Comentários Pertinentes e Diferenciados
Dites, qu’avez-vous vu ?
Charles Baudelaire
O post anterior rendeu muitos comentários. Alguns bem incisivos e breves, atestando o interesse que o tema provocou. O próximo que pode, eventualmente, ser abissalmente distante, aquele cordial, mas a ter uma barreira de difícil acesso, ou o falante, comunicativo, que adora a conversa descontraída, rigorosamente cotidiana, mas que mantém acesa a flama da ligação entre as pessoas. Há igualmente o solidário que, a qualquer acidente casual, um tropeço, a dificuldade de locomoção, o desnorteamento diante do mapa do bairro, lá está para prontamente prestar ajuda. E não nos esqueçamos de Sisuphos, de tantos posts anteriores. Continua sua sina implacável. Pedro, o andarilho, este nunca mais foi visto no entorno. Teria encontrado, finalmente, sua cadência.
Dos e-mails recebidos selecionei três bem distintos, que focalizam desde o contato com a rua e seus personagens, numa busca de integração com o menos afortunado, à visão clara desse silêncio quase total que se mantém, mormente em uma cidade grande. Belo Horizonte, Paris e Lisboa são os centros em que se passam histórias de três de nossos leitores, já conhecidos através de outros posts.
A juíza do trabalho e professora universitária Mônica Sette Lopes narra suas experiências cotidianas frente aos personagens das ruas vizinhas, ela que, em texto anexo encaminhado com o e-mail a comentar o post em questão, escreveria “amando o ouvido da rua, a conversa da rua, a frase solta da rua. Percebendo no rosto dos que cruzam a rua parte de nós mesmos, um entre nós, com essa eticidade absoluta na diferença e na pluralidade, que só tem sentido no e para o outro”.
Escreve Mônica Sette Lopes: “Prezado José Eduardo, já disse que fui atraída ao seu blog pelos textos sobre a rua no meio daqueles sobre música, porque também me sinto da rua totalmente. Tenho amigos vários – a mendiga magra, magra, de voz forte, que me espera para a conversa na porta da padaria, a mulher que perdeu o Zé, que era cachorrinho da mesma raça do meu Tucho, o velhinho que passeia com duas cachorrinhas, o catador de papel, também com seus dois cachorros, Rex e Diana, e uma dignidade absurda de grande, os lixeiros que se reúnem e conversam num intervalo do trabalho. Bom, vá lá. Passear com o Tutu é meio de contato e de diálogo na igualdade. Mas tem também o taxista que largou o violão pelo teclado e outro dia veio quase correndo contar que está tocando o Brasileirinho, de Waldir Azevedo, mesmo com as dificuldades da mão de direita; tem o outro que sumiu porque a vizinha de frente implicou com a altura de sua voz grossa e me falou isto quase chorando quando reclamei da saudade dele. E, como vc disse, é muito arriscado nós não nos vermos no outro da rua, não nos vermos com ele. Ontem fui levar a Lys para vacinar (a cachorrinha) e na antesala havia uma jovem que puxou conversa e queria que eu fizesse a pergunta: O que tem o seu cachorro que está internado? O cachorro dela foi envenenado pelo vizinho, que jogou chumbinho por cima do muro. Ela fora visitá-lo e, preocupada porque ele não estava conseguindo apoiar-se nas patas, estava com medo de ter que sacrificá-lo. Quando o trouxeram, fiquei pensando se o tal vizinho conseguiria apreender o sentido da reação do cachorrinho. Tão triste. Deitado, com o colar elisabetano que o protegia na recuperação, ao vê-la mexeu a cabeça e o rabo violentamente, buscando o reconhecimento dela e demonstrando o seu. Reflexo, dirão, interesse, dirão, mas foi tão lindamente relacional aquilo, tão sentida a alegria do encontro de ambos, ainda que nela doesse a consciência de saber o que poderia vir, o sacrifício dele. Se não me vir potencialmente neste homem que tem a coragem de jogar o chumbinho (e que não enxerga nada na rua) e na menina que foi abraçar o cãozinho, estarei vivendo fora dos riscos da vida e daquilo em que posso me transformar. Por isto, paro e vou andar com meu Tutu, que dorme de barriga para cima na cama” !!!
O compositor francês François Servenière lê meus blogs através de um tradutor on-line e teceu comentários que indicam uma realidade outra, mas que, na essência, envolve o homem e a problemática frente ao seu semelhante.
“ Compreendo bem o que você vive e descreve por ter vivido muito tempo em Paris, onde cruzamos todos os dias com figuras desconhecidas, mas que revemos cotidianamente durante longos períodos. Uma expressão francesa reza que ‘cada um é uma ilha’, a demonstrar bem o isolamento que nosso cérebro sofre nessa turbulência da vida citadina e de nossa obrigação de nos protegermos, permanecendo enclausurados em nossa próprio pensar. Tem graça, pois ao me tornar parisiense, vindo da província, onde se diz bom dia a todos da rua, vi-me no metrô a continuar a saudar a todos, por polidez. Rapidamente me dei conta, pois ninguém me respondia. Nas grandes cidades, nós nos aglomeramos, pois há concentração bem mais acentuada de pessoas que se assemelham ou têm os mesmos interesses que os teus, mormente nos métiers artísticos característicos das urbes maiores. Nesses centros, somos estranhos também a tantas pessoas, e podemos fazer os mesmos trajetos numa linha de metrô, no mesmo horário, sem encontrar sequer os mesmos rostos… A cidade grande é dura para as relações humanas, mesmo que um quadro tão melhor não seja visto nos centros menores. Há que se convir que, nos grandes centros, a indiferença ajuda-nos a sobreviver, e permite também uma existência diferente, sobretudo quando não professamos ideais comuns e padronizados. Ademais, não teremos tempo suficiente durante uma vida para interessar-nos por todos, e a seleção se faz através de polos de interesse, de profissões, de meio social… Seria possível entender que a mesma situação mental se estabeleça na cabeça dos outros, como escreve você no final de seu post. Na Paris, em determinados dias, tenho vontade de sorrir para todos aqueles com que cruzo nas ruas, e isso funciona! As pessoas se desenrugam e o gêlo se esvai. Todavia, essa situação pressupõe esforços impossíveis de serem mantidos durante muito tempo. Sob aspecto outro, quão não são as vezes que em transporte coletivo nos fechamos em nossa concha como as ostras o fazem? Fazemos o mesmo quando estamos em nosso carro particular, a carregar nosso microcosmo individual, familiar, numa bolha fechada ao próximo, com nossos critérios, nossas músicas, nossos ambientes. É de se verificar que nos transportes coletivos em Paris, Londres, Tóquio ou Nova York, o que se vê é o cidadão a digitar freneticamente ao celular, a fim de enviar SMS ou então para jogar joguinhos à disposição do usuário desses aparelhos… Novas conquistas para enclausurar e para… evitar os outros! A tecnologia isola e o desenho de seu amigo Luca Vitali é claro ao captar você a correr em seu treinamento diante de pessoas com cabeças de tela de computador… Foi muito bem pensado…
Idalete Giga, especialista em canto gregoriano, amizade que vem de completar 30 anos, pensa no amálgama e sua expressão musical não descarta a criação do poema:
Depois de ler o texto do seu último post, ” Personagens das Ruas Vizinhas” (que achei autêntica prosa poética), e observar Os Antenados (desenho genial do seu amigo Luca), escrevi o seguinte poema (que é mais seu do que meu ou, se quiser, é nosso, sem quantificações!) :
Os Antenados – entes abissais
Habitantes de bairro
em louco ostinato
caminhar diário
Vendam os olhos
Não querem ver
Trancam o coração
onde o Amor secou
de solidão
Aprisionam a voz
matando
a flor-dos-lábios
São mortos-vivos
fantasmas
vazios
perdidos
que passam por nós
( I. Giga e José Eduardo )
12/Abril/2011
Outros leitores se posicionaram quase que em uníssono à realidade contida no post. Agradeço a constante atenção dos frequentadores de meu blog. Cruzamos com as pessoas, infimamente a saber algo do próximo. Apenas cruzamos. Mudanças de comportamento nesse mundo cada vez mais padronizado com seus rótulos pré-fixados. Não teria razão Jean-Paul Sartre quando afirma que a melhor maneira de ser diferente é ser como todo mundo?