A Qualidade como Destino
Não corro como corria
nem salto como saltava
mas vejo mais do que via
e sonho mais que sonhava
Agostinho da Silva
Estava para colocar o post da semana, a abordar o instigante texto A Voz de um Livro, de Edmundo De Amicis, quando respondi a um e-mail de promissor pianista que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente. Ao reler o que acabara de escrever, optei por publicar os comentários sobre A Voz… na semana vindoura. Torno pública a carta eletrônica endereçada ao jovem, guardando o anonimato do remetente que estará a ler via blog.
O pianista em formação escreveu-me a dizer que colocara no YouTube gravações a apresentar suas performances. Dias após, dele recebi nova mensagem: “Quero informar que retirei do ar os clipes que havia postado no youtube.com. Decidi esperar mais um tempo e postar vídeos com qualidade mais perfeita.” A notícia fez-me lembrar situações que diariamente afligem jovens aspirantes idealistas, mas também outros, estes, irresponsáveis.
Meu jovem pianista,
O seu e-mail levou-me à reflexão. Inicialmente, acredito que você agiu bem ao retirar os vídeos do YouTube. Tem o amigo consciência do que deve ser preservado. É sinal evidente de que o jovem pianista promete ser um músico que não desmerecerá a atividade. Se de um lado há gravações extraordinárias e históricas de tantos intérpretes que permanecem como parâmetros, há também muito entulho nesse veículo de tão grande acesso. Tudo lá está. O bem e o mal sem fronteiras. O bem lá está a causar admiração, o mal também, mas a desvelar o encantamento único do irresponsável que se permitiu auto promover. Com que fim? A vaidade humana é incomensurável, meu jovem. Sob outra égide, para muitos daqueles que vêm e ouvem, público tantas vezes sem convicções precisas, essa mistura sem amálgama possível entre o que tem valor e o absoluto amadorismo passa desapercebida. E todo o mal está feito. O YouTube presta serviço inestimável ao ter em sua listagem interpretações extraordinárias, mas também um desserviço abominável quando permite a inclusão de qualquer “produto” voltado à “performance”.
O fato de deixar registros de áudio ou imagem pode camuflar um tipo comportamental que nem sempre é salutar. Li inúmeros relatos de grandes intérpretes que se arrependeram de gravações realizadas na juventude. Entenda o meu jovem amigo que nem sempre isso acontece. Há precocidades, e aí estão tantos compositores que produziram na mocidade obras definitivas, ou intérpretes que não conseguiram mais tarde as performances impecáveis do início da carreira. Mas também há incontáveis músicos que gravaram extraordinariamente do começo da atividade às fronteiras da desativação. Existem, pois, nuances quanto ao tema. Contudo, frise-se, não por outro motivo, a idade madura – seja em qual período, a abranger aproximadamente uma ou duas décadas após os quarenta anos – leva à conscientização do que deve ser levado à definitiva captação dos sons representada pela gravação. Lembre-se, ela não permite o retorno, pois representa aquilo que o intérprete transmite e deverá permanecer assim.
Estou a me lembrar dos anos 80. Gravei “historicamente” alguns LPs para a Funarte, Basf e Studio, a preservar a obra camerística e para piano solo de Henrique Oswald que estava a estudar. Momento até heróico, em que aceitei pianos em condições razoáveis, tecnologia difícil, estúdios ou salas com problemas – em um deles, durante gravações, fui devorado por pernilongos. Fez parte de minha vida. Diria que aconteceu na juventude da idade madura, pois estava lá eu com os meus quarenta e poucos anos e as gravações atendiam a período preciso, quando não faltava a determinação de apreender esse aspecto de resgate histórico.
O tempo passou. Dessas gravações não tenho saudades e nem mais as ouço, apesar de históricas, mercê das importantes obras. Deixei o tempo passar e apenas na fronteira dos sessenta anos comecei a deixar as pegadas que, entendo, mereceriam ficar registradas. O Diretor da De Rode Pomp da Bélgica, após um recital meu em Gent, disse-me que deveria começar a fixar a minha herança musical. A casa tem selo seletivo com pouquíssima tiragem, mas muito conceituada em meio específico musical. Entre gravações na Bélgica e outras na Bulgária e Portugal, lá estão 20 CDs.
Em que condições aconteceram as gravações, poderia meu jovem amigo questionar? Responderia em compartimentos. Possivelmente, a idade madura tenha proporcionado um tipo de aferição quanto à necessidade da impecabilidade em todos os sentidos – perfeição é sempre inatingível –, a obedecer os limites individuais. Há que se ter consciência plena do estágio em que as obras se situam, do repertório escolhido e das condições as melhores, a fim de que a comunhão se dê. Torna-se evidente que nem sempre o ambiente ideal de gravação é obtido. Não obstante o fato, algo deve ser preciso, ou seja, a busca pela qualidade. Essa se consegue através de denodo, disciplina e afeto em relação às obras que serão gravadas.
Estou a me lembrar de colega, pianista de méritos incontestáveis, que na década de 70 me disse que estudara três dias obras que seriam gravadas na manhã seguinte à nossa conversa. Possuidor de uma leitura absoluta, questionado por mim, respondeu-me que interesses financeiros obrigaram-no a tal façanha. Torna-se evidente que o pianista, que gravou no Exterior CDs referenciais, cedera às pressões. É aí que reside uma das encruzilhadas da atividade pianística. A concessão tem seu preço, e este é amargo ao longo da trajetória. Se você pingar uma gota de material líquido agressivo no mais requintado vinho em envelhecimento num tonel de carvalho, ele estará estragado por completo. Devemos ter sempre em mente a qualidade, pois o trigo não pode confundir-se com o joio.
De minha parte, meu jovem colega, encontrei o lugar de meus sonhos, que poderá muito bem não ser aquele de outros intérpretes. Temos de ter empatias. Um estúdio será sempre um estúdio, um teatro igualmente permanecerá a cena onde o espetáculo se dá. O local onde gravo, perdido na planura flamenga, é uma capela do século XI. Já escrevi vários textos sobre Sint-Hilarius ao longo destes três anos . O piano Steinway, vindo diretamente de Hamburgo, representa o que uma Ferrari Fórmula 1 pode significar para um corredor. Colocado em baixo da torre de pedra, sob as lápides de eclesiásticos e nobres sepultados desde o início do milênio anterior, funde-se nesse amálgama físico e espiritual com as milenares pedras irregulares. Desde o cantochão até as gravações atuais, Sint-Hilarius lá está a abrigar sons dos intérpretes. Nós passaremos, mas a capela deverá continuar a ouvir tantos outros instrumentisatas e generosamente oferecer-lhe as ressonâncias. Serve para reflexão sobre a temporalidade do intérprete. A ilusão do canto das sereias. Num aspecto outro, Johan Kennivé, engenheiro de som e psiquiatra, é um dos mais importantes da Europa e sabe cuidar de maneira impecável de toda a tomada de som. Nosso relacionamento estende-se para lá de uma década, e cada projeto recebe o carinho necessário. Tornou-se amigo diletíssimo, a captar sons e reações que surgem durante as gravações.
Cada músico tem seus propósitos. Por eles será responsável. Cabe ao indivíduo encontrar o seu caminho. A única coisa que não se pode trair é a essência essencial da música. E nela, só a qualidade importa. Tenha fé em seu trabalho. Certamente resultará, pois você, além do talento, tem orientação segura. Coragem, disciplina, concentração, dedicação, humildade, gratidão aos mestres são qualidades que o ajudarão a vencer barreiras. Vá em frente, meu jovem.
No dia seguinte à publicação do post recebi e-mail do jovem pianista. Transcrevo-o:
Prezado José Eduardo Martins,
sinto-me muito honrado com suas palavras e atenção em dedicar tempo para escrever-me tão longamente uma resposta. Muito obrigado.
Concordo com tudo o que escreveu.
Realmente, o registro é algo “eterno”, que deve ser pensado e repensado, com responsabilidade. Com certeza, o Youtube está repleto de exemplos de falta de profissionalismo.
Alguns são exemplos de pura vaidade, a qual, em minha opinião, constitui a principal armadilha para um artista, pois a soberba precede a queda (como, aliás, está escrito na Bíblia Sagrada). Isso, para mim, é algo que literalmente “afeta” os artistas comprometendo a dignidade intelectual, a honestidade e a seriedade do trabalho.
Enfim, concordo com exatamente tudo o que escreveu.
Mais uma vez agradeço pela consideração e atenção.
Forte abraço.
I received an e-mail from a young pianist saying he had posted videos of his performances on YouTube, but chose to remove them a few days later and wait until the quality of his playing improves. His message was the starting point of this post, a reflection on how difficult it is to sift the wheat from the tares on a video sharing website and on how strong for an interpreter is the temptation of posting amateur videos – or even professionally made ones – of doubtful quality that potentially could be watched by a worldwide audience within a few minutes.