Tese de Doutorado na Universidade Sorbonne em Paris

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Como em Medjougorje, quando fui lá,
subi a montanha pra rezar,
senti que Nossa Senhora cantava pra mim,
tudo muito subjetivo, mas era uma iminência,
eu compus o tema dentro dessa iminência.
Eu não fui compor Medjougorje anos depois,
excepcionalmente os Mistérios da Luz,
porque o papa os havia decretado.

Testemunho de Almeida Prado ao Padre Bannwart aos 11/07/2006

Em post de Novembro, no qual lamentava a morte do compositor brasileiro Almeida Prado, ocorrida aos 21 do mês, comentava igualmente a imensa felicidade do ilustre músico em ser lembrado numa tese acadêmica que seria sustentada na Sorbonne, em Paris. Horas antes de uma parada cardiorespiratória conversamos muito a respeito, pois juntos participaríamos do júri.
Infelizmente, parti sozinho para integrar júris, que, após pormenorizada leitura, examinaram duas teses de doutorado: uma de Isaac Felix Chueke, a ter como tema “Francisco Braga, Compositeur Brésilien: La Vie et l’Oeuvre”, valiosa contribuição no sentido de se destacar um de nossos músicos mais notáveis; outra de José Francisco Bannwart sobre “La Musique Religieuse pour Piano d’Almeida Prado”. Defendidas aos 27 de Janeiro e 5 de Fevereiro, respectivamente, trazem verdadeiros contributos ao melhor conhecimento, no Brasil e no Exterior, de compositores que dignificaram a música brasileira.
Minha grande amizade com Almeida Prado durante décadas e o privilégio recebido do autor, que me dedicou uma série de obras para piano, inclusive de cunho religioso, tornam possível aquilatar dois contributos essenciais na tese de José Francisco Bannwart, que teve como seguro orientador o professor Michel Fischer, Maître de conférences, H.D.R., Paris IV. O júri foi presidido pela ilustre professora da Sorbonne – Paris IV, Madame Danièle Pistone, musicóloga renomada. Se considerações pertinentes foram colocadas pelos professores que integraram o júri, ficaria ressaltada, todavia, a grande relevância para a musicologia brasileira e francesa de uma tese sobre Almeida Prado, certamente o compositor pátrio qualitativo que laços mais perenes manteve durante toda a sua existência com a cultura francesa. Após minha arguição, a penúltima, a intervenção final de Madame Danièle Pistone revelou-se da maior competência. Ao captar a essência das proposições apresentadas por seus antecessores, teceu importantes considerações sobre a poética musical do compositor brasileiro.
Ter estudado e mantido contato intenso com dois dos maiores músicos franceses do século XX, o compositor Olivier Messiaen e a professora e musicóloga Nadia Boulanger, já se mostrariam referências para Almeida Prado. Para os que o conheceram, tão forte foi a influência francesa em seu viver que dificilmente, em sua fala cotidiana, deixava o compositor de empregar palavras franceses. Almeida Prado sempre respirou a França.
Duas importantes contribuições às nossas culturas mostrar-se-iam evidentes na tese do Padre Bannwart. Impressiona o fato de Almeida Prado ter escrito à Nadia Boulanger 222 cartas, todas elas depositadas na Biblioteca Nacional de Paris. O dia em que esse imenso corpus epistolar for revelado em sua abrangência, com notas pertinentes referenciando personagens e episódios relevantes, ganharão as culturas francesa e brasileira. Para a primeira, ficarão evidenciados determinados métodos e procedimentos da notável professora; para a segunda, estarão fixados a assimilação dos ensinamentos, as emoções, os projetos e anseios, a problemática com a saúde, a preocupação com a subsistência, a família e aqueles que cercavam o compositor após sua volta ao Brasil. Mostrar-se-ia Almeida Prado um memorialista dos melhores. Sabia a quem estava destinando o precioso correio. Entendia, mesmo que inconscientemente, que toda essa rica produção íntima ficaria preservada nas mãos de outra memorialista que foi, sem dúvida, Nadia Boulanger, um dos mais importantes nomes da música no século XX.
Essencial à causa do desvelamento da obra desse imenso compositor brasileiro, a comunhão místico-religiosa de nosso músico com seu estudioso, o Padre Bannwart. Para o leitor, diria que grande parte das 70 músicas para piano de Almeida Prado estudadas na tese tem como inspiração o Antigo e o Novo Testamento, assim como “interpretação” laico-religiosa de um devotado cristão, pois Almeida Prado era católico convicto. Impressiona a verificação, através do andamento do trabalho acadêmico, de toda uma penetração mística a partir da visita que o compositor realizou a Medjourgorje, cidadezinha da Bósnia, antiga Iugoslávia, em 1987. A Virgem teria feito aparições nessa localidade. A partir da coleção de peças que formam O Rosário de Medjougorje, Almeida Prado ainda se fixaria em três outros conjuntos monolíticos religiosos para piano: Os Corais, as Três Profecias em Forma de Estudo (clique em YouTube no menu do blog, para ouvir as Três Profecias…) e os Nove Louvores Sonoros. Paul Claudel não teria uma abrupta conversão ao adentrar a Catedral de Notre Dame de Paris e ouvir música sacra ?
Se a Igreja Católica exerceu forte influência na criação artística durante séculos, é também evidente que há tendência a se laicizar ainda mais acentuadamente o Estado nestes últimos decênios. Sem entrar em juízo de valor nesse mister, o estudo aprofundado dos textos religiosos sofreu diminuição de vocacionados, segundo estatísticas. Maior valor tem pois um segundo aspecto de grande originalidade na tese do Padre Bannwart que, no debruçamento música-frases bíblicas, procura esclarecer, à luz da Igreja, todo esse universo imaginário religioso de Almeida Prado traduzido nas frases programáticas, a conduzir o leitor, intérprete pianístico e ouvinte, à associação. Há por vezes verdadeiro amálgama das Escrituras e mais essas originais “epígrafes” do músico nascido em Santos. Pareceria normal a apreensão apenas literária de todas essas citações, bíblicas ou não, porém o Padre Bannwart penetra no complexo campo da hermenêutica para explicá-las. Denominaria eu a respeito dessas frases, um programatismo subjetivo, distante do objetivo proposto por Johan Kuhnau em suas célebres Seis Sonatas Bíblicas, compostas para teclado em 1700. Teve o Padre Bannwart, após longos e fundamentais testemunhos de Almeida Prado, que buscar no Antigo e no Novo Testamento uma espécie de fusão quanto às intenções, sob a luz dos documentos da Igreja. Convivem nesse imaginário do compositor Santa Eva, Santo Adão, Santa Maria, Santa Madalena… Entende-os Almeida Prado num mesmo projeto místico de confraternização plena, interpondo tantas vezes sua própria “criação”. Inconscientemente, teria chegado a deduções sem ter conhecimento de documentos oficiais da Igreja, mormente nas interpretações que dá à Eva e Adão, santificando-os. Já não buscara Scriabine, num visionarismo total, a união das artes para que, unidas, chegassem ao Cosmos, ao Eu Criador ? Para Almeida Prado, seria o homem abençoado por todos os personagens bíblicos desde o Gênesis. Interpretar as frases sem dar vazão ao profano e harmonizá-las, entendendo as várias missões dos figurantes contidos nas escrituras, foi tarefa na qual, acredito eu, apenas um especialista em música e teologia poderia mergulhar. E o Padre Bannwart o fez com cautela e discernimento.
Não bastassem esses dois debruçamentos relativos às cartas endereçadas à Nadia Boulanger e à cuidadosa interpretação texto-música nesse universo metafórico intenso, como bem salientou a notável musicóloga Danièle Pistone, o Padre Bannwart estudou os elementos que constituem a textura musical. Apesar do tratamento mais tradicional das estruturas que integram a trama musical oferecido por Bannwart, poder-se-ia dizer que complementam e ajudam a entender o raciocínio composicional de Almeida Prado.
Uma tese de doutorado pressupõe conhecimento vasto bibliográfico. Ao ser publicada no formato livro, ao qual o público leigo terá acesso, revisões tornam-se quase que obrigatórias. A tese do Padre Bannwart mereceria um dia ser publicada. Às editoras que lançam livros sobre música, tantos escritos por pseudo-músicos em nosso país, ficaria a sugestão. Ganharia a cultura brasileira.

Um certo dia em 2002, bate à porta de minha sala na Universidade um jovem tímido, mas determinado. Trabalhamos intensamente durante dois anos, no então denominado Curso de Extensão. Após os estudos pianísticos, pretendeu realizar o mestrado sob minha orientação. Durante esse proveitoso período, tornou-se padre. Apresentei-o a Almeida Prado, que compusera obra religiosa para piano de raro valor. Na dissertação de mestrado, o compositor participou do júri e ouviu do candidato interpretações pianísticas fiéis de coletânea religiosa para piano. Findo o mestrado, continuou sua vida sacerdotal. Convidado a permanecer em paróquia em Paris, a assistir comunidades carentes, o jovem Padre pensou apresentar projeto para futuro doutorado na Sorbonne. Sugeri a continuação da temática Almeida Prado, agora a abranger o corpus de sua produção religiosa para piano, e com disciplina e perseverança aprofundar-se nas relações de Almeida Prado com seus mestres, Nadia Boulanger e Olivier Messiaem. Aceitou com a plena anuência do compositor. Foram cinco anos de grande entendimento, o jovem padre em Paris, o músico em São Paulo e mais a orientação competente do professor Michel Fischer, da Sorbonne. Teve ainda José Francisco as preciosas colaborações da excelente pianista Odile Robert e de seu irmão Antoine, este quanto à revisão dos textos, ambos meu diletos amigos desde o final da década de 1950. Edificou-se a tese. No momento em que a ilustre Presidente do júri leu o resultado très honorable, conferindo ao Padre José Francisco Bannwart o título de Doutor pela Université Sorbonne IV, senti surda emoção. Em posts anteriores insistia que, bem mais do que formar um pianista, interessou-me sempre, sine qua non, a estruturação do músico em sua abrangência humanística e cultural. O Padre Bannwart chega a percorrer mais uma etapa de um longo caminho. Que continue a semear em suas duas áreas vocacionadas.

Comments on the PhD thesis La Musique Religieuse pour Piano d’Almeida Prado (Almeida Prado’s Religious Music for Piano) defended by Father José Francisco Bannwart at the Sorbonne on 5 February 2011 and its importance for Brazilian arts and culture and also for the French culture, given the strong links the great Brazilian composer had with France.