Acadêmico Honorário
Mais custa quebrar rocha do que escavar a terra;
mais sólido, porém, o edifício que nela se firmou.
A grandeza da obra é quase sempre devida
à dificuldade que se encontra nos meios a empregar.
Agostinho da Silva
O nosso gênio maior, Heitor Villa-Lobos, fundou, aos 14 de Julho de 1945, a Academia Brasileira de Música, a seguir as estruturas da Academia Francesa. Seus quarenta Acadêmicos são figuras de relevo em nosso meio musical nas áreas composicional, interpretativa e musicológica.
Reunir-se em torno de uma Academia é prática antiga que remonta, em moldes outros, à Antiga Grécia. Seria, contudo, a partir do século XVI que a Europa viu nascer as Academias constituídas de ilustres personalidades na áreas literária, artística e científica. A Academia Brasileira de Letras foi fundada em 1896 e teve como primeiro Presidente Machado de Assis.
Após várias reestruturações, passou a Academia Brasileira de Música a contar com quarenta membros efetivos. Dos mais de 100 Acadêmicos que por lá passaram, destaquem-se as figuras de compositores extraordinários como Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro, Lorenzo Fernandes; os notáveis membros intérpretes Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro, Antonieta Rudge, Arnaldo Estrela, Magdalena Lébeis, Iberê Gomes Grosso e musicólogos da estatura de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Cleofe Person de Mattos, Renato Almeida. Após a gestão do ilustre compositor Ricardo Tacuchian, atualmente preside a instituição o consagrado violonista Turíbio Santos.
Sob outra égide, mormente nessa duas últimas décadas, a Academia Brasileira de Música tem se destacado num profícuo aprofundamento de resgate de nossa memória musical, salientando-se publicação de partituras, edição de CDs contendo o repertório pátrio, organização da respeitada Revista Brasiliana e a realização de concertos e conferências, tendo como fulcro a criação, interpretação e o pensar a música brasileira de várias tendências. A instituição cultural não tem fins lucrativos.
Foi pois com surpresa e alegria que recebi a informação da ABM a respeito do título de Acadêmico Honorário que me seria oferecido. Anteriormente, dois músicos da maior competência haviam recebido a homenagem: Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005) e Gilberto Mendes (1922- ). Na data prevista, de 16 de Novembro apresentarei, palestra – O intérprete frente ao repertório musical brasileiro – hesitação, complacência, vontade - e recital com obras de Henrique Oswald, Francisco Mignone, Gilberto Mendes, H.J.Koellreutter, Jorge Peixinho (Villalbarosa em homenagem a Villa-Lobos) e Ricardo Tacuchian. Brevemente o texto da palestra estará inserido no item Essays de meu site.
Ao mencionar como subtítulo da palestra um tripé fundamental, hesitação-complacência-vontade, responsável em parte pela inserção de nossa rica produção composicional no cenário nacional e do Exterior, fixo-me preferencialmente na criação pianística. Mas, sob outro contexto, os termos podem servir a todos gêneros musicais. Seria constrangedor afirmar que basicamente nosso repertório não é conhecido, mas é triste realidade. A ponta de um iceberg faz ver o pouco que é frequentado por nossos intérpretes. Sim, há inúmeros pianistas que cultuam, aprofundam-se na busca incessante de nossas riquezas, mas a grande maioria contenta-se com a ponta citada. E a visão dessa extremidade privilegia umas poucas obras de Villa-Lobos – sempre as mesmas –, outras poucas de Camargo Guarnieri – alguns Ponteios, as Danças Brasileiras – e outras mais de Francisco Mignone em suas deliciosas Valsas de Esquina. A opera omnia de Villa-Lobos é frequentada por alguns pianistas mantendo-se Camargo Guarnieri e Francisco Mignone numa constrangedora penumbra, apesar do valor incontestável desses dois monumentos de nossa história e da dedicação de pianistas respeitáveis. O que se ouve, quando se ouve, do repertório pátrio é praticamente estruturado em obras marcadas e reiteradas. Dir-se-ia que a mesmice quanto ao “grande repertório” internacional se repete no que se refere à nossa produção. Intérpretes corajosos tem buscado o resgate da criação de nosso passado – aquela não visitada – de Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Lorenzo Fernandez, Frutuoso Viana, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro e, sob outra égide, Ernesto Nazareth, mas são exceções. Há inclusive executantes que heroicamente têm como único desiderato em suas trajetórias a interpretação de nosso preciosíssimo acervo. É fato, mas a mídia procura ignorá-los. E todo o mal está feito. Mencionar alguns desses intérpretes fatalmente faria com que me olvidasse de outros, daí generalizar desempenhos por vezes descomunais. Apreendi a lição quando indaguei ao compositor e bom amigo Sérgio Vasconcellos Corrêa – acadêmico efetivo da ABM -, a respeito de seu nome não figurar numa lista onde constavam vários autores mais hodiernos. Sorridente, respondeu-me: “eu integrava o final da frase … outros”. Se verificado for o conjunto da composição mais contemporânea, escrito nestes últimos 50 anos, tem-se verdadeira desolação no quesito apresentação pública. O ouvinte poderá ler na programação a inserção de uma ou outra obra, mas a submersão se torna quase que imediata. Tantas substanciais produções atingem uma ou poucas mais apresentações e deslizam para as profundezas.
Sob pressão do Sistema, a necessidade de sempre se ouvir as mesmas composições de autores selecionados, o adolescente e o jovem têm na hesitação fator fulcral. Essa atinge o repertório pátrio, que não faz parte do sempre denominado “grande repertório”. A hesitação é fruto do desconhecimento. A repetição ad nauseam das mesmas obras faz com que esse mesmo jovem não hesite ao escolher Mozart, Beethoven, Chopin ou Liszt, mas, frise-se, sempre a insistir no que todos tocam. É até humano, se considerado for o quesito comparatividade entre intérpretes. Procedimento, infelizmente, solidamente enraizado. Da hesitação advém a complacência, um estágio até certo ponto mais grave do que a hesitação. É quando o intérprete ainda em formação estuda por que tem de estudar nossa música, e o professor, benevolente, escolhe aquilo que ele tem de ensinar, o repetitivo.
Somente com vontade será possível quebrar a enferrujada corrente da escuta repetitiva. Contudo, haverá necessidade de força hercúlea para rompê-la. A vontade será o estímulo a levar o intérprete a se dirigir ao nosso romantismo tão negligenciado, buscar no prolongado movimento nacionalista obras de mérito ainda não visitadas e a ter a coragem de enfrentar o repertório brasileiro mais hodierno, mesmo que ouvidos de um público não acostumado mostrem-se obstruídos numa primeira fase, resultado da inércia do Sistema.
A longa convivência com tantos compositores de mérito deu-me a certeza de que há que se incentivar ainda bem mais acentuadamente a cultura da escuta do inusitado, não só do passado, em estado de hibernação em nossos arquivos, mas também da música qualitativa que está sempre a jorrar das mentes de nossos compositores. Torna-se necessária a permanência de criações extraordinárias no repertório efetivo, destinadas que serão ao esquecimento, após a “aparência” da perenidade representada pela “primeira audição”. Se o intérprete não abandonar essa sedimentação na complacência, a criação estará em seus dedos apenas superficialmente, sem ocupar os espaços da mente e do coração. E todo o mal para a nossa preservação musical estará feita.
Todos nós temos nossos limites. Dentro de suas fronteiras é sempre possível vislumbrar outros horizontes. O fato de ter percorrido substanciosa fatia do repertório internacional super divulgado até os anos 1970 fez-me modestamente entender que não apenas o inusitado do Exterior, mas o que permanecia em nosso solo mereceria um olhar diferenciado. Notáveis intérpretes tinham percorrido o caminho e outros já estavam a trilhar essa senda. Serviram-me de exemplo. Novas composições pátrias do passado ou as que me chegam às mãos ainda com a tinta fresca de compositores de mérito são lidas e executadas com aquilo que denomino relação amorosa. Seria possível acreditar que a honra de me tornar acadêmico honorário junto à tradicional Academia Brasileira de Música tenha advindo desse trabalho diuturno de um artesão da música que, aos 72 anos, ainda vislumbra novos sons a conquistar e que serão desvelados nessa estrada sem volta.
Se o piano representa meu pulsar, o texto reflexivo dele faz parte. Amálgama. Se livros já publiquei, foi contudo o blog, mormente após minha aposentadoria, que passou a integrar parte de meu pensar. E que assim continue. Em tantos textos a música brasileira lá está, a ser integrante de meus afetos. Seria possível entender que os escritos tenham corroborado a generosa indicação de meu nome para a homenagem em apreço.
Do programa do recital abreviado, devido a extensão da palestra, diria que apenas o Estudo (1897) de Henrique Oswald (1852-1931) não teve a intensa ligação compositor-intérprete. Qual não é o prazer de um músico ao olhar para trás e verificar que o redescobrimento de Henrique Oswald por ele empreendido a partir de 1978, mercê do apoio incondicional da neta do compositor Maria Isabel Oswald Monteiro, tenha gerado após minha tese de doutorado junto ao Departamento de História Social da FFLCH da Universidade de São Paulo em 1988 mais de dez teses no Brasil e no Exterior? As gravações de LPs no Brasil e CDs na Bélgica com obras de Oswald nestes últimos trinta anos apenas ratificaram a ligação que tem de ser amorosa com a obra.
Quanto às outras composições, diria que, ao encomendar ou convidar um compositor para uma viagem temática, o intérprete torna-se cúmplice, integra a criação, está nas entrelinhas pautadas. Isso ocorreu desde sempre na história da música. Estou a me lembrar de Gheorghi Arnaoudov, excelente compositor da Bulgária, que após meu recital em Sófia disse-me que escreveria uma obra especialmente para as minhas mãos. Meses depois recebia um magnífíco e dificílimo Estudo Et Iterum Venturus (1997) onde o “arsenal” técnico-pianístico e uma apreensão do universo timbrístico lá estavam depositados.
Gilberto Mendes, compositor, pensador e fraternal amigo, abdicara de seu passado para piano conservado em um baú. Insisti. Abriu-o e de um pacote amarelecido pelo tempo encontrei um tesouro. Hesitou em dizer que “aquilo” não tinha importância. Sentei-me ao piano e li Sonatina à la Mozart de 1951. No final sorriu, a dizer: “não é que ela á bonita”. Meses após, apresentava em recital esse maravilhoso passado constituído por cerca de 20 peças. A Sonatina gravaria na Bulgária. Editada na Bélgica, já está disseminada em recitais e CDs pelo mundo, dedilhada por outros pianistas. Solicitei ao saudoso e dileto amigo, o insigne compositor Francisco Mignone (1897-1986), uma composição para tocar em terras lusíadas numa apresentação que privilegiaria Portugal-Brasil. Escreveu Adamastor, O Gigante das Tempestades (1979), inspirado em Camões. Recebi com emoção o manuscrito autógrafo e a peça, como anteriormente acontecera com Il Neige de Nouveau. Fazem parte de meus afetos. No programa do recital na ABM, Estudo para José Eduardo I (1991), do tríptico de H.J.Koellreutter, o primeiro músico a receber o título de Acadêmico Honorário da Academia. Compositor e dedicatário fazem parte da criação, pois o autor indica e o intérprete participa do ato, ao ter a sua própria visão de uma proposta configurada. Como escreve Koellreutter: “O Estudo para José Eduardo é uma obra aberta, um ensaio (essay), um experimento artístico destinado à verificação da validade de uma grande parte de conceitos sugeridos pela nova imagem do mundo, na área da estética musical”. Seguindo rigorosamente o esquema montado por Koellreuter, jamais a obra tem a mesma estrutura em meus dedos, pois temos, paradoxalmente, uma criação que pode se alterar com o passar do tempo, a não ser que esteja notada. Essa “mutação” permite-me realizar outros caminhos na complexa proposta. Se estruturada por outro pianista, certamente o Estudo de Koellreutter será rigorosamente diferente. A peça de outro saudoso amigo, o notável compositor português Jorge Peixinho (1940-1995), foi composta para o caderno que coordenei como tributo ao centenário de nascimento de Villa-Lobos, ocorrido em 1987, publicado pela Universidade de São Paulo. Dez autores do Brasil e do Exterior participaram. Villalbarosa é a homenagem de Peixinho. Por fim, o Estudo Avenida Paulista, em que o notável Ricardo Tacuchian apreende a pulsação sem limites da megalópole que é São Paulo. É possível ouvir o cosmopolitismo paulistano nessa visão também estressante da cidade. A magia de Avenida Paulista vem, entre outras virtudes, dessa captação. No YouTube, o prezado leitor poderá ouvi-la, com imagens da famosa avenida.
Roland Barthes, ao ingressar no célebre Collège de France, disse que não sentia honra, tampouco orgulho, mas prazer. Não seria esse o verdadeiro termo, pois há muito de lúdico nesses momentos que estou a viver, somando-se à palavra emoção ? Bem haja !!!
The Brazilian Academy of Music was founded in 1945 by the composer Heitor Villa-Lobos and its 40 members are outstanding figures in the Brazilian music scene. It was thus an honor to me to know that I will be nominated an Honorary Member, a title only conferred twice before. On 16 November in a ceremony at the Academy auditorium in Rio de Janeiro I will give a brief oral presentation (The Interpreter and the Brazilian Repertoire – Hesitation, Complacency, Will) followed by a recital with works by Henrique Oswald, Gilberto Mendes, Francisco Mignone, H.J. Koellreutter, Jorge Peixinho and Ricardo Tacuchian.