“Do que eu Falo Quando eu Falo de Corrida”
Desde que o tempo teve início
(me pergunto quando foi isso),
vem se movendo adiante
sem uma pausa para descansar.
E um dos privilégios concedidos
àqueles que evitaram morrer jovens
é o direito abençoado de ficarem velhos.
A honra do declínio físico está esperando,
e você precisa se acostumar com essa realidade.
Haruki Murakami
Reiterada vezes tenho escrito sobre tema que me é caro e me envolve inteiramente. A corrida de rua hoje faz parte de minha respiração. Já há cinco anos me dedico três vezes por semana aos treinamentos de 6 a 10km, faça frio ou calor, chuva, vento ou bom tempo. Foi com imensa alegria que recebi de José Reynaldo Figueiredo, Diretor Cultural da Corpore, empresa que organiza inúmeras corridas pelo Brasil, o livro de Haruki Murakami “Do que falo quando eu falo de corrida” (Rio de Janeiro, Objetiva, 2010). A narrativa de Murakami foi um dos livros que levei para leitura durante os longos vôos noturnos São Paulo-Paris-São Paulo e as viagens de comboio Paris-Gent-Paris.
Haruki Murakami, nascido em 1949, é um dos mais destacados romancistas japoneses. Proprietário de um bar onde se ouvia jazz, a certa altura, sem desprezo pela atividade, começou a escrever e vendeu o estabelecimento. Surgia em 1982 o romancista que se tornou conhecido mundialmente, traduzido em 38 idiomas. Iniciava naqueles anos oitenta uma outra atividade, que o empolgaria para sempre: a corrida de longas distâncias. Mais de duas dezenas de maratonas percorridas e participação em vários triatlos norteiam a vida de Murakami nessa atividade praticada quase todos os dias, em extensões não inferiores aos 10km. Ao decidir escrever sobre suas experiências como corredor, o autor consegue não apenas passar ao leitor o sentido fulcral de uma preparação, como mostra analogias entre os atos de escrever e de correr, para o primeiro entendendo-se como premissa o talento e mais a concentração, perseverança e disciplina corroborando o treinamento permanente. Predisposição física e as qualidades apontadas devem integrar a vida de um corredor de longa distância, termos sempre repetidos por Murakami.
O livro do escritor nipônico tem interesse e respeitabilidade. O tempo dos percursos não tem tanto significado como o completar bem uma prova. O que lhe importa de fato é desempenhar plenamente as duas atividades. Tóquio, Boston, Nova York, Honolulu são algumas das cidades que sentiram os passos de Murakami. Continuar a correr tem implicações, “mesmo que meu tempo na corrida não melhore, não há muito que eu possa fazer a respeito. Fiquei mais velho, e o tempo cobra seu tributo. Não é culpa de ninguém. Essas são as regras do jogo”. Compreende a grande vantagem da corrida, pois não há a necessidade de basicamente nada, nenhum objeto outro para o desempenho, tampouco da fala, característica dos esportes coletivos. Se pensa enquanto corre, admira os longos quilômetros de silêncio interior, quando se deixa levar pelas passadas ritmadas, mas com a mente naquilo que ele nomeia vácuo. Entende que a corrida o ajuda a “descobrir que tipo de romance vou produzir em seguida”. Comenta, “milagre talvez seja exagero”.
Uma única vez correu a ultramaratona, prova de 100km. Deu-se a prova no lago Saroma, em Hokkaido, em Junho de 1996, quando Murakami contava 47 anos. Não estava preparado, pois era maratonista dos 42.195 metros. Sua narrativa viva e pragmática faz o leitor acompanhá-lo em toda a trajetória. Ao atingir a marca da maratona pensa ainda no que lhe falta correr. Há mesmo certo humor quando, a partir dos 50km, após breve parada de descanso para os corredores comerem pequeno lanche e beber água, prossegue com outro par de tênis, pois seus pés começavam a inchar. Conversa com seus músculos. Preparados para a maratona, não estavam adequadamente treinados para tamanho esforço e começaram espaçadamente a falhar. Murakami pena, mas continua. Um mantra é insistentemente repetido nos últimos vinte quilômetros “Não sou humano. Sou uma máquina. Não preciso sentir coisa alguma. Apenas seguir em frente”. A mente a comandar o que resta de energia. Jamais andou em uma corrida, sentindo até certo desprezo por esse procedimento, o que pareceria evidente nas entrelinhas da narrativa. Sofre a correr e assiste a outros competidores ultrapassando-o. Segue conversando com seus músculos, a fim de que obedeçam sua mente. Enfim completa, exausto, em onze horas e quarenta e dois minutos. Reconhece o grande desafio cumprido.
O running novelist, como foi denominado, detém-se nos treinamentos. Seus métodos individualizados, os pequenos prazeres em cruzar com outros corredores, em particular uma jovem bonita com quem jamais conversou, apenas trocavam sorrisos; todos são aspectos que corroboram o verdadeiro prazer de correr. Nas várias competições, verificar rostos de tantas outras corridas também lhe dão prazer. Observar as estações com os olhos de um amante da natureza, folhas outonais douradas a cair, esquilo que grimpa célere uma árvore em direção ao ninho, as colorações das águas de rios, lagos e mares, vacas mastigando, montanhas, sol, nuvens e chuva, neve e vento, todos esses elementos Murakami aprecia durante seus treinamentos, quando vácuo e ideias estão também compartimentados. Paradoxalmente em corridas, quilômetros antes do final, “reduzo o mundo sensível aos parâmetros mais estreitos. Tudo o que posso ver é o chão três metros adiante, nada além”. Paisagens e cenas bucólicas são esquecidas, pois importa-lhe apenas vencer os três metros seguintes.
O romancista-corredor têm consciência de que muito do que escreve sobre corrida é vivenciado por parte considerável dos atletas. Considera estimulante tantos outros numa prova, “mas é muito difícil não dar tudo que você pode numa corrida, tentar segurar um pouco. Estar cercado por outros corredores tende a exercer uma influência em você”. Entende o passar dos anos, mas “ficaria feliz se a corrida e eu pudermos envelhecer juntos”.
O livro de Murakami torna-se essencial, na medida em que foge dos preceitos – tantas vezes extraordinários – de especialistas e treinadores. Tem ele seu método preparatório e não luta contra o relógio, apesar de mencionar tempos. Apreende bem o passar dos anos e essa assertiva é transferida mormente para os triatlos, quando a idade faz a diferença mais acentuadamente. Pelo fato de ter o dom – talento, como diz – da escrita, sensações, possíveis desalentos, entusiasmo, ansiedade antes de qualquer corrida, todos esses aspectos são transmitidos com naturalidade, quiçá humor, e agradam ao leitor.
Curiosamente, mesmo nos momentos mais estressantes de uma corrida, não anda. “Nunca cheguei perto de caminhar. Essa era a regra. Se eu quebrasse uma de minhas regras uma vez, poderia quebrar muitas mais. E se eu fizesse isso, teria sido quase impossível terminar uma corrida.” Não por outro motivo gostaria de ver inserido o seguinte epitáfio entalhado em seu túmulo:
Haruki Murakami
1949-20**
Escritor (e Corredor)
Pelo menos ele nunca caminhou
Finalizava o post do excelente livro de Haruki Murakami quando recebi, através de meu amigo Elson Otake, outro maratonista de fato, um troféu de nossa equipe CORRE BRASIL. Cada corredor pode inscrever-se por duas equipes e se a TA LENTOS é formada por seis nisseis e outros dois e nos reunimos num prazer indizível para as provas de revezamento, a CORRE BRASIL é científica, muito bem dirigida pelo Professor Augusto César Fernandes de Paula. Tem dezenas de participantes, alguns maratonistas de respeito, entre eles Elson. Recebo conselhos preciosos de vários participantes para manter-me em forma nessa busca incessante pelo aperfeiçoamento. No dia da premiação estava na Europa, mas fiquei muito feliz pelo troféu, que ficará também sobre meu piano de estudos. Um lembrete: até agora, jamais andei em uma corrida de rua.
Comments on the book “What I Talk About When I Talk About Running”, by Haruki Murakami, the acclaimed Japanese writer, marathon runner and triathlete. In addition to helpful hints about trainings and methods, Murakami explains the importance his running has for his literary activity, since it gives him discipline, physical strength and even new ideas for his writings.