Navegando Posts publicados em maio, 2010

Quando a Recepção Comove

Recital no Convento Nossa Senhora dos Remédios em Évora. Foto: Gavella. 21/05/10. Clique para ampliar.

Reiteradas vezes escrevi que o acúmulo das décadas deixou-me mais sensível. É natural, mas acentua-se, mormente em momentos especiais. A tournée atual está sob a égide do excelso. Poucas vezes em minha vida deparei-me com obras tão extraordinárias como Canto de Amor e de Morte e Músicas Fúnebres, do grande Lopes-Graça. O que há de melhor na composição musical, e ignotas. Sim, Canto… já era de conhecimento público em duas versões, mas não o original pianístico. Ao recolher-me à noite, na solidão de um quarto de hotel ou em casa de amigos queridos, um sentimento forte me invade. Valeu a caminhada que empreendi na seara musical. Se telefonemas diários de mulher e filhas levam-me ao contentamento sem palavras, o piano e Lopes-Graça, em longa turnê ao meu lado, enchem-me de estímulo, de compreensão e de afeto.
Após as estréias absolutas no Templo de Lopes-Graça, a Academia de Amadores de Música de Lisboa, ter descido a planura alentejana até Évora traz-me sempre o sentimento do grandioso e do puro. A dileta amiga Idalete e eu ainda passamos por Vendas Novas e conheci outra faceta da riquíssima culinária do Alentejo no simpático restaurante Canto dos Sabores: túberas com ovos, burras com migas de aspargos e o queijo seco alentejano, tudo regado pelo excelente vinho tinto Eugénio de Almeida. Após o almoço, do qual participaram seus primos Maria Dulce e José António, moradores de gema da região, chegamos logo a Évora, cidade de lendas e mistérios.
Tantas e mais vezes me apresentei no Convento Nossa Senhora dos Remédios, auditório do Eborae Musica, instituição dirigida pela dedicada Helena Zuber, pedagoga de estirpe. A cada recital tenho sensação diferenciada. A aura do Convento, o altar e a belíssima talha? Não saberia dizer. Mas o intérprete sente que algo místico encaminha os sons pela nave e por toda a igreja. Enfim, amo esse espaço.

Cartaz da Câmara Municipal de Tomar. Clique para ampliar.

Segui para Tomar, berço de Fernando Lopes-Graça. Cartazes enormes, verdadeiros outdoors, anunciavam o recital. Obras essenciais estavam a ser apresentadas. Tive a honra de tocar no auditório em que, jovem, Graça deu seu primeiro recital. Ao término da récita, ofereci à Casa Memória Lopes-Graça cinco fotos tiradas na década de cinquenta com o compositor, correspondência e cartão postal a mim enviado de Lisboa para Paris, onde estudava, assinado por Louis Saguer (vide Louis Saguer – “Em Defesa da Música Portuguesa”, 27/06/09) e Lopes-Graça. Confesso que, após o recital, ao entregar o envelope ao Presidente da Câmara de Tomar, Dr. Fernando de Sousa, fiquei muito comovido. Presentes ao evento os ótimos compositores Eurico Carrapatoso e João Pedro de Oliveira.
O carro da Câmara Municipal de Tomar trouxe-me até Lisboa, onde me aguardava o dileto amigo e professor, José Maria Pedrosa Cardoso, que fraternalmente abrigou-me em seu lar em Oeiras, perto de Cascais, onde se realizariam os dois recitais a seguir. Manuela e José Maria deixam-me à vontade e estudo meu piano sem restrições.

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As apresentações, sob a égide de Lopes-Graça, tiveram recepção entusiasta. Os recitais diferentes foram intermediados por conferência a respeito das obras executadas. O primeiro se deu no Centro Cultural de Cascais, belíssimo auditório instalado em espaço exemplar, antiga igreja do século XVII com acústica notável. Cosmorame e Canto de Amor e de Morte compuseram o programa. No dia seguinte, na Casa Verdades Faria – Museu da Música Portuguesa no Monte Estoril, que basicamente abriga os importantíssimos espólios de Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti, tem-se o exemplo da organização. Meus contatos preliminares com a dedicada Conceição Correia, técnica superior, estiveram sempre sob a aura do entendimento. Durante todo um ano, Conceição dirimia dúvidas que surgiam para o intérprete na distante São Paulo. A conferência, com direito a data show, versou sobre a importância e o idiomático preciso de Lopes-Graça, mormente nas obras voltadas ao destino final, ou sequencial, a morte. O ilustre professor Mário Vieira de Carvalho, musicólogo e pensador que ultrapassa quaisquer fronteiras, autor de livros sobre o Mestre de Tomar, esteve presente aos eventos. Tantos outros irmãos na música, não menos brilhantes em suas áreas respectivas, músicos e pensadores que estimulam minhas visitas anuais a Portugal, sempre nessa voluntariedade em apresentar a riquíssima produção musical em terras lusíadas e que mereceriam a divulgação sempre mais acentuada.
A idade nos torna emocionalmente mais frágeis e, ao doar ao Museu da Música Portuguesa dois manuscritos autógrafos a mim oferecidos no longínquo 1959 pelo generoso Lopes-Graça, fiquei com a voz embargada, como anteriormente em Tomar. Estou plenamente feliz, pois esses poucos e preciosos documentos doravante estarão a pertencer à cultura portuguesa.
Seguimos, José Maria Pedrosa Cardoso e eu, para o Algarve. Três master classes esperam-me e mais os recitais na região algarvia, belíssimas terras em constante confronto com o mar, no extremo sul de Portugal. O intérprete terá seus privilégios. Esperam-me nessa intensa atividade as sardinhas no ponto preparadas pelo mestre Firmino, já tantas vezes mencionado, os doces amendoados carinhosamente feitos por sua mulher, Maria Elias, e o aguardente de Medronho, uma especialidade da região. Constante viver.

My concert tour in Portugal began at the Academia de Amadores de Música in Lisbon. Following I went to Evora, in the Alentejo province, for a performance at the Convent of Our Lady of Remedies (Convento Nossa Senhora dos Remédios). I left Evora for Tomar, not before trying some delicious dishes of the Alentejo cooking. Tomar is the hometown of the composer Lopes-Graça and after the recital I entrusted photos, letters and a postcard I received from him to the museum to his memory, opened in the house where he was born (Casa-Memória Lopes-Graça). Next stop Cascais, for presentations and lecture at Cascais Cultural Center and at Verdades de Faria Portuguese Music Museum in the hill town of Monte Estoril. I donated to the museum collection two autograph manuscripts given to me by Lopes-Graça in the fifties. I’m happy to know that such precious documents are from now on part of the Portuguese culture. Now I’m following to the Algarve, the scenic coastline in the southernmost region of Portugal.

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Faz-se o dia. Pela terceira vez acompanho o cantar dos pássaros ao amanhecer. Noites mais curtas no hemisfério norte. Johan e eu jantamos por três vezes no De Kroone, perto da capela de Sint-Hilarius, em Mullem, e percebemos as aves recolhendo-se para o repouso. Após, dirigimo-nos pelo caminho de pedras e entramos no templo. Três noites inteiras, tempo necessário para o silêncio dos pássaros diurnos. Uma coruja, talvez na cumeeira da capela, interrompeu em diversos momentos a gravação. Sentia-a partícipe. Após as sessões noturnas, as quatro obras de Lopes-Graça, inéditas, estavam registradas. Ao chegar em São Paulo, em meados de Junho, irei à minha Bragança Paulista da meditação e lá, tranquilamente, farei a seleção de todo o material gravado. Como sempre.
No final da tarde, houve o receio das cinzas do vulcão, mas o espírito de Lopes-Graça pacientou a cratera islandesa e cheguei a Lisboa, cidade que faz parte de minha respiração, assim como todo Portugal. Como amo essa terra de meu pai…

Lopes-Graça em apresentação na Academia de Amadores de Música.

Preparo-me para a longa tournée. Serão oito recitais e quatro conferências, com apresentações do Minho ao Algarve. O repertório, todo ele dedicado às excelsas obras de Lopes-Graça. Um escritor português, admirador inconteste do compositor, perguntou-me: “Por que Canto de Amor e de Morte e a longa integral das Músicas Fúnebres?” A resposta veio como indagações e certeza e dizia respeito à obra-prima. Pode ela ficar oculta pelo fato de não ter a repercussão pública necessária? Pode ela não ser frequentada por motivo temático? A obra-prima independe de razões outras. Ela é. E tanto Canto… como Músicas Fúnebres representam o absoluto. São criações do maior quilate. Sinto-me humildemente feliz como intérprete, o corredor de revezamento frente ao maratonista sem fim ― este, o compositor qualitativo ―, ao apresentá-las em primeira audição neste dia 19. Meu blog da próxima semana vai referir-se às apresentações.

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Algo coincidente ou não, ocasional ou movido por forças misteriosas, deverá ocorrer. Sem o saber, o recital deste 19 na lendária Academia de Amadores de Música, a interpretar essas obras fúnebres de Fernando Lopes-Graça, marca o décimo aniversário da morte de meu saudoso pai bracarense. Será dupla emoção e, se Lopes-Graça será o centro, lá no meu de profundis estabeleço um réquiem com meu progenitor. Tudo lá no coração. Ele está a bater mais intensamente. E que assim continue. Onde estiver, meu pai entenderá.
Preparo-me para várias entrevistas em programas da RTP-RDP. Há muito o que falar. Se a música portuguesa tem exemplos comparáveis ao que de melhor existe no planeta, qual a razão de intérpretes tão conhecidos além das fronteiras de Portugal a ignorarem? Tema delicado, mas pungente. Corrobora o que penso desde os anos sessenta. Organizadores, sociedades, críticos, todos insistem na mesmice. E os intérpretes, por motivo de sobrevivência, comodismo ou ainda pelos holofotes, cada vez mais procurados, submetem-se. Como dizia Lopes-Graça, é preciso lutar. Sou um mero soldado. Lutarei.
Seguirei no dia 20 pela manhã para Évora, a percorrer a planura alentejana. Évora, cidade envolta em mistérios…O recital dar-se-á no dia 21, sexta-feira, no Convento Nossa Senhora dos Remédios, sob os auspícios da Eborae Musica, prestigiosa instituição de ensino eborense. Já no sábado pela manhã o leitor, responsável pelo constante estímulo aos textos semanais, poderá ver as fotos do evento ao clicar www.eborae-musica.org. E a senda a se abrir …

After recording for three nights in Mullem, I flew to Lisbon. In Portugal I will give eight recitals and four lectures, going from Minho to Algarve. I’m also ready for a series of radio interviews in which I intend to discuss the quality of the Portuguese classical music composers and the dismaying lack of knowledge about them outside their home country’s border.

Quando Projeto Acalentado Chega a Termo
Capela de Sint Hilarius. Mullem, Bélgica

Confesso que cada travessia do oceano Atlântico traz-me ansiedade. Não pela viagem, mas pela longa preparação com desiderato preciso. Tudo tem de estar finalizado naquele período definido. Quando o repertório faz parte desde sempre das categorias mente, coração e dedos, a missão é repetir o já feito. A minha boa amiga Mônica Sette Lopes escreveu-me, pouco antes de minha partida, frase referente à leitura do post precedente “ Tinha lido seu post sobre o desejo de mostrar outros lados, lados não vistos. Concordo em gênero, número e grau com a necessidade de sair por esses lugares pouco visitados e parar de repetir o mais do que dito, na forma mais do que executada”.
A missão atual compreende a incursão pelo inusitado. Composições ignotas do grande mestre português Fernando Lopes-Graça. Não apenas obras, mas verdadeiros monumentos musicais. A responsabilidade é grande. Cada nota, cada compasso, cada sistema e o todo desvelado parcialmente, pois a criação do autor – o seu momento único – foi, é e permanecerá insondável. Ao partir nessa senda em direção ao interpretar obras como Canto de Amor e de Morte em seu original para piano e mais a integral das Músicas Fúnebres (as outras obras já foram apresentadas, Cosmorame por mim em 2009 e Música de Piano para Crianças, composição singela já executada, mas ainda não gravada), a sensação para o intérprete é a de que estamos a formar jurisprudência – com todo o respeito ao termo – quanto à execução. Essa assertiva apenas aumenta a necessidade de nada passar sem a atenção devida e, ao obedecer às intenções do autor, criar a própria execução. Acredito que, ao longo das décadas, o inusitado e o pouco ou nada frequentado – qualitativos, frise-se -, tenham sido responsáveis pelas minhas maiores alegrias interiores como pianista.
Confesso igualmente que toda a preparação poderia esbarrar num empecilho imponderável, o vulcão islandês Eyjafjallajökull. Durante a travessia, temi que ele se esfumaçasse ainda mais. Ao mesmo tempo acalmava-me, a considerar que a alma de Lopes-Graça, onde estivesse, estaria a proteger nosso acalentado projeto.
Após atrasos, devido ao fechamento do aeroporto de Lisboa, o avião pousou enfim em solo português. O painel apontava para muitos cancelamentos, sobretudo mais ao sul, Casablanca, Madeira, Faro e algumas cidades espanholas. O voo para Bruxelas, à medida que mudavam as posições, apontava para o imprevisível. Verdadeiro standby. Horas de espera. Motivo para a leitura e a observação.
Vieram-me reflexões. Quando do caos total em Abril, as pessoas se desesperaram. O inusitado acontecia. Como um vulcão tão distante poderia interferir nesse agitado ir e vir do cidadão? O choque sempre provoca surpresas. Nada a fazer, a não ser praguejar. E praguejaram. Mas senti, neste novo surto, que as pessoas se acostumaram. A impotência, hoje, é evidente em relação às cinzas regidas por ventos que sopram em direções previstas pela meteorologia. E os passageiros conformam-se em observar o humor do vulcão. O voo para Bruxelas, após longos avisos desconexos, enfim partiu. Ao chegar, muitas malas extraviaram-se. Tive a sorte de ver as minhas despencarem na esteira giratória.

JEM pouco antes do início das gravações. Foto Johan Kennive. Madrugada de 14/05/10.

Sem comboios àquela altura, liguei para meu guru da tomada de som, Johan Kennivé. Meu cúmplice nesses quinze anos de gravações veio buscar-me. Tivemos tempo de encontrar o dileto Tony Herbert, em cuja casa me hospedo durante todos esses longos anos. Em uma segunda-feira ainda encontramos, depois de muitas tentativas, um restaurante aberto. Nada como um bom spaghetti à bolonhesa e uma cerveja trapist (12°). O sono foi reparador a partir das três da madrugada em uma Gent com a temperatura de exceção de 6° e mais um gélido vento em plena primavera.
Manhã de terça. Já estabeleço os planos de estudos pianísticos. Em dois dias estarei a encontrar a mágica capela de Sint Hilarius. Estou ansioso. Lopes-Graça reverberando pela milenar torre de pedra do templo de Mullem! Bem haja !

My trip to Belgium on May 9 began amid the menaces of the drifting ashes from the volcanic eruption in Iceland, something that has disrupted air travels in and out of several European countries. But I believe Lopes-Graça, wherever he is, was protecting my project. Ashes cleared over some parts of Europe and my plane managed to land in Brussels, though hours behind schedule. I went to bed at 3 AM on Tuesday in Gent, already dreaming of Lopes-Graça’s sounds reverberating through the magic chapel of Saint Hilarius.