Abrir a Mente para Poder Compreendê-lo

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Desenho de Luca Vitali a partir do livro Ultime Lettere di Jacopo Ortis de Ugo Foscolo. Clique para ampliar.

Le tombe non giovane ai morti,
perché non restituiscono la vita.
L’aldilà non esiste….

Ugo Foscolo (I Sepolcri)

Estava a tomar um curto com velho e dileto amigo. Cláudio Giordano é editor. Presidente da Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, doou toda a coleção, constituída de livros, jornais e revistas (circa 30.000), à UNICAMP, que a acolheu em sua Biblioteca Central. Generosidade, altruísmo e amor à atividade marcam a sua existência. Editou três de meus livros. Na conversa sempre enriquecedora com Giordano surgiu o nome do escritor italiano Edmondo de Amicis (1846-1908), o célebre autor de Cuore, que encantou gerações. Na juventude, ambos lemos a preciosa obra e nunca mais a esquecemos. Igualmente perdemos o contato com o livro primeiro, percorrido com quase devoção. Extravios ou destruições? Não soubemos dizer. A permanência de um livro pode ter motivos tão díspares…
Giordano, em suas andanças por alfarrábicos da cidade, encontrara edições da obra em italiano e em português, e presenteou o amigo. Já estou a reler, movido por nostálgico prazer, após mais de meio século de uma primeira visita. Será motivo de blog futuro. Regalou-me ainda Giordano com A Voz de um Livro, do autor de Cuore, em que de Amicis narra a saga de um livro e as inúmeras mãos por que passou ao longo de sua existência. Causou o artigo profundo impacto em Giordano, que o traduziu para o português (Revista Bibliográfica e Cultural, Julho 2000, nº 2, pgs. 20-25). Tive a mesma reação frente às elucubrações contidas na narrativa. Escrevi o post a comentar o hipnótico, longo e instigante A Voz de um Livro. Em curto posterior, no mesmo lugar, li o presente texto ao amigo e artista plástico Luca Vitali, que igualmente emocionou-se. E surgiria em sua mente criativa a imagem a ilustrar o post da semana.
De Amicis, ao ter em mãos um exemplar da 1ª edição de Ultime Lettere di Jacopo Ortis, romance epistolar do escritor e poeta italiano Ugo Foscolo (1778-1827), cria um interessantíssimo texto a partir daquilo que ele denomina “singularíssima alucinação”. O livro ganha nesse devaneio estranhas formas, e aparências humanas de expressão, como rosto, olhos, boca, dimensionam-se na imaginação de De Amicis. Adquire vida e o exemplar, agora personagem, conta sua saga. O autor escreve, a anteceder o resultado da alucinação: “Existe coisa inanimada – afora a foto de nossos semelhantes – que nos possa dar tal ilusão melhor do que um livro?” O calvário se inicia em 1802, logo após o nascimento da edição de Foscolo, e prosseguirá décadas após a morte do criador de Jacopo Ortis. O autor de Cuore segue os caminhos tortuosos a que foi submetido o livro nas suas mais variadas moradas. A sua permanência, essa “coisa inanimada”, pode merecer carinho ou desprezo daquele que o possui, mas tantas vezes desconhecemos sua trajetória. Penetrar nesse mundo imaginário, mas a conviver conosco, sugere outras elucubrações.
No desenrolar da narrativa, o exemplar passa pela leitura de amigas de senhora piemontesa que o adquirira. Prossegue, mais tarde, nas mãos de Comissário austríaco que fazia inspeção na casa da adquirente e viverá, após, sete anos em estante. Ao morrer a senhora, seu irmão leva o espólio, e o livro sentirá a censura de um padre, permanecendo recluso “com outros livros excomungados, em um cubículo morto”. Lido, posteriormente, por soldados na Guerra da Criméia. A seguir “ fui molhado pelas águas do Mar Egeu, a bordo do navio inglês que transportou o 4º Regimento Provisório da Divisão de Alexandre Lamarmora”; esteve em tendas turcas onde grassava a cólera; amargaria em hospital; um dono seu foi morto na batalha de Cernaia. Seria vendido posteriormente a “revendedor que tinha banca na Praça Castelo. Lá fiquei vários meses, exposto ao sol e ao vento, banhado às vezes por chuvas inesperadas, aberto e manuseado por centenas de ociosos”. O drama continua e um comprador “jovem, pobre e triste” o leva, mas o infortunado teria como destino o suicídio, e gotas de sangue respingaram sobre o exemplar. Foi ter a seguir a um Gabinete de Leitura “com taxa de dez soldos mensais e eu, marcado com um número como objeto de bazar, passei de sócio a sócio; no bolso de um deles, que fugia, fui desmantelado por uma bala dos carabineiros, no funesto tumulto da Praça Castelo pela Convenção de Setembro”. Em 1864 vai ter às mãos de açougueiro, que o mantém durante sete anos em caixote. O que segue tem aguçado humor: “Em 1871, soando na boca de todos o nome de Foscolo, por causa da remoção de suas cinzas para Santa Cruz, o açougueiro me retirou do sepulcro e me deu de presente ao dono de sua casa, que era um velho bibliófilo. Este me dedicou grandes cuidados, fazendo crer aos amigos que as marcações de algumas frases minhas eram do punho do meu autor. Depois de sua morte, por uma série de empréstimos, presenteamentos e trocas, passei de um professor a um advogado, a um estudante, a um dono de pensão, a uma atriz dramática e, por fim, a uma criada romântica, que me trocou por Mon voisin Raymond, de Paul de Kock, com um revendedor da Porta Palazzo, onde você me encontrou sobre uma esteira estendida no chão, entre uma antiga espada da Guarda Nacional e um São Roque de terracota. Eis a minha história de cento e cinco anos, desde o Consulado de Napoleão até o Reinado de Vitor Emanuel III. Meu autor tinha 28 anos quando vim à luz e há oitenta anos está sepultado! Mas, o meu fim também se aproxima, como você vê.”
Após a exposição da saga geográfica, De Amicis percebe a boca aludida reabrir-se, e uma segunda etapa, introspectiva, a penetrar o âmago das percepções, é revelada: “Quantas coisas não vi ! Nada há mais respeitado e mais maltratado no mundo do que um livro”. O exemplar narra essas apreensões, que se estendem desde estar presente em bibliotecas arrumadas e envidraçadas até aquelas onde os escaninhos imundos fizeram-no estar misturado a trapos e teias de aranha. Se pessoas respeitadas trataram-no bem, outros o usaram para apagar velas, espantar insetos, pregar tachinhas, cobrir cafeteira e até servir como raquete em folguedo infantil. Torna-se de vivo interesse a descrição do autor a respeito de marcadores. O exemplar do livro Jacopo Ortis revelaria que fitas douradas, espátulas artísticas, chaves enferrujadas e palha de cigarro serviram de sinalizadores para o estágio da leitura, assim como lágrimas vertidas, fios de barba, rapé de nariz caíram sobre páginas indefesas de maneira aleatória. A contrapor, cabelos de belas jovens permaneceram “e adormeci na tepidez perfumada de seus travesseiros”.
Descreve conformado a qualidade de outros leitores. Daqueles interessados que chegavam à emoção, aos que percorriam o livro sem quaisquer reações fisionômicas, aos indiferentes que abandonam a leitura, ou até aos que o lêem para provocar o sono deixando-o cair, o que o obrigou a dormir ao lado de chinelos e sapatos. Bilhetes e fotos tantas e tantas vezes estiveram entre suas páginas. Nesse passar de mãos em mãos, o exemplar fala dos “carregadores que me encaixotaram para mudanças; encadernadores que me deram vestes novas. Três vezes mudei de revestimento; três vezes fui desfeito, refeito, costurado, colado, dourado e devolvido rejuvenescido aos meus donos.”
O exemplar não deixa de comentar sua vizinhança em tantas estantes: “Quantos e quão diversos vizinhos tive ao longo da vida! Em estantes organizadas por ordem alfabética, estive entre Fedro e Franklin” e outros mais com a letra F. Em outra organização, essa familiar, cercou-se de diversas outras obras de Foscoli, “outros filhos de meu pai”. Sob contexto diferente, esteve ao lado de “grossos volumes austeros, revestidos de pergaminho, tratados de moral e teologia com mais de cem anos de idade, os quais, percebendo quem eu era e as aventuras que vivera, trataram-me como malfeitor e vagabundo. Tinham mais de um século, mas estavam mais conservados do que eu; há tempos imemoriais ninguém os abrira, eu vivera, vira e conhecera mais mundos em cinquenta anos do que eles em trezentos, e sentia-me mais velho, mais cansado, mais próximo da morte do que eles”.
Um outro aspecto curioso nesse segmento refere-se ao tratamento dado às páginas, antes imaculadas. O exemplar, através de seu escriba De Amicis, considera que ninguém ousava escrever sobre suas páginas nos primeiros anos. Com o tempo, passaram a fazer anotações a lápis ou a caneta e todo tipo de comentário surgiu, dos elogiosos às injúrias contra a obra. E profeticamente “Serão estes os juízos definitivos do porvir? Não posso acreditar nisso. Mudou o coração humano ou a linguagem da paixão? Que língua se fala hoje aos homens para comovê-los? Que estranha reviravolta ocorreu nos ânimos e nas idéias para que aquilo que comovia profundamente a geração em que nasci deixe frios ou faça sorrir ou irrite os leitores dos novos tempos? Pode então estar sujeita uma obra de talento, em sua beleza e em sua eficácia, à mesma decadência a que estão condenadas a substância e a forma em que essa obra se materializou? Vede a que estou reduzido ! Que miséria e que tristeza !”
É o autor que, ao sair temporariamento do devaneio, considera o estado do exemplar de Jacopo Ortis de Ugo Foscoli: “De fato, nenhuma coisa inanimada é mais triste de se ver do que um livro estragado pelo tempo e pelo abandono…”. Com amargor menciona as vicissitudes a que foi submetido o livro, no mais profundo estado valetudinário. Moscas, traças e ratos, pó e umidade deixaram suas marcas. Manchas de toda ordem, “páginas inteiramente amareladas como faces de ictéricos”, dobras em outras folhas, furos provocados por cigarros, tintas várias, remendos grotescos por todo o livro e páginas “que se soltaram, foram enquadradas em papel mais branco, de sorte que têm a aparência de rostos de feridos, enfaixados com uma tira de pano, que cobre o crânio e ata-se sob o queixo”. E continua: “A capa de papelão soltou-se do volume como couraça desprendida; há páginas pela metade: alguns cadernos não se prendem aos demais senão por um fio frouxo, como se prende ainda ao tronco por um nervo um braço amputado”.
No epílogo do texto, um diálogo sombrio se produz entre De Amicis e o exemplar. “Estou no fim – suspirou”. A cada alento do autor de Cuore, o livro responde ceticamente. Não acredita na perenidade e à afirmação de De Amicis “Mas existem irmãos imortais. As odes, os sonetos, I sepolcri renascerão eternamente”, a voz do livro responde “Não. Também esses acabarão destruídos um dia, sem deixar sucessores, e os últimos não serão mais compreendidos”. À insistência do autor em buscar uma luz de esperança, “Que seja para os teus irmãos, mas os filhos dos supremos entre os supremos, pouquíssimos ao longo dos séculos, apenas os que se possam nomear num só fôlego, salvar-se-ão”, combalido, o livro responde com voz ainda mais distante “Nenhum”. E, com ironia e compaixão, ainda diria “Só resta resignar-se, meu caro”. A servir de reflexão, De Amicis ouve voz bem fraca que advém de uma livraria “À infinita vaidade de tudo”.
O texto de Edmundo De Amicis ultrapassa gerações. A tecnologia que levou às fotocópias e à internet, que tudo revela instantaneamente, não teria provocado abalo crucial no culto ao livro? Perdurariam o afeto mantido pelos livros e suas moradas, as estantes a abrigá-los, perpetrado por gerações precedentes e o entusiamo evidente a cada novo tomo ou compêndio que vinha somar ao que era percorrido avidamente pelos olhos? Parcela imensa dos que nasceram nessas últimas décadas não estaria fixada na rica informação que a internet oferece, mas geralmente esquecida após consultas feitas? A biblioteca física, amorosa, que permanece e que um dia é transferida para destinos vários, não teria perdido para legiões a aura do conhecimento a ser retido pela razão, coração e fisicamente? Não perde o homem uma raiz essencial? Àqueles que ainda acreditam, o texto sombrio e profético de De Amicis apenas ratifica afeições. Para tantos outros, um texto perdido no tempo. Prefiro ainda ter lá minhas nostálgicas esperanças, à la manière do cronista português António Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios”.