Navegando Posts publicados em fevereiro, 2011

Pormenores do Olhar

Desenho de Luca Vitali. Clique para ampliar.

Luca Vitali, pintor e amigo, faz uma série de perguntas ao me ver retornar à cidade bairro Brooklin-Campo Belo: “independentemente da música, o que mais teria marcado sua última viagem a Paris ? Interessa-me o cotidiano. Há muita diferença do seu tempo de estudante com o atual” ? Tem ele o dom de ver as palavras, e toda narrativa lhe interessa, pois possível de descrição através da imagem.
Perguntas desse teor forçosamente remetem-me ao passado. Recentemente, naqueles poucos dias de Janeiro-Fevereiro, não deixei de me lembrar dos anos de aprendizado. As muitas viagens à Cidade Luz, independentemente da música, como frisou o amigo artista, trazem recordações nostálgicas daqueles tempos de estudante, quando a cidade estava apenas a 13 anos do fim da Segunda Grande Guerra. Prédios, museus e estabelecimentos públicos cinzentos, muitos ainda necessitando de reformas profundas, o cotidiano longe das comodidades oferecidas nos dias atuais. Seria possível acreditar que o meu olhar era também outro. O necessário excesso de estudo, a insegurança frente à vida, a concorrência pianística naqueles tempos de preparação para os concursos internacionais, a busca incessante pelo conhecimento teórico-musical e cultural mais abrangente, a solidão, todos fatores que influenciavam, certamente, o julgamento. Do que mais gostava era o desabrochar da primavera, quando daqueles galhos retorcidos nasciam folhas de um verde único e flores que o olhar guardou; ou, no sentido oposto, o desnudamento dourado no início do outono, quando as calçadas ficavam multicoloridas. O Parque Monceau, bem perto de onde morava, continua a ter a vocação para abrigar essas mutações. Mensagens serenas da natureza em transformação são inesquecíveis, pois sempre levam à paz interior.
Reiteradas vezes escrevi sobre minhas amizades absolutas, que estão a se prolongar há mais de cinquenta anos. Basta uma possibilidade de estar em Paris e o reencontro com todos se transforma num verdadeiro hino amoroso.
Luca questiona: “E o cotidiano, transporte na cidade, houve muita alteração” ? Começaria por um trem que pegava na chamada Gare du Pont Cardinet, não distante da Gare Saint-Lazare, e que atravessava parte da cidade. Para ir ao curso matutino da legendária Marguerite Long tinha de pegá-lo, pois me deixava bem perto da Academia da notável pianista e pedagoga. No inverno era bem difícil ficar à espera na manhã escura e varrida, por vezes, por ventos gélidos. Mas fazia parte do aprendizado. Ficara-me a impressão, àquela altura, de um povo meio soturno nos meses frios.
Contudo, a diferença maior que sinto quando vou a Paris é quanto ao povo que frequenta o metrô. Naqueles tempos, estou a me lembrar de uma grande maioria de franceses, mas era menos numerosa a presença de oriundos. Norte africanos, mormente argelinos. O cotidiano é implacável e difícil é esquecê-lo quando a atenção ou curiosidade levam à observação mais atenta.
Nos espaços de tempo que variam de dois a quatro anos, períodos que separam minhas idas a Paris, é possível perceber transformações que se mostram tênues para o viajante de passagem, e quase que imperceptíveis para o parisiense, pois elas se apresentam diariamente, não havendo, pois, recuo temporal para melhor avaliação. Sempre a ter o metrô como referência, cresceu imensamente, aos meus olhos, o afluxo dos povos da África e da Ásia, principalmente descendentes das ex-colônias francesas, assim como do Extremo Oriente. Como curiosidade, ao pegar na super movimentada Gare St. Lazare, entroncamento de tantas linhas, o metrô com destinação a St.Ouen, uma surpresa. Cerca de 90% pareceram-me desses continentes. Podia-se perceber que pertenciam a vários países, sendo que os mais jovens tinham possivelmente nascido em França. Muitos eram estudantes, havia professores também. Os alunos, de tantas raças distintas, conversavam descontraidamente em voz alta e era possível notar diferentes acentuações quanto à língua francesa. Tentei me concentrar nas falas e estranhei a quantidade de palavras fora do dicionário dito culto. Disseram-me mais tarde que há, nas várias raças que habitam a cidade, quantidade de termos que passam a frequentar a conversa do povo. Numa percepção outra, deu para sentir pessoas mais apressadas, a correr para seus compromissos. Ou não percebera antes, ou a idade faz com que tenhamos outra dimensão do tempo.
Naqueles anos juvenis era considerável a parcela de leitores de livros de bolso baratos. Foi uma das impressões que ficaram. Continua-se a ler na extensa rede metroviária parisiense. É questão cultural. Também não me esqueci da própria figura dos longínquos anos, “espelhada” no vidro da janela do metrô, quando nos túneis escuros. Questionava-me sobre passos futuros, e aquele imagem refletida parecia estar a me dizer para sempre continuar. Sentado, entre divagações, voltava à sempre leitura. Cinco décadas passaram e eis-me novamente diante da realidade desse “espelho”. Em poucos segundos, frente à porta, faço um resumo de mim mesmo. Em outro contexto, na prática ainda não havia em Paris a proliferação dos grafiteiros que inundaram o metrô de tantas cidades. Hoje essa espécie de vandalismo já se apresenta e os “espelhos” exibem excessivos rabiscos. Nos longos subterrâneos onde os vagões deslizam, paredes grafitadas, muitas delas com palavras obscenas, inclusive em português !!! Tempos outros.
Estamos habituados a ver mendigos e pedintes em nossas ruas paulistanas e, nos semáforos, aprendizes de acrobatas. Há presentemente, em locais precisos de Paris, imigrantes sentados nas calçadas pedindo esmolas. Ao passar lentamente por vários deles, que estavam a dialogar com conterrâneos, ouvi acentos eslavos, mas confesso que não saberia dizer a procedência. Como transitei vários dias pelos mesmos locais, lá estavam os personagens, exatamente nos lugares por eles escolhidos.
As livrarias parisienses chamam-me sempre a atenção pela diversidade, e preços médios são constantes em edições, tantas vezes primorosas. Elas proliferam pelos bairros, o que é salutar. Adquiri alguns sobre música e aventuras. Livros de bolso com papel reciclado têm tido uma grande guarida e não me pareceram caros. Em contrapartida, comprei, para um jantar oferecido por amigos, garrafas de um vinho chileno bem comercializado em São Paulo. É de pasmar, custava E$ 6,50 a garrafa, sendo que em supermercado bem conhecido de nossa cidade o preço ultrapassa os R$ 34,00 !!! Para chegar à França, a nobre bebida atravessou todo o Atlântico !!! E já houve críticas de governantes à campanha diária e essencial de uma de nossas emissoras: “Brasil, o país dos impostos” !!!
Observar o cotidiano tem interesse. Regressos à sempre belíssima Paris despertam incondicionalmente novas reflexões. Aprendemos com esse revolver permanente, balanço dos acúmulos. São estes que tornam o envelhecer, a depender das individualidades, um outono onde as folhas douradas podem representar a diferença.

During my recent visit to Paris, I couldn’t help comparing the place where I lived in the fifties with the city as it is today. Impossible not to sense how it has changed. I was impressed by the influx of immigrants – mainly Africans, Asians and Eastern Europeans – and by the changes the ethnic composition of the city has undergone in just half a century. But something has not changed: it is still the “city of light”, fascinating and incomparable.

“Do que eu Falo Quando eu Falo de Corrida”

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Desde que o tempo teve início
(me pergunto quando foi isso),
vem se movendo adiante
sem uma pausa para descansar.
E um dos privilégios concedidos
àqueles que evitaram morrer jovens
é o direito abençoado de ficarem velhos.
A honra do declínio físico está esperando,
e você precisa se acostumar com essa realidade.

Haruki Murakami

Reiterada vezes tenho escrito sobre tema que me é caro e me envolve inteiramente. A corrida de rua hoje faz parte de minha respiração. Já há cinco anos me dedico três vezes por semana aos treinamentos de 6 a 10km, faça frio ou calor, chuva, vento ou bom tempo. Foi com imensa alegria que recebi de José Reynaldo Figueiredo, Diretor Cultural da Corpore, empresa que organiza inúmeras corridas pelo Brasil, o livro de Haruki Murakami “Do que falo quando eu falo de corrida” (Rio de Janeiro, Objetiva, 2010). A narrativa de Murakami foi um dos livros que levei para leitura durante os longos vôos noturnos São Paulo-Paris-São Paulo e as viagens de comboio Paris-Gent-Paris.
Haruki Murakami, nascido em 1949, é um dos mais destacados romancistas japoneses. Proprietário de um bar onde se ouvia jazz, a certa altura, sem desprezo pela atividade, começou a escrever e vendeu o estabelecimento. Surgia em 1982 o romancista que se tornou conhecido mundialmente, traduzido em 38 idiomas. Iniciava naqueles anos oitenta uma outra atividade, que o empolgaria para sempre: a corrida de longas distâncias. Mais de duas dezenas de maratonas percorridas e participação em vários triatlos norteiam a vida de Murakami nessa atividade praticada quase todos os dias, em extensões não inferiores aos 10km. Ao decidir escrever sobre suas experiências como corredor, o autor consegue não apenas passar ao leitor o sentido fulcral de uma preparação, como mostra analogias entre os atos de escrever e de correr, para o primeiro entendendo-se como premissa o talento e mais a concentração, perseverança e disciplina corroborando o treinamento permanente. Predisposição física e as qualidades apontadas devem integrar a vida de um corredor de longa distância, termos sempre repetidos por Murakami.
O livro do escritor nipônico tem interesse e respeitabilidade. O tempo dos percursos não tem tanto significado como o completar bem uma prova. O que lhe importa de fato é desempenhar plenamente as duas atividades. Tóquio, Boston, Nova York, Honolulu são algumas das cidades que sentiram os passos de Murakami. Continuar a correr tem implicações, “mesmo que meu tempo na corrida não melhore, não há muito que eu possa fazer a respeito. Fiquei mais velho, e o tempo cobra seu tributo. Não é culpa de ninguém. Essas são as regras do jogo”. Compreende a grande vantagem da corrida, pois não há a necessidade de basicamente nada, nenhum objeto outro para o desempenho, tampouco da fala, característica dos esportes coletivos. Se pensa enquanto corre, admira os longos quilômetros de silêncio interior, quando se deixa levar pelas passadas ritmadas, mas com a mente naquilo que ele nomeia vácuo. Entende que a corrida o ajuda a “descobrir que tipo de romance vou produzir em seguida”. Comenta, “milagre talvez seja exagero”.
Uma única vez correu a ultramaratona, prova de 100km. Deu-se a prova no lago Saroma, em Hokkaido, em Junho de 1996, quando Murakami contava 47 anos. Não estava preparado, pois era maratonista dos 42.195 metros. Sua narrativa viva e pragmática faz o leitor acompanhá-lo em toda a trajetória. Ao atingir a marca da maratona pensa ainda no que lhe falta correr. Há mesmo certo humor quando, a partir dos 50km, após breve parada de descanso para os corredores comerem pequeno lanche e beber água, prossegue com outro par de tênis, pois seus pés começavam a inchar. Conversa com seus músculos. Preparados para a maratona, não estavam adequadamente treinados para tamanho esforço e começaram espaçadamente a falhar. Murakami pena, mas continua. Um mantra é insistentemente repetido nos últimos vinte quilômetros “Não sou humano. Sou uma máquina. Não preciso sentir coisa alguma. Apenas seguir em frente”. A mente a comandar o que resta de energia. Jamais andou em uma corrida, sentindo até certo desprezo por esse procedimento, o que pareceria evidente nas entrelinhas da narrativa. Sofre a correr e assiste a outros competidores ultrapassando-o. Segue conversando com seus músculos, a fim de que obedeçam sua mente. Enfim completa, exausto, em onze horas e quarenta e dois minutos. Reconhece o grande desafio cumprido.
O running novelist, como foi denominado, detém-se nos treinamentos. Seus métodos individualizados, os pequenos prazeres em cruzar com outros corredores, em particular uma jovem bonita com quem jamais conversou, apenas trocavam sorrisos; todos são aspectos que corroboram o verdadeiro prazer de correr. Nas várias competições, verificar rostos de tantas outras corridas também lhe dão prazer. Observar as estações com os olhos de um amante da natureza, folhas outonais douradas a cair, esquilo que grimpa célere uma árvore em direção ao ninho, as colorações das águas de rios, lagos e mares, vacas mastigando, montanhas, sol, nuvens e chuva, neve e vento, todos esses elementos Murakami aprecia durante seus treinamentos, quando vácuo e ideias estão também compartimentados. Paradoxalmente em corridas, quilômetros antes do final, “reduzo o mundo sensível aos parâmetros mais estreitos. Tudo o que posso ver é o chão três metros adiante, nada além”. Paisagens e cenas bucólicas são esquecidas, pois importa-lhe apenas vencer os três metros seguintes.
O romancista-corredor têm consciência de que muito do que escreve sobre corrida é vivenciado por parte considerável dos atletas. Considera estimulante tantos outros numa prova, “mas é muito difícil não dar tudo que você pode numa corrida, tentar segurar um pouco. Estar cercado por outros corredores tende a exercer uma influência em você”. Entende o passar dos anos, mas “ficaria feliz se a corrida e eu pudermos envelhecer juntos”.
O livro de Murakami torna-se essencial, na medida em que foge dos preceitos – tantas vezes extraordinários – de especialistas e treinadores. Tem ele seu método preparatório e não luta contra o relógio, apesar de mencionar tempos. Apreende bem o passar dos anos e essa assertiva é transferida mormente para os triatlos, quando a idade faz a diferença mais acentuadamente. Pelo fato de ter o dom – talento, como diz – da escrita, sensações, possíveis desalentos, entusiasmo, ansiedade antes de qualquer corrida, todos esses aspectos são transmitidos com naturalidade, quiçá humor, e agradam ao leitor.
Curiosamente, mesmo nos momentos mais estressantes de uma corrida, não anda. “Nunca cheguei perto de caminhar. Essa era a regra. Se eu quebrasse uma de minhas regras uma vez, poderia quebrar muitas mais. E se eu fizesse isso, teria sido quase impossível terminar uma corrida.” Não por outro motivo gostaria de ver inserido o seguinte epitáfio entalhado em seu túmulo:

Haruki Murakami
1949-20**
Escritor (e Corredor)
Pelo menos ele nunca caminhou

Finalizava o post do excelente livro de Haruki Murakami quando recebi, através de meu amigo Elson Otake, outro maratonista de fato, um troféu de nossa equipe CORRE BRASIL. Cada corredor pode inscrever-se por duas equipes e se a TA LENTOS é formada por seis nisseis e outros dois e nos reunimos num prazer indizível para as provas de revezamento, a CORRE BRASIL é científica, muito bem dirigida pelo Professor Augusto César Fernandes de Paula. Tem dezenas de participantes, alguns maratonistas de respeito, entre eles Elson. Recebo conselhos preciosos de vários participantes para manter-me em forma nessa busca incessante pelo aperfeiçoamento. No dia da premiação estava na Europa, mas fiquei muito feliz pelo troféu, que ficará também sobre meu piano de estudos. Um lembrete: até agora, jamais andei em uma corrida de rua.

JEM. A foto do troféu. Clique para ampliar.

Comments on the book “What I Talk About When I Talk About Running”, by Haruki Murakami, the acclaimed Japanese writer, marathon runner and triathlete. In addition to helpful hints about trainings and methods, Murakami explains the importance his running has for his literary activity, since it gives him discipline, physical strength and even new ideas for his writings.

Tese de Doutorado na Universidade Sorbonne em Paris

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Como em Medjougorje, quando fui lá,
subi a montanha pra rezar,
senti que Nossa Senhora cantava pra mim,
tudo muito subjetivo, mas era uma iminência,
eu compus o tema dentro dessa iminência.
Eu não fui compor Medjougorje anos depois,
excepcionalmente os Mistérios da Luz,
porque o papa os havia decretado.

Testemunho de Almeida Prado ao Padre Bannwart aos 11/07/2006

Em post de Novembro, no qual lamentava a morte do compositor brasileiro Almeida Prado, ocorrida aos 21 do mês, comentava igualmente a imensa felicidade do ilustre músico em ser lembrado numa tese acadêmica que seria sustentada na Sorbonne, em Paris. Horas antes de uma parada cardiorespiratória conversamos muito a respeito, pois juntos participaríamos do júri.
Infelizmente, parti sozinho para integrar júris, que, após pormenorizada leitura, examinaram duas teses de doutorado: uma de Isaac Felix Chueke, a ter como tema “Francisco Braga, Compositeur Brésilien: La Vie et l’Oeuvre”, valiosa contribuição no sentido de se destacar um de nossos músicos mais notáveis; outra de José Francisco Bannwart sobre “La Musique Religieuse pour Piano d’Almeida Prado”. Defendidas aos 27 de Janeiro e 5 de Fevereiro, respectivamente, trazem verdadeiros contributos ao melhor conhecimento, no Brasil e no Exterior, de compositores que dignificaram a música brasileira.
Minha grande amizade com Almeida Prado durante décadas e o privilégio recebido do autor, que me dedicou uma série de obras para piano, inclusive de cunho religioso, tornam possível aquilatar dois contributos essenciais na tese de José Francisco Bannwart, que teve como seguro orientador o professor Michel Fischer, Maître de conférences, H.D.R., Paris IV. O júri foi presidido pela ilustre professora da Sorbonne – Paris IV, Madame Danièle Pistone, musicóloga renomada. Se considerações pertinentes foram colocadas pelos professores que integraram o júri, ficaria ressaltada, todavia, a grande relevância para a musicologia brasileira e francesa de uma tese sobre Almeida Prado, certamente o compositor pátrio qualitativo que laços mais perenes manteve durante toda a sua existência com a cultura francesa. Após minha arguição, a penúltima, a intervenção final de Madame Danièle Pistone revelou-se da maior competência. Ao captar a essência das proposições apresentadas por seus antecessores, teceu importantes considerações sobre a poética musical do compositor brasileiro.
Ter estudado e mantido contato intenso com dois dos maiores músicos franceses do século XX, o compositor Olivier Messiaen e a professora e musicóloga Nadia Boulanger, já se mostrariam referências para Almeida Prado. Para os que o conheceram, tão forte foi a influência francesa em seu viver que dificilmente, em sua fala cotidiana, deixava o compositor de empregar palavras franceses. Almeida Prado sempre respirou a França.
Duas importantes contribuições às nossas culturas mostrar-se-iam evidentes na tese do Padre Bannwart. Impressiona o fato de Almeida Prado ter escrito à Nadia Boulanger 222 cartas, todas elas depositadas na Biblioteca Nacional de Paris. O dia em que esse imenso corpus epistolar for revelado em sua abrangência, com notas pertinentes referenciando personagens e episódios relevantes, ganharão as culturas francesa e brasileira. Para a primeira, ficarão evidenciados determinados métodos e procedimentos da notável professora; para a segunda, estarão fixados a assimilação dos ensinamentos, as emoções, os projetos e anseios, a problemática com a saúde, a preocupação com a subsistência, a família e aqueles que cercavam o compositor após sua volta ao Brasil. Mostrar-se-ia Almeida Prado um memorialista dos melhores. Sabia a quem estava destinando o precioso correio. Entendia, mesmo que inconscientemente, que toda essa rica produção íntima ficaria preservada nas mãos de outra memorialista que foi, sem dúvida, Nadia Boulanger, um dos mais importantes nomes da música no século XX.
Essencial à causa do desvelamento da obra desse imenso compositor brasileiro, a comunhão místico-religiosa de nosso músico com seu estudioso, o Padre Bannwart. Para o leitor, diria que grande parte das 70 músicas para piano de Almeida Prado estudadas na tese tem como inspiração o Antigo e o Novo Testamento, assim como “interpretação” laico-religiosa de um devotado cristão, pois Almeida Prado era católico convicto. Impressiona a verificação, através do andamento do trabalho acadêmico, de toda uma penetração mística a partir da visita que o compositor realizou a Medjourgorje, cidadezinha da Bósnia, antiga Iugoslávia, em 1987. A Virgem teria feito aparições nessa localidade. A partir da coleção de peças que formam O Rosário de Medjougorje, Almeida Prado ainda se fixaria em três outros conjuntos monolíticos religiosos para piano: Os Corais, as Três Profecias em Forma de Estudo (clique em YouTube no menu do blog, para ouvir as Três Profecias…) e os Nove Louvores Sonoros. Paul Claudel não teria uma abrupta conversão ao adentrar a Catedral de Notre Dame de Paris e ouvir música sacra ?
Se a Igreja Católica exerceu forte influência na criação artística durante séculos, é também evidente que há tendência a se laicizar ainda mais acentuadamente o Estado nestes últimos decênios. Sem entrar em juízo de valor nesse mister, o estudo aprofundado dos textos religiosos sofreu diminuição de vocacionados, segundo estatísticas. Maior valor tem pois um segundo aspecto de grande originalidade na tese do Padre Bannwart que, no debruçamento música-frases bíblicas, procura esclarecer, à luz da Igreja, todo esse universo imaginário religioso de Almeida Prado traduzido nas frases programáticas, a conduzir o leitor, intérprete pianístico e ouvinte, à associação. Há por vezes verdadeiro amálgama das Escrituras e mais essas originais “epígrafes” do músico nascido em Santos. Pareceria normal a apreensão apenas literária de todas essas citações, bíblicas ou não, porém o Padre Bannwart penetra no complexo campo da hermenêutica para explicá-las. Denominaria eu a respeito dessas frases, um programatismo subjetivo, distante do objetivo proposto por Johan Kuhnau em suas célebres Seis Sonatas Bíblicas, compostas para teclado em 1700. Teve o Padre Bannwart, após longos e fundamentais testemunhos de Almeida Prado, que buscar no Antigo e no Novo Testamento uma espécie de fusão quanto às intenções, sob a luz dos documentos da Igreja. Convivem nesse imaginário do compositor Santa Eva, Santo Adão, Santa Maria, Santa Madalena… Entende-os Almeida Prado num mesmo projeto místico de confraternização plena, interpondo tantas vezes sua própria “criação”. Inconscientemente, teria chegado a deduções sem ter conhecimento de documentos oficiais da Igreja, mormente nas interpretações que dá à Eva e Adão, santificando-os. Já não buscara Scriabine, num visionarismo total, a união das artes para que, unidas, chegassem ao Cosmos, ao Eu Criador ? Para Almeida Prado, seria o homem abençoado por todos os personagens bíblicos desde o Gênesis. Interpretar as frases sem dar vazão ao profano e harmonizá-las, entendendo as várias missões dos figurantes contidos nas escrituras, foi tarefa na qual, acredito eu, apenas um especialista em música e teologia poderia mergulhar. E o Padre Bannwart o fez com cautela e discernimento.
Não bastassem esses dois debruçamentos relativos às cartas endereçadas à Nadia Boulanger e à cuidadosa interpretação texto-música nesse universo metafórico intenso, como bem salientou a notável musicóloga Danièle Pistone, o Padre Bannwart estudou os elementos que constituem a textura musical. Apesar do tratamento mais tradicional das estruturas que integram a trama musical oferecido por Bannwart, poder-se-ia dizer que complementam e ajudam a entender o raciocínio composicional de Almeida Prado.
Uma tese de doutorado pressupõe conhecimento vasto bibliográfico. Ao ser publicada no formato livro, ao qual o público leigo terá acesso, revisões tornam-se quase que obrigatórias. A tese do Padre Bannwart mereceria um dia ser publicada. Às editoras que lançam livros sobre música, tantos escritos por pseudo-músicos em nosso país, ficaria a sugestão. Ganharia a cultura brasileira.

Um certo dia em 2002, bate à porta de minha sala na Universidade um jovem tímido, mas determinado. Trabalhamos intensamente durante dois anos, no então denominado Curso de Extensão. Após os estudos pianísticos, pretendeu realizar o mestrado sob minha orientação. Durante esse proveitoso período, tornou-se padre. Apresentei-o a Almeida Prado, que compusera obra religiosa para piano de raro valor. Na dissertação de mestrado, o compositor participou do júri e ouviu do candidato interpretações pianísticas fiéis de coletânea religiosa para piano. Findo o mestrado, continuou sua vida sacerdotal. Convidado a permanecer em paróquia em Paris, a assistir comunidades carentes, o jovem Padre pensou apresentar projeto para futuro doutorado na Sorbonne. Sugeri a continuação da temática Almeida Prado, agora a abranger o corpus de sua produção religiosa para piano, e com disciplina e perseverança aprofundar-se nas relações de Almeida Prado com seus mestres, Nadia Boulanger e Olivier Messiaem. Aceitou com a plena anuência do compositor. Foram cinco anos de grande entendimento, o jovem padre em Paris, o músico em São Paulo e mais a orientação competente do professor Michel Fischer, da Sorbonne. Teve ainda José Francisco as preciosas colaborações da excelente pianista Odile Robert e de seu irmão Antoine, este quanto à revisão dos textos, ambos meu diletos amigos desde o final da década de 1950. Edificou-se a tese. No momento em que a ilustre Presidente do júri leu o resultado très honorable, conferindo ao Padre José Francisco Bannwart o título de Doutor pela Université Sorbonne IV, senti surda emoção. Em posts anteriores insistia que, bem mais do que formar um pianista, interessou-me sempre, sine qua non, a estruturação do músico em sua abrangência humanística e cultural. O Padre Bannwart chega a percorrer mais uma etapa de um longo caminho. Que continue a semear em suas duas áreas vocacionadas.

Comments on the PhD thesis La Musique Religieuse pour Piano d’Almeida Prado (Almeida Prado’s Religious Music for Piano) defended by Father José Francisco Bannwart at the Sorbonne on 5 February 2011 and its importance for Brazilian arts and culture and also for the French culture, given the strong links the great Brazilian composer had with France.