Quando o Cidadão Passa Diante do Olhar
O próximo sempre pode ser mais próximo
ou ser um ente abissal.
Provérbio Tailandês
Seria possível entender o homem com seus amparos apreendidos do cotidiano. Habitante de um bairro tem quase sempre suas preferências nesse caminhar diário para as mais variadas atividades: manutenção da morada, trabalho ou simples lazer. Não fosse o constante cruzar com personagens que podem ter as mesmas preocupações de subsistência e poderíamos não ter referências. Se morador há muito tempo, rostos tornam-se familiares e, se o sentido da observação existir, a aferição ou apresenta-se cordial ou, durante décadas, nem olhar, tampouco palavras são trocados. Faz parte do homem esse permanente “contato”, tantas vezes rigorosamente subjetivo, apenas o cruzar por força das circunstâncias.
Em minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, vejo de tudo ao sair para fazer compras, para treinos visando às corridas, ou para conversar ou tomar um curto com meus vizinhos, alguns também aposentados, que permanecem durante o dia sempre no mesmo lugar. Tenho absoluta convicção de que a minha reforma, como chamam em Portugal a aposentadoria, dando-me maior tempo, expandiu minha dedicação aos estudos, à reflexão e a esse ato extraordinário de observar sem contar com a pressão do tempo. Sob outro aspecto, viver 46 anos na mesma casa torna-me cúmplice de mortos e vivos ou, por vezes, mortos-vivos. Quantos não foram aqueles com que cruzei cordialmente, ou apenas vi durante décadas, sem um gesto sequer de aproximação. Quantos não desapareceram e durante o passar do tempo sentíamos neles o declínio físico inexorável. Se personagem sem contato, certo dia alguém comentará que o cidadão morreu. Apenas um “Ah !” de acolhida do fato e tudo volta à normalidade. Quão não são aqueles que bem efusivamente nos cumprimentam durante anos, seja com um aceno de mão acompanhado de sorriso, seja por palavras perenizadas pela rotina da saudação, e cujo nome sequer ficamos sabendo.
Estou a me lembrar de uma vizinha com quem mantinha conversação amistosa quando a encontrava. Contudo, jamais olhava para alguém ao andar para suas várias atividades e compromissos. Um dia quis testá-la. Era dia de eleição e as calçadas e ruas estavam inundadas por essa hedionda panfletagem de nossos políticos de todos os partidos. Eles jamais abdicam dessa imundície. Vinha em sentido contrário ao meu com olhar fixo à frente. Com ela cruzo quase a tocá-la sem que sequer me tenha visto. Imitando voz cavernosa disse eu “que cidade imunda”, e a resposta veio imediata, sem que a moradora se voltasse: “imunda mesmo”. Dei meia volta e a cumprimentei. Motivo para surpresa e sorrisos. Esse tipo de atitude não seria também consequência do medo que as pessoas têm de olhar o outro, a fim de evitar, até, que esse “contato” visual possa ser entendido com desconfiança ? Se o país mantém recordes de mortes violentas – 137 por dia !!! -, tal precaução pode significar, porque não, a sobrevivência. O malfeitor reconhecido fica na fronteira de se tornar o algoz imediato ou posterior devido à simples troca de olhares.
A rua é o lugar mais rotineiro para encontrar o inusitado. Repetitivo, mas nunca igual. Cruzar durante os treinamentos pelas vias públicas com personagens que praticam caminhada ou corrida é outra constante prazerosa. Uns são cordiais, outros, apesar de anos em prática idêntica, preferem o silêncio e a ausência de qualquer contato. Estou também a me lembrar de uma jovem sorumbática, mas bonita, que caminha em torno de local onde costumo treinar. Anos cruzando os mesmos trajetos. Jamais um cumprimento, tampouco um olhar. Certo dia estava a correr, mas esquecera o relógio. Ao passar pela rapariga pedi-lhe gentilmente as horas, pois tinha apontamento após os exercícios. Assustada, dirigiu-me palavras ininteligíveis e quem ficou aturdido fui eu. Elson Otake, que corria em outro ritmo, ao encontrar-se com o amigo ao final dos treinos ininterruptos de ambos, ao saber do ocorrido, disse-me a sorrir: “Há aqueles cordiais, outros silenciosos, mas também existem vespas. Não nos aproximemos delas”. Continuo a encontrar a jovem. Se me vê a longa distância, a depender de meu posicionamento, passa da rua para a calçada, ou vice-versa. Cotidiano. Todavia, no andar ou no correr, há aqueles concentrados e constantes no mesmo propósito; os simpáticos, mas apenas “protocolares”; os efusivos que nasceram da empatia, todos permanentemente em nossos caminhos. Plínio Marcos tinha sábia razão, pois nossa cidade-bairro é o porto do entendimento. Que assim continue, pois outros olhares também já observaram que o peso dos anos me atinge. Felizmente faz parte de nossa passagem pela Terra. Inexoravelmente.