Trabalhar em perene nocaute
Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer…
Vicente Celestino
Minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, não deixa de surpreender. Cada vez mais populosa, prédios insanamente construídos, buscando alturas cada vez mais elevadas, após aprovações estranhas do poder público. Quão mais altos, maiores os lucros, e nada se faz para coibir essa desenfreada festança. A transformação traz populações de todos os quadrantes da urbe desestruturada, pois há a necessidade de suprimento humano, não apenas para serviços domésticos, como para os incontáveis escritórios e empresas que se aglomeram desorganizadamente sob o aspecto urbanístico.
Estava a tomar meu curto e a ler um interessante livro que reposiciona o conceito do erro, quando Tadeu, frentista de um posto das imediações, cumprimenta-me alegremente. Convidei-o para tomar um café. Atendeu-me, a dizer que teria de ser rápido, pois regressaria ao labor. À certa altura perguntou-me se morava há muito tempo no bairro. Respondi-lhe que, no mesmo quarteirão, há 52 anos, não descontando os anos passados no Exterior a estudar. Como estavam a reparar as tubulações do posto de combustíveis em que trabalha, indagou-me sobre as condições do passado. Foi o bastante para surgir em minha mente a figura do Zé, o da “Sirose”, o homem das manilhas subterrâneas.
Nos anos 50-60, basicamente inexistiam edifícios no bairro. Casas, estabelecimentos comerciais simples pelas esquinas, uma Av. Santo Amaro com trânsito até modesto e, a partir da Av. Portugal, um quase grande charco que se estendia até o Rio Pinheiros. Poucas residências, muitas ruas ainda não asfaltadas, a ausência de serviço de esgoto e a presença constante, ao entardecer, de grandes aranhas que vinham das áreas mais baixas, assim como ratazanas avantajadas. As moradias eram cercadas por portões de não mais de metro e meio e não havia grades em portas e janelas, pois vivia-se outra realidade.
O Zé da “Sirosi” era um ex-presidiário – jamais consegui extrair dados sobre seu passado – que perambulava pelo bairro a prestar todo tipo de serviço relacionado a encanamentos, sobretudo aquele das águas e materiais orgânicos que chegavam às fossas sépticas. Sim, naqueles tempos só existiam esses reservatórios nas casas. Serviam como depósito de tudo que descia pelas manilhas de barro. Periodicamente, caminhões providos de grossas mangueiras retiravam da fossa todo o material sólido e outros mais que subiam à superfície dessas enormes caixas cilíndricas sob a terra, provocando uma nectarização pouco agradável. Sorumbático, discreto e de poucas palavras, Zé mostrava-se entendido no processo todo até a fossa séptica e nunca demonstrou animosidade quando a trabalho.
Zé da “Sirosi” era pois o “cara” das cercanias a tudo entender, apesar do estado precário de equilíbrio em dias determinados. Encharcava-se de bebida durante os fins de semana, e quase sempre, quando realizava um trabalho em uma das casas, surgia no início dos dias úteis meio nocauteado e, tantas vezes, com os olhos entumescidos em decorrência de brigas com “amigos” ou outros personagens. Sentia-se um derrotado, mas quando sóbrio era de extrema habilidade e bom senso nas observaçõs concernentes aos encanamentos. Percebia a presença de problema relacionado a entupimento, como os índios dos filmes de faroeste americano antecipando a chegada da cavalaria, dos bandidos ou dos mocinhos. Pedia silêncio, deitava-se e, orelha voltada ao chão, ouvia a “correnteza” ou auscultava o ponto da obstrução. Sem pestanejar, munido de picareta ou formão, chegava ao estrangulamento. E não errava. Após, introduzia um longo cabo de ferro dentro da tubulação e desobstruía o entupimento com competência.
Como jamais abordou o longo período prisional, pouco falava durante o trabalho. Após a labuta “especializada” ficava irreconhecível, mas percebia-se em seu olhar uma surda satisfação pelo dever cumprido. Era bom naquilo que fazia. Por várias vezes tentei penetrar naquela muralha mental. Só apreendi que chegara ao fim do caminho segundo ele, pois nada mais esperava da vida. Certa vez perguntei-lhe sobre a desmesurada bebida dos fins de semana e sobre a possibilidade de diminuir a ingestão de tanta cachaça. Respondeu-me que era sóbrio durante a semana, pois tomava apenas poucas porções da pinga, devido ao trabalho, mas que de sexta-feira a domingo esquecia-se do passado, do mundo que o cercava e da vida
e bebia duas garrafas de aguardente, o que o levava à total alienação. Você sabe que não terá chance, afirmei-lhe. “O dotô falô que tô cum sirosi no figdo. Tá como vrido quebrado. Num tem jeito não”. Expressava-se com simplicidade e sempre de maneira reservada.
Pobre Zé. Soube naqueles tempos, através do barbeiro Samuel, um português que conhecia toda a vizinhança, que o Zé morrera assassinado numa das brigas, durante a alta embriaguês. Não foi a cirrose a responsável final, mas o descaso total de nossos governantes que jamais preparam o preso para a readaptação à sociedade, desde sempre. Seria bem possível imaginar que, reeducado intramuros, o Zé da “sirosi” pudesse encontrar um caminho digno fora de nosso abominável sistema prisional, um dos mais absurdos do planeta.
Tadeu, o bom funcionário, ouviu a história do Zé da “sirosi”. Como bom cidadão, antes de se despedir, confessou-me: “Se o conhecesse, poderia ajudá-lo”. Os bons exemplos sempre surgem desse povo anônimo que labuta, paga impostos altíssimos e não tem retorno por parte dos governos. Enraíza-se, cada vez mais profundamente, a irracionalidade dos homens que dirigem este Brasil de tão grandes desigualdades. Hoje já não são soltos os Zés, mais legião deles, pois as prisões estão abarrotadas. Poucos conseguem a readaptação quando a âncora familiar os apoia, tantos outros são coptados pela chaga da humanidade, a droga, que, hélas, está a levar a civilização a um outro nocaute.