Divagações sobre Arte
A mais linda flor
permanece oculta.
Adágio vietnamita
Peguei o ônibus para ir ao centro da cidade, o meio mais rápido neste trânsito complexo. Há os corredores, que raramente travam. Fora dos horários de pico encontram-se sempre lugares. A terceira idade ainda tem seus poucos privilégios, e os motoristas geralmente são amáveis para com idosos. Peço licença e sento-me ao lado de um cidadão a beirar os 40 anos. Começo a ler. “Professor, o senhor não se lembra de mim?”, indagou-me. Olhei-o e o reconheci. Após mútuas saudações e real prazer nesse reencontro, perguntei-lhe a respeito de seus caminhos após se formar. Estudara comigo durante a graduação na Universidade, no primeiro lustro de 80. Continuou seus estudos musicais na Europa durante muitos anos. Voltava de aulas que ministra junto a uma escola de música, não distante de minha casa. Há tempos gostaria de conversar com seu antigo mestre a respeito de repertório pianístico, pois é professor de piano e de matérias teóricas. Culto, contou-me a respeito de suas últimas leituras, assim como de partituras que gostaria de conhecer, distantes daquele repertório super frequentado. Lembrava-se ainda de minha insistência na busca de obras pouco conhecidas, mas importantes. Marcamos um encontro que se dará oportunamente, ocasião em que mostrarei composições a meu ver fundamentais e raramente visitadas por nossos intérpretes. Foram muitos os posts em que insisti nessa necessidade de redescobrir autores. Portanto, pouparei o leitor nesse quesito.
Contudo, a nossa conversa enveredou para o caminho da obra ignota do grande público, seja ela de qualquer ordem. Comentei que nos últimos meses recebera e-mails contendo anexos que exibiam belas fotos de quadros de pintores da Rússia Imperial, do romantismo europeu como um todo e de escultores franceses do século XVIII. Fiquei realmente impressionado pela singular qualidade desses artistas absolutamente dotados, mas desconhecidos do cidadão que aprecia tradicional e socialmente as artes. E-mails que me fizeram pensar nessa absurda situação que faz proliferar apenas o conhecido ou hiperconhecido, ou seja, na essência, a redundar no empobrecimento cultural. Frisei ao ex-aluno que a arte que nos é dada conhecer assemelha-se a um leque apenas entreaberto. Sequer imaginamos toda a beleza, estivesse ele a apresentar a pintura integral. Nesses exemplos incluiria a qualidade precisa de tantos compositores belgas entre os séculos XIX e XX, a riquíssima música portuguesa desde o barroco, a culminar, como excelência, nesse grande Fernando Lopes-Graça (1906-1994) – a meu ver, um dos maiores compositores do planeta no transcorrer do século XX, infelizmente ainda não divulgado à altura de sua genialidade, apesar de esforços particularizados em Portugal. À sua obra valiosa tenho-me dedicado ultimamente. Quatro de suas extraordinárias criações deverei gravar em Maio na Bélgica, perfazendo dois CDs. E quantas mais preciosidades artísticas não há submersas por toda parte pelo esclerosamento de um Sistema ! Quantos artistas de todas as áreas permanecem sepultos ! Raras exumações acontecem: “E tudo isto a morte / Risca por não estar certo / No caderno da sorte / Que Deus deixou aberto”, como reza Fernando Pessoa.
Perguntou-me se a mesmice tinha origem precisa. Disse-lhe que marchands, empresários, editores, mídia e público, acostumados a ver, ouvir e ler o que tem circulação e o conhecido, fazem parte de um todo responsável pela situação. Comentei que sub-repticiamente autores respeitados, ao citarem exemplos nas artes, mencionam o óbvio, e a quantidade de textos sobre pintura abordando determinadas obras nos deixaria pasmos. Estariam eles cônscios desse posicionamento? Não atenderia a menção ao superdivulgado à necessidade da inteligibilidade frente ao leitor acostumado ao conhecido e perenemente repetido?
Ao sentar-me, iria continuar a leitura de A origem da obra de arte, um dos seis ensaios constantes da obra Holzweg do pensador alemão Martin Heidegger (1889-1976), na tradução francesa (Chemins qui ne mènent nulle part, France, Gallimard, 1980). Em determinado segmento, Heidegger recorrerá a uma tela de Vincent Van Gogh (1853-1890) a fim de, através de velhos sapatos de um camponês, explicar seu pensamento sobre o ser-produto do produto, passando pela sua utilidade e solidez, e chegar à transcendência a partir do desgastado par de sapatos do lavrador “Através desses sapatos passa o apelo silencioso da terra… a muda inquietude pela segurança do pão, a alegria silenciosa de sobreviver novamente à necessidade, a agonia do nascimento iminente, o arrepio sob a morte que ameaça”. Se não houver o símbolo por todos conhecido, a imaginação do leitor poderia não saber se fixar. Todavia, se outro par estivesse em hipotética obra igualmente importante, mas de pintor que, por motivos os mais díspares não teve divulgação, como passar ao leitor a carga necessária? Numa outra direção, quantos estudos, teses, artigos já não foram feitos para explicar, como exemplo entre tantos, o célebre quadro O Casal Arnolfini do pintor flamengo Jan van Eych (1390-1441)? O quadro é uma obra-prima insofismável. Contudo, qual a razão dos pesquisadores em arte fixarem-se tanto no Casal Arnolfini, analisado e dissecado de todas as maneiras ainda possíveis? “Professor, o trânsito emperrou, mas de um lado é bom conversarmos”, interrompeu-me. Continuei, pois, as divagações. Quantas extraordinárias criações de pintores do período jamais mereceram uma linha de um estudioso. Milhares de milhares de turistas ao adentrarem o Louvre correm – esse é o termo – para ver a Mona Lisa, ou La Gioconda, de Leonardo da Vinci.
Primeiramente haveria a necessidade de se partir de pesquisa virgem, o que requisitará a busca às fontes primárias e à bibliografia mais complexa. Sob aspecto outro, pelo fato da falta de comparação, a mídia silencia, pois seus modelos são basicamente os mesmos desde sempre, e marchands, agentes de programação musical ou editores, em grande maioria, preferem que assim continue. Mortos propalados efusivamente têm público cativo. Observe as programações de nossas sociedades musicais. Ad nauseam os mesmos concertos para piano e orquestra ou violino e orquestra são executados anualmente em todas as temporadas pelo país. Extraordinários? Sim. Únicos, realmente não. Num aprofundamento, não acredita você que se o público leigo soubesse que há quantidade extraordinária de concertos outros escritos também por grandes compositores, basicamente ignotos, não poderia sentir-se desapreciado, autêntico capititis diminutio de sua possibilidade de aferição? Se assim não entender, pois ele representa o elo final receptivo, nada a fazer, pois a atitude de renovação não virá nem dos agentes, tampouco dos músicos envolvidos. Sob outra égide, o público é sempre conduzido, pois não será ele a procurar o inusitado. Se a globalização tendeu para a ampliação – não entremos no quesito qualidade -, e o conhecimento se colocou à disposição de todos e de maneira veloz, paradoxalmente os mesmos arquétipos são venerados em todas as artes. Mas estes são relativamente poucos se comparados à quantidade qualitativa mantida em baús. Não creio que possa haver um ressurgimento de todos os bons autores. É impossível e, se parcela destes renascesse dos arquivos, o cidadão comum poderia desnortear-se pelo aumento excessivo da comparação. Música, literatura e outras artes sofrem o mesmo e, homeopaticamente, como que por uma quase benevolência do Sistema, um desconhecido já sepultado há muito ou pouco tempo tem exumada sua obra. Quando isto acontece, os pais da redescoberta são momentaneamente glorificados, e a mídia e os interessados se precipitam e ao tecerem elogios rasgados, sentem-se prepotentemente mais cultos. O esnobismo é uma das categorias do verniz cultural. Retirada a camada, pouco sobra. Essa é a realidade que o homem enfrenta desde séculos. E tudo indica que assim continuará.
Meu ex-aluno, hoje profissional que demonstra amar a música, reagiu bem. No íntimo, pensa aproximadamente a mesma coisa, mas como me afirmou, falta-lhe a coragem para mudar as mentalidades voltadas a um aprendizado super tradicional. A esperança veio pouco antes de chegar ao seu destino, duas ou três paradas a anteceder o centro. “Professor, passarei em sua casa” disse-me ele. “Gostaria de uma lista dessas obras que o senhor considera essenciais, mas pouco divulgadas”. Aquiesci com alegria, pois sempre acreditei nessa imensidão criativa que teimosamente o Sistema não revela. Ele desceu e segui até o ponto final a pensar que ainda poderemos fazer algo a favor do inusitado. Deixarão? O tempo dirá.
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