Quando Projeto Acalentado Chega a Termo
Capela de Sint Hilarius. Mullem, Bélgica

Confesso que cada travessia do oceano Atlântico traz-me ansiedade. Não pela viagem, mas pela longa preparação com desiderato preciso. Tudo tem de estar finalizado naquele período definido. Quando o repertório faz parte desde sempre das categorias mente, coração e dedos, a missão é repetir o já feito. A minha boa amiga Mônica Sette Lopes escreveu-me, pouco antes de minha partida, frase referente à leitura do post precedente “ Tinha lido seu post sobre o desejo de mostrar outros lados, lados não vistos. Concordo em gênero, número e grau com a necessidade de sair por esses lugares pouco visitados e parar de repetir o mais do que dito, na forma mais do que executada”.
A missão atual compreende a incursão pelo inusitado. Composições ignotas do grande mestre português Fernando Lopes-Graça. Não apenas obras, mas verdadeiros monumentos musicais. A responsabilidade é grande. Cada nota, cada compasso, cada sistema e o todo desvelado parcialmente, pois a criação do autor – o seu momento único – foi, é e permanecerá insondável. Ao partir nessa senda em direção ao interpretar obras como Canto de Amor e de Morte em seu original para piano e mais a integral das Músicas Fúnebres (as outras obras já foram apresentadas, Cosmorame por mim em 2009 e Música de Piano para Crianças, composição singela já executada, mas ainda não gravada), a sensação para o intérprete é a de que estamos a formar jurisprudência – com todo o respeito ao termo – quanto à execução. Essa assertiva apenas aumenta a necessidade de nada passar sem a atenção devida e, ao obedecer às intenções do autor, criar a própria execução. Acredito que, ao longo das décadas, o inusitado e o pouco ou nada frequentado – qualitativos, frise-se -, tenham sido responsáveis pelas minhas maiores alegrias interiores como pianista.
Confesso igualmente que toda a preparação poderia esbarrar num empecilho imponderável, o vulcão islandês Eyjafjallajökull. Durante a travessia, temi que ele se esfumaçasse ainda mais. Ao mesmo tempo acalmava-me, a considerar que a alma de Lopes-Graça, onde estivesse, estaria a proteger nosso acalentado projeto.
Após atrasos, devido ao fechamento do aeroporto de Lisboa, o avião pousou enfim em solo português. O painel apontava para muitos cancelamentos, sobretudo mais ao sul, Casablanca, Madeira, Faro e algumas cidades espanholas. O voo para Bruxelas, à medida que mudavam as posições, apontava para o imprevisível. Verdadeiro standby. Horas de espera. Motivo para a leitura e a observação.
Vieram-me reflexões. Quando do caos total em Abril, as pessoas se desesperaram. O inusitado acontecia. Como um vulcão tão distante poderia interferir nesse agitado ir e vir do cidadão? O choque sempre provoca surpresas. Nada a fazer, a não ser praguejar. E praguejaram. Mas senti, neste novo surto, que as pessoas se acostumaram. A impotência, hoje, é evidente em relação às cinzas regidas por ventos que sopram em direções previstas pela meteorologia. E os passageiros conformam-se em observar o humor do vulcão. O voo para Bruxelas, após longos avisos desconexos, enfim partiu. Ao chegar, muitas malas extraviaram-se. Tive a sorte de ver as minhas despencarem na esteira giratória.

JEM pouco antes do início das gravações. Foto Johan Kennive. Madrugada de 14/05/10.

Sem comboios àquela altura, liguei para meu guru da tomada de som, Johan Kennivé. Meu cúmplice nesses quinze anos de gravações veio buscar-me. Tivemos tempo de encontrar o dileto Tony Herbert, em cuja casa me hospedo durante todos esses longos anos. Em uma segunda-feira ainda encontramos, depois de muitas tentativas, um restaurante aberto. Nada como um bom spaghetti à bolonhesa e uma cerveja trapist (12°). O sono foi reparador a partir das três da madrugada em uma Gent com a temperatura de exceção de 6° e mais um gélido vento em plena primavera.
Manhã de terça. Já estabeleço os planos de estudos pianísticos. Em dois dias estarei a encontrar a mágica capela de Sint Hilarius. Estou ansioso. Lopes-Graça reverberando pela milenar torre de pedra do templo de Mullem! Bem haja !

My trip to Belgium on May 9 began amid the menaces of the drifting ashes from the volcanic eruption in Iceland, something that has disrupted air travels in and out of several European countries. But I believe Lopes-Graça, wherever he is, was protecting my project. Ashes cleared over some parts of Europe and my plane managed to land in Brussels, though hours behind schedule. I went to bed at 3 AM on Tuesday in Gent, already dreaming of Lopes-Graça’s sounds reverberating through the magic chapel of Saint Hilarius.