Quando o Destino é Implacável
Quando for tudo
servirei aos teus
quando for nada
servirei a Deus
Agostinho da Silva
Em toda atividade humana há extremos. Existem aqueles para quem circunstâncias muitas, somadas ao talento, fizeram com que tudo desse certo em suas carreiras. Torna-se evidente que nas trajetórias individuais há alguns que se sobressaem pelo valor inequívoco e, ao pontificarem, mantêm o status da realização plena e do sucesso, com ampla ventilação na mídia. Outros, que igualmente chegam ao destino, mantêm distância dos focos de divulgação. Estilos diferenciados.
Importa considerar que o caminho traçado pelo homem, mesmo que talento exista, pode ser obliterado por motivos os mais diversos e dramáticos. A história esquece os que não conseguem atingir objetivos acalentados no início da trajetória. Todavia, exemplos proliferam dessa permanente existência do talento que perde o sentido, mas que pode ser detectado, apesar de drama final. Nesse estágio, relaxa-se o manejo da atividade, abandona-se o rigor, e o profissional, cônscio da indiferença dos olhares e das opiniões, acaba perdendo a auto-estima. O mergulho que leva ao abismo estaria propenso a acontecer. É triste e lamentável, mas essa realidade é comum em todos os cantos do planeta, pois carreiras estiolam-se.
Das atividades humanas, duas ligadas às artes desde a antiguidade apresentam extremos a apontar para a plena realização de uns e para o infortúnio de outros, que perambulam por cidades, vilas e aldeias. Normalmente, esses artistas buscam unicamente a sobrevivência, pois todas as portas lhes foram fechadas. Nessa derrocada, longo caminhar em direção às calçadas, sonhos esfumaçaram-se, laços familiares romperam-se. Em tantos casos, o infortúnio veio da ausência de estrutura psíquica, assim como da mão solidária em momentos cruciais.
Pintores de rua, retratistas, muitos deles com real talento, ao chegarem ao derradeiro porto de sobrevivência demonstram o patético e, não raramente, traços que retratam transeuntes, paisagens perdidas ou o abstrato pelo abstrato trazem conteúdos que merecem interpretações. No campo da música, quantas não foram as vezes que em cidades brasileiras e em outras, espalhadas pelo mundo, deparei-me com talentos extraordinários, musicalidade à flor da pele, técnica apurada, se bem que possuidora de vícios absolutamente compatíveis com a realidade, já que o rigor há muito ficou à margem. Alguns registrados em meus olhos e, sobretudo, em meus ouvidos. Estou a me lembrar de um idoso tocador de gadulka – instrumento da Bulgária, espécie de violino popular – em Sófia, que no rigoroso inverno apresentava melodias da mais profunda nostalgia, dando grande ênfase às frases musicais. Nas ruas da cidade, intérpretes de kaval (flauta de madeira), de gaita de fole simples e de sanfona evidenciavam destreza. Há guitarristas em logradouros públicos de Lisboa, nem sempre tocando fados, mas conhecedores do instrumento. O metrô de Paris conhece bem músicos que interpretam em corredores e vagões. Alguns são jovens que estudam no Conservatório, compreendem essa prática como meio de angariar pequenas importâncias para complementar a sobrevivência. Diariamente, músicos de toda sorte entram nos trens. Muitas vezes são cegos e, nessa situação, tocam sem expressão melodias conhecidas, pois não estão estáticos, mas caminhando e preocupados com o barulho de parcas moedas que caem em suas caixas de metal. Em outra versão, respeitado violinista internacional disfarçou-se e ficou a interpretar obras do repertório de concerto em corredor de metrô, enquanto a grande maioria dos transeuntes passava indiferente.
Em San Juan, na Argentina, passei por dois músicos que estavam a tocar muitíssimo bem em uma praça. Violão e flauta andina formavam um belo duo na execução de canções folclóricas. Aplaudi-os num intervalo que fizeram e, ao falar com os intérpretes, soube que eram irmãos. Contaram-me vicissitudes, os vários conjuntos que integraram pela América andina e que se desfaziam continuamente. Sem trabalho, buscavam o sustento tocando nas ruas e logradouros públicos. Eram peruanos, estudaram em conservatório, mas, com a morte dos pais em conflitos com o Sendero Luminoso, saíram pelas montanhas. Hoje na planície, estão a angariar sustento.
Em Sergipe, na bela cidade de São Cristóvão – a quarta mais antiga do país -, conheci um tocador de pífano extraordinário. Estávamos em Outubro de 1982. O jovem não tinha mais de vinte anos, mas uma descomunal virtuosidade. Com seu chapéu de couro, característico da região, mostrava igualmente musicalidade invulgar, e seu corpo contorcia-se todo para a alegria dos que estavam a ouvi-lo. Ao final, perguntei-lhe a respeito de sua formação, de seu instrumento, de sua vida. Aprendera desde tenra idade com um mestre da região. Fazia seus próprios instrumentos. Utilizava taquara, cano de plástico, osso e qualquer outro material “tocável”. Com a seca sempre a grassar pela região, preferiu tocar nas cidades e vilas do entorno a migrar para o sul. Disse-lhe para persistir em suas belas execuções, pois um dia poderia se integrar a um conjunto. Ao deixar a praça, pois tinha de me preparar para recital à noite na bonita Igreja Matriz, fiquei com as melodias encantadoras daquele jovem músico. Liszt, em carta à Madame d’Agoult, não escreveria que há almas que amam os sons? Esse tocador de pífano mostrou-se exemplo típico, tão expressivo seu envolvimento.
Foi no final da década de 70 que, percorrendo o Mercado da “breganha” na cidade de Taubaté – evento popular aos domingos onde se vende toda espécie de quinquilharia, de objeto antigo a dentadura usada -, encontrei uma escultura em terracota que me impressionou pela força expressiva da figura de um músico das calçadas. Carrega sua fisionomia toda a dor do mundo, e o artista com traços fortes soube traduzir o peso da trajetória. A viola caipira dimensiona a raiz do tocador, sua desventura, seu destino. Capta também a dignidade não perdida, apesar da pena a que foi submetido. Tenho sobre meu piano de estudo a expressiva peça em barro queimado. Meu respeito absoluto a esses músicos do infortúnio leva-me a jamais passar indiferente por colegas nessa situação. Suas presenças pelas calçadas desse mundo estão perenemente a revelar o drama soturno. Abandonados, permanecem como a sonoridade tristonha a procura da escuta solidária e da migalha de afeto.
On street musicians of varying talent levels playing their instruments in public places for pocket change and the indifference of passers-by.