Navegando Posts publicados em agosto, 2009

Quando o Destino é Implacável

Desenho de Luca Vitali. Julho 2009. Clique para ampliar.

Quando for tudo
servirei aos teus
quando for nada
servirei a Deus

Agostinho da Silva

Em toda atividade humana há extremos. Existem aqueles para quem circunstâncias muitas, somadas ao talento, fizeram com que tudo desse certo em suas carreiras. Torna-se evidente que nas trajetórias individuais há alguns que se sobressaem pelo valor inequívoco e, ao pontificarem, mantêm o status da realização plena e do sucesso, com ampla ventilação na mídia. Outros, que igualmente chegam ao destino, mantêm distância dos focos de divulgação. Estilos diferenciados.
Importa considerar que o caminho traçado pelo homem, mesmo que talento exista, pode ser obliterado por motivos os mais diversos e dramáticos. A história esquece os que não conseguem atingir objetivos acalentados no início da trajetória. Todavia, exemplos proliferam dessa permanente existência do talento que perde o sentido, mas que pode ser detectado, apesar de drama final. Nesse estágio, relaxa-se o manejo da atividade, abandona-se o rigor, e o profissional, cônscio da indiferença dos olhares e das opiniões, acaba perdendo a auto-estima. O mergulho que leva ao abismo estaria propenso a acontecer. É triste e lamentável, mas essa realidade é comum em todos os cantos do planeta, pois carreiras estiolam-se.

Tocador de gadulka. Sófia, 1996. Foto J.E.M. Clique para ampliar.

Das atividades humanas, duas ligadas às artes desde a antiguidade apresentam extremos a apontar para a plena realização de uns e para o infortúnio de outros, que perambulam por cidades, vilas e aldeias. Normalmente, esses artistas buscam unicamente a sobrevivência, pois todas as portas lhes foram fechadas. Nessa derrocada, longo caminhar em direção às calçadas, sonhos esfumaçaram-se, laços familiares romperam-se. Em tantos casos, o infortúnio veio da ausência de estrutura psíquica, assim como da mão solidária em momentos cruciais.
Pintores de rua, retratistas, muitos deles com real talento, ao chegarem ao derradeiro porto de sobrevivência demonstram o patético e, não raramente, traços que retratam transeuntes, paisagens perdidas ou o abstrato pelo abstrato trazem conteúdos que merecem interpretações. No campo da música, quantas não foram as vezes que em cidades brasileiras e em outras, espalhadas pelo mundo, deparei-me com talentos extraordinários, musicalidade à flor da pele, técnica apurada, se bem que possuidora de vícios absolutamente compatíveis com a realidade, já que o rigor há muito ficou à margem. Alguns registrados em meus olhos e, sobretudo, em meus ouvidos. Estou a me lembrar de um idoso tocador de gadulka – instrumento da Bulgária, espécie de violino popular – em Sófia, que no rigoroso inverno apresentava melodias da mais profunda nostalgia, dando grande ênfase às frases musicais. Nas ruas da cidade, intérpretes de kaval (flauta de madeira), de gaita de fole simples e de sanfona evidenciavam destreza. Há guitarristas em logradouros públicos de Lisboa, nem sempre tocando fados, mas conhecedores do instrumento. O metrô de Paris conhece bem músicos que interpretam em corredores e vagões. Alguns são jovens que estudam no Conservatório, compreendem essa prática como meio de angariar pequenas importâncias para complementar a sobrevivência. Diariamente, músicos de toda sorte entram nos trens. Muitas vezes são cegos e, nessa situação, tocam sem expressão melodias conhecidas, pois não estão estáticos, mas caminhando e preocupados com o barulho de parcas moedas que caem em suas caixas de metal. Em outra versão, respeitado violinista internacional disfarçou-se e ficou a interpretar obras do repertório de concerto em corredor de metrô, enquanto a grande maioria dos transeuntes passava indiferente.
Em San Juan, na Argentina, passei por dois músicos que estavam a tocar muitíssimo bem em uma praça. Violão e flauta andina formavam um belo duo na execução de canções folclóricas. Aplaudi-os num intervalo que fizeram e, ao falar com os intérpretes, soube que eram irmãos. Contaram-me vicissitudes, os vários conjuntos que integraram pela América andina e que se desfaziam continuamente. Sem trabalho, buscavam o sustento tocando nas ruas e logradouros públicos. Eram peruanos, estudaram em conservatório, mas, com a morte dos pais em conflitos com o Sendero Luminoso, saíram pelas montanhas. Hoje na planície, estão a angariar sustento.
Em Sergipe, na bela cidade de São Cristóvão – a quarta mais antiga do país -, conheci um tocador de pífano extraordinário. Estávamos em Outubro de 1982. O jovem não tinha mais de vinte anos, mas uma descomunal virtuosidade. Com seu chapéu de couro, característico da região, mostrava igualmente musicalidade invulgar, e seu corpo contorcia-se todo para a alegria dos que estavam a ouvi-lo. Ao final, perguntei-lhe a respeito de sua formação, de seu instrumento, de sua vida. Aprendera desde tenra idade com um mestre da região. Fazia seus próprios instrumentos. Utilizava taquara, cano de plástico, osso e qualquer outro material “tocável”. Com a seca sempre a grassar pela região, preferiu tocar nas cidades e vilas do entorno a migrar para o sul. Disse-lhe para persistir em suas belas execuções, pois um dia poderia se integrar a um conjunto. Ao deixar a praça, pois tinha de me preparar para recital à noite na bonita Igreja Matriz, fiquei com as melodias encantadoras daquele jovem músico. Liszt, em carta à Madame d’Agoult, não escreveria que há almas que amam os sons? Esse tocador de pífano mostrou-se exemplo típico, tão expressivo seu envolvimento.

Tocador de viola caipira. autor: Guilherme, barro cozido, 25 cm. Clique para ampliar.

Foi no final da década de 70 que, percorrendo o Mercado da “breganha” na cidade de Taubaté – evento popular aos domingos onde se vende toda espécie de quinquilharia, de objeto antigo a dentadura usada -, encontrei uma escultura em terracota que me impressionou pela força expressiva da figura de um músico das calçadas. Carrega sua fisionomia toda a dor do mundo, e o artista com traços fortes soube traduzir o peso da trajetória. A viola caipira dimensiona a raiz do tocador, sua desventura, seu destino. Capta também a dignidade não perdida, apesar da pena a que foi submetido. Tenho sobre meu piano de estudo a expressiva peça em barro queimado. Meu respeito absoluto a esses músicos do infortúnio leva-me a jamais passar indiferente por colegas nessa situação. Suas presenças pelas calçadas desse mundo estão perenemente a revelar o drama soturno. Abandonados, permanecem como a sonoridade tristonha a procura da escuta solidária e da migalha de afeto.

On street musicians of varying talent levels playing their instruments in public places for pocket change and the indifference of passers-by.

Infinitesimais Sonoridades Fronteiriças

Desenho a lápis. Maria Fernanda, 2009. Clique para ampliar.

Chaque fleur s’évapore ainsi qu’un encensoir…
Charles Baudelaire

Um dos grandes segredos da interpretação é saber lidar com a dinâmica (do grego dynamiké), termo utilizado na música para determinar as oscilações da intensidade sonora, da máxima à mínima. A música denominada clássica, erudita ou de concerto convive com essa maleabilidade no tratamento das intensidades. Saliente-se que o domínio absoluto desses opostos é de rara dificuldade. Em 1961, estudava em Paris e, ao visitar a insigne professora Nadia Boulanger (1887-1979), uma das mais importantes mestras francesas do século XX, toquei emocionado várias obras para ela. Após, durante os preciosos momentos em que passei em sua residência, recebi conselhos sobre interpretação que permaneceram como normas. No quesito dinâmica, jamais me esquecerei de seu conceito. Para ela, o instrumentista que soubesse utilizar toda a extensa gama, que vai dos sons basicamente inaudíveis ao volume mais acentuado, estaria a dominar parte dos segredos da interpretação, pois a grande maioria permanece, ao lidar com a dinâmica, entre uma intermediação, não chegando aos limites que se fariam necessários. Dias depois, recebi encorajadora carta de Nadia Boulanger, doada recentemente à Fundação que leva seu nome, em Paris.
Os limites extremos do som sempre despertaram interesse. Na música erudita tradicional há essas fronteiras que são precisas e que atendem, inclusive, à percepção auditiva do homem. Baixa, média e alta intensidades obedecem a critérios interpretativos que deveriam ser sempre seletivos. Ao longo dos anos ficou-me o axioma da ilustre personalidade musical francesa, especialmente quando iniciei estudos para a apresentação da integral para piano de Claude Debussy, que se deu pela primeira vez em 1980. O compositor francês é a representação maior dos sons infinitesimais, pois 80% de suas composições encontram-se nas baixas e baixíssimas intensidades (p e pp, piano e pianíssimo no léxico musical). Se for considerada a terminologia utilizada por Debussy no desiderato de exprimir a constante presença das baixas intensidades em sua obra, ter-se-á a poética a fazer fronteira com o silêncio. Essa divisão entre o nada e sonoridades quase inaudíveis, assim como a situação contrária a levar ao silêncio, é insistentemente assinalada pelo autor, que dá as senhas precisas para a interpretação. Dir-se-ia que há nesses casos verdadeira volatilização sonora, analogia com as fragrâncias, Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir, como escreve Baudelaire em verso apreendido por Debussy. Ingredientes simbolistas estariam a penetrar nesses termos expressivos sempre que o limite extremo sonoro voltado aos pianíssimos estimulasse a sensibilidade do compositor. Dir-se-ia que expressões como en se perdant, en retenant et en s’effaçant, encore plus lent et plus lointain, morendo jusqu’à la fin, très éffacé contêm essência desse encantamento pelo quase inaudível. No subcapítulo Le Presque-Rien: L’Air et le Vent, do terceiro volume da trilogia sobre o músico francês Debussy et le mystère le l’instant (Paris, Plon,1976), Vladimir Jankélévich observa, ao abordar essa penetração abissal: “É no instante em que a eternidade e a inexistência, a aparição e o desaparecimento, o positivo e o negativo coincidem, pois a música de Debussy é a arte do infinitesimal”. O autor apreende, a partir de metáforas, a problemática das intensidades em Debussy, assim como o universo das longas quedas buscando sons em baixas intensidades, ou, desde logo, o caminho em direção à luz, quando ascensões sonoras se fazem presentes. O leitor terá mais informações das obras sobre música do grande filófofo francês ao acessar meu texto incluído no site (vide Vladimir Jankélévitch e os Opostos Sonoros em Harmonia, no item Essays).

Gaby Dupont, amiga de Debussy durante anos. Foto Pierre Louÿs, circa 1895. Clique para ampliar.

Neblina, buée irisée ; a noite e seus mistérios; a lua em percepção única, Et la Lune descent sur le Temple qui fut (E a Lua desce sobre um Templo que Existiu); a água a permear a criação, desde as grandes ondas até aquela imóvel e estagnada; a neve e a chuva; o vento tenebroso ou rotineiro; reflexos; e tantas outras representações da natureza seriam parte essencial da respiração em Debussy. Toda essa mutabilidade perceptível aos sentidos no corpo de uma mulher seria traduzida pelos cabelos em permanente transformação. Longos, a seduzirem e a provocar encantamento. Têm eles essa fraterna ligação com a instabilidade da natureza. Imprecisos, rebelam-se contra a fixação. Em Pélleas et Mélisande, é ela que inebria Pélleas no terceiro ato, com seus longos cabelos; quando de La fille aux cheveux de lin, Debussy sugere; em La Chevelure, a partir de poema de Pierre Loüys: Cette nuit, j’ai révé. J’avais ta chevelure autour de mon cou. J’avais tes cheveux comme un collier noir autour de ma nuque et sur ma poitrine. / Je les caressais, et c’étaint les miens; et nous étions liés pour toujours ainsi, par la même chevelure… E o inefável dos cabelos integra o universo das imagens do compositor. Sons e quadros intangíveis, mas a serem buscados na essência pelo intérprete e pelo ouvinte. Jankélévich escreve: “entre o nada e ele há justamente a diferença desse quase, que é uma diferença infinita: a presença quase-ausente é fugaz, mas presente”. Nesse sonoro em que reinam as baixas intensidades, os cabelos e toda a sensualidade e pureza, paradoxo amalgamado, traduziriam essência essencial do pensar de Debussy. Camille Soulla acrescenta o objeto indispensável: “…o pente a modificar, ao ser manuseado, o mutante edifício chamado penteado”.
Essas observações vêm a propósito do não-dito, do não-composto, do não-pensado. O universo simbolista, do qual Debussy é o representante excelso, não teria apreendido o infinitesimal do infinitesimal, captado por uma miúda em sala de aula. Sim, há o “quase” silêncio, irmão gêmeo do “quase” inaudível, pois pertencentes à mesma intenção. Ao fazer parte de banca examinadora de um dos mais originais trabalhos acadêmicos que analisei em minha vida intramuros (Pedro Paulo Salles. Gênese da Notação Musical na Criança. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FEUSP, 1996, pág. 149), deparei-me com algo rigorosamente inédito e extraordinário, pois vindo de uma menina em tenra idade. Escreve Pedro Paulo Salles, competente e criativo professor, binômio cada vez mais raro a ser atribuído a um docente: “Certa ocasião, uma menina de sete anos entrou na sala de aula e disse: ‘Pedro, eu tenho um som! Mas preciso do máximo de silêncio.’ As outras dezesseis crianças e eu fizemos, então, um silêncio sepulcral, não se ouvia um nada de coisa alguma. Construído esse microcosmo de silêncios, cúpula para ressonâncias, a menina de longos cabelos castanhos retirou, lenta e cuidadosamente de sua mochila, uma escova de cabelos: a situação era para pasmos e suspensões. Então, de ouvidos (e olhos) arregalados e de respiração suspensa, pudemos perceber a lenta, leve e repetida ‘respiração’ do escovar. Mímica: mínima música. Diante de nós: intensidade (presque-rien), duração (cabelos longos; som longo), timbre (fricção), densidade (os fios da chevelure) e mistério. Cabelos tangidos em movimentos precisos, gestos sem gravidade regendo intensidades, desembaraçando significações. Formado em grande parte por silêncios, o escovar é quase um som conceitual e evoca as levíssimas brumas de Debussy e as filigranas de Webern”. Qual não teria sido a reação do autor de Sirènes se tivesse conhecimento desse ineditismo? Ao ler o texto à minha filha Maria Fernanda, dias após apresentou-me a materialização do fato singular. O pente como símbolo da evaporação sonora, sem mácula, a não deixar vestígios.

Clique aqui para ouvir excerto do 3o Quadro da Boîte à Joujoux, de Claude Debussy, com J.E.M. ao piano. “Un pâtre qui n’est pas d’ici joue du chalumeau dans le lointain. Lent et mélancolique.”

A few comments on sound and silence in the works of Claude Debussy, and a seven-year old girl’s original approach to the subject.