de me ver. Concentrado, desliguei-me das buscas sonoras, e qual não foi minha estupefação quando vi entrar na sala Maria Beatriz. Abracei-a a chorar copiosamente e indaguei-lhe o porquê. Disse-me, também profundamente emocionada, que obtivera licença na Procuradoria e viera ao recital, pois não poderia perder o meu retorno às apresentações. Dizer que toquei pleno de inspiração naquela sala de encantamentos é pouco. Três dias após ela regressava ao Brasil. Essa é Maria Beatriz, filha, dádiva.
On Father’s Day, my daughter Maria Beatriz gave me a book in which 54 successful men and women describe the most important lesson learned from their fathers. At the end the reader is invited to give an account of his own experience. And so my daughter wrote the passage that follows, “Grand Sourire”, about our trips together to collect Brazilian religious images when she was in her teens and, later on, accompanying me on my concert tours in Portugal and Belgium I was deeply touched by her account and decided to share it with my readers.