Adentrar o território belga leva-me sempre a reflexões. Mais de vinte vezes aqui estive. O TGV desliza celeremente e sinto um prazer real. A região flamenga, meu destino final, faz parte de minha respiração afetiva e musical. Encontrar velhos amigos, conviver, rememorar e pensar música.
Tony Herbert, Tânia e os filhos, Tycho e Trixie, abrigam-me sob um lar onde impera o entendimento. Tantos anos se passaram desde a primeira vez, quando o então jovem casal sequer pensava nessa geração que surgiu plena de encanto. Tony acompanha-me nos almoços pela Gent que respiro em seu gélido momento invernal. São tantos os assuntos sobre o desenrolar dos acontecimentos cotidianos… Tony tem o dom da generosidade e está sempre disposto a ajudar a todos. Prático, encontra solução para tudo.
Estive com André Posman, Jamila e os filhos, Taha e Yassim. André é o Diretor da De Rode Pomp, organização responsável por todos os meus CDs gravados para o prestigioso selo. Sou infinitamente grato ao grande amigo que, no longínquo 1996, disse-me, após recital em Gent, que eu precisava deixar minha herança musical registrada. Uma profunda e imorredoura amizade formou-se. Pai tardio, sei do carinho e do cuidado com que acompanhou a difícil gestação de sua esposa, Jamila. André e eu comungamos idéias. Estimula o repertório pouco freqüentado e jamais interveio em qualquer de minhas escolhas para a gravação dos CDs. Os Posmans vivem Música. Jamila é marroquina e apreendeu as duas culturas. Os pequenos, Taha ao piano e Yassim na clarineta, já demonstram talentos reais, imbuídos da multicultura. É gratificante ouvi-los em interpretações plenas de entusiasmo.
Se as amizades fiéis foram construídas sob a égide amorosa, o objetivo fulcral da vinda a Gent concentrava-se nos longos encontros com Johan Kennivé, Mestre da Capela de Sint-Hilarius em Mullem, na planura flamenga. Horas a fio escutamos a masterização final dos dois CDs, dedicados a esse gênio absoluto que foi Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Finalmente chegamos aos masters de obras como Música de Piano para Crianças, Cosmorame, Canto de Amor e de Morte e as nove Músicas Fúnebres. Quanto ao Canto de Amor e de Morte, temos uma das mais extraordinárias criações para piano escritas na segunda metade do século XX em termos mundiais. Os dois CDs deverão ser lançados em 2012 em Portugal.
Nossa longa amizade ultrapassou as barreiras da fraternidade. Johan Kennivé e eu conversamos muito sobre a essência do homem, suas aspirações, suas fraquezas. Psiquiatra, sabe ouvir e deduzir. Raramente conheci maior acuidade. Com naturalidade falamos sobre o passar dos anos. Refletimos sobre o olhar que não envelhece e pode tudo apreciar. Falava-lhe de implacáveis espelhos em espaços públicos que, com iluminação plena, evidenciam que o tempo passou, mas não o tal olhar e a vontade de prosseguir com os projetos. A aparência a demonstrar a trajetória.
Nesses instantes fugazes, a história do ser humano passa como um relâmpago. Valeu a pena o longo caminho ? A depender de cada indivíduo, as respostas podem ser as mais díspares. Dizia eu a Johan que o espelho, nesse conflito que se acentua, aparência-aspirações, traz-me reconforto, mormente a partir dessa âncora traduzida pela família harmoniosa. Traços nostálgicos estão a surgir. Foram tantos os que nos precederam e que nos serviram de referência, inclusive em Gent. A partir de determinada idade, mais difícil se torna fazer novas amizades. As que existem são salvaguardas do entendimento.
Dou um até breve aos amigos gantoises. Estou de regresso a Paris. Encontros com musicólogos no Centre Debussy e mais a tese deste 5 de Fevereiro, a segunda de que participo como membro do júri na Université Sorbonne no espaço de uma semana. Terei prazer em relatar os resultados.
Meus amigos franceses. Dizer que amo essas outras referências é a pura realidade. Estivemos juntos e convivemos. Proles que geraram outras proles e o entusiasmo é sempre intenso. Bem haja!!
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