Navegando Posts publicados em maio, 2011

Sylvain Tesson

 A memória a socorrer a solidão.
Sylvain Tesson

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Antonio Machado

 

Termos podem ter significados os mais díspares, a depender das interpretações que lhe são dadas pelos povos. Muitos chegam a constranger o estrangeiro ao pronunciá-los sem saber exatamente a aplicação de determinada palavra. “Vagabundo”, para a língua portuguesa, contém carga definida e, mesmo quando aplicado metaforicamente, o destino é preciso. Vagabond, em francês, tem conotação sem esse viés pejorativo. Um vagabond pode ser andarilho,  errante,  nômade… Quando a aceitação do termo pelo vagabond é consciente, o vagar pode ser a busca de experiências inusitadas ou até fuga da identidade. Há, pois, nuanças que devem ser compreendidas.

No início de Fevereiro fui a uma livraria em Paris e um livro chamou-me a atenção. Tratava-se do Petit traité sur l’immensité du monde, de Sylvain Tesson (France, Éditions des Équateurs, 2005). Entusiasmou-me tanto que voltei à loja e adquiri outros livros do autor.    

Sylvain Tesson nasceu em 1972. Geógrafo, aventureiro, jornalista e escritor, percorreu longos espaços do planeta a procura de conhecimento. Fugiu da agitação dos centros urbanos e foi em busca do silêncio, da solidão, do frio e dos espaços abertos e quase despovoados da natureza. Figura singular, deixou testemunhos preciosos em livros que encontram grande divulgação. Se a aventura é foco da narrativa, rara a página que não contenha frases inusitadas a serem guardadas.

Alguns conceitos do autor, vagabond confesso, mereceriam retenção. As infindáveis caminhadas empreendidas, as ascensões às cumeeiras de catedrais nas cidades, como uma outra maneira de fugir à agitação, as dormidas em topos de árvores nos parques fizeram de Sylvain Tesson um errante, andarilho, humano a buscar a paz interior não encontrada nas urbes. Todavia, os longos trajetos que o levaram a conhecer parte considerável do planeta foram quase sempre feitos a pé. “A lentidão revela as coisas escondidas pela velocidade”, afirma. Tem conceitos sobre o vagabond, esse ser caminhante contumaz dotado do arguto dom da observação: “Ele não quer de forma alguma mudar o mundo que o cerca, mas sim conseguir dele fugir o mais esteticamente possível”. Munido de cajado, chapéu, mochila e flauta, Sylvain Tesson percorre e escreve. Acredita ser a geografia a mais bela das disciplinas, pois faz convergir para a área as outras ciências. Seu conceito sobre o humanismo deve ser registrado, entendendo-o como “reflexo de defesa corporativa, espécie de sindicalismo biológico destinado a proteger a espécie à qual pertencemos no intuito de preservar prerrogativas”.

Às caminhadas intermináveis pelo planeta com todas as implicações pertinentes, Tesson somaria duas outras disposições, estas, citadinas. Subir externamente às cumeeiras das catedrais, igrejas, edifícios, lá permanecer por bom tempo e entrar em contemplação à noite, não apenas sentindo a cidade, mas também a rememorar a história. Fugir da agitação das ruas. Pedras milenares, tetos insondáveis povoados por corujas e alguns gatos.

O aventureiro-escritor, nessa necessidade de solidão, buscaria inúmeras vezes passar a noite em topos de árvores de parques espalhados pelas cidades e estradas. Ouvir o canto dos pássaros em seus habitats, mas bem abaixo, ver o amanhecer, sentir a distância, estar incógnito. Aponta os perigos dessa empreitada, mas exalta a árvore como necessidade absoluta a ser preservada. Uma de suas frases se aplica, infelizmente, por inteiro à realidade brasileira “O machado sempre teve a última palavra na história dos homens”. Ou a de François-René Chateaubriand (1768-1848), mencionada por Tesson: “As florestas precedem os homens e os desertos os sucedem”.

 

 

Em outra aventura hors série, Sylvain Tesson realiza uma proeza extraordinária (L’Axe du Loup – De la Sibérie à l’Inde, sur le pas des évadés du Goulag. Paris, Robert Laffont, 2004). A leitura do célebre livro À marche forcée, do polonês Slavomir Rawicz, na tradução francesa, despertou a curiosidade de Tesson. Rawicz narra sua fuga de um Gulag na Sibéria, a 650km do Círculo Polar Ártico, com destino à India.

Os Gulags eram os campos de trabalhos forçados da antiga União Soviética. Alexander Solzhenitzyn, prêmio Nobel de literatura, revelaria as agruras desses campos em Arquipélago Gulag. Preso pela NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos) em 1939, Rawicz conseguiria fugir em 1941 com mais seis companheiros. Uma jovem polonesa se juntaria ao grupo. Segundo o relato, teriam realizado o percurso de mais de 6.000km da Sibéria à India, contornando o lago Baikal, atravessando a Mongólia e o deserto de Gobi e mais a cadeia do Himalaia antes de descerem para a India. Quatro não resistiram a longa marcha, três perecendo no deserto e um nas montanhas tibetanas, inclusive a jovem de 17 anos.

Sylvain Tesson se apaixona pela narrativa de Rawicz, apesar de conhecer imensa crítica a desacreditar À marche forcée como redigido por visionário. Relatos não coincidiriam com a realidade, segundo os detratores. Tesson realiza o longo trajeto em oito meses, entre Maio e Dezembro no início do século XXI. Viaja de Paris a Moscou de comboio e, após, segue pela célebre Transsiberiana da capital russa até Nieroungel. Destaca a beleza e a monotonia de uma estrada sem fim aparente, pois quase toda em linha reta a atravessar taigas e estepes. A seguir vai a Iakoutsk. Depois de aclimatação e recolhimento de dados precisos e depoimentos nessa cidade ao norte da Sibéria, começa a longa marcha que será feita a pé, de bicicleta e a cavalo. Somente na India, de Calcutá a Bombaim, realiza o trajeto de moto (o leitor, ao clicar sobre o mapa abaixo, terá a imagem aumentada e, clicando  uma segunda vez, verá com clareza o longo trajeto empreendido pelo autor).

 

 

O relato é fascinante. Não poucas vezes Sylvain Tesson traça o perfil de figuras humanas que cruzaram o seu caminho pragmático. Nomeia-os. Torna-se cúmplice fugaz. O leitor se prende às características distintas de russos siberianos em pequenas cidades ou isolados em cabanas, suas vidas e preocupações, a caça e a pesca, a vodka inseparável; entende o nomadismo na Mongólia e seus habitantes enfrentando adversidades; o terrível deserto de Gobi, no qual ninguém se atreve sem conhecer os poços existentes e distantes dezenas de quilômetros um do outro (um link abaixo mostra Tesson a cavalgar lentamente na desolação do solo desértico); penetra no Tibete. A constatação da triste realidade atual do antigo reino tibetano, hoje pertencente à China, após invasão, leva-o a duras críticas àquilo que ele denomina “exército maldito”, pois a submeter milhares de trabalhadores munidos de picaretas na construção de linha ferroviária “digna de Dante”, unindo Golmud a Lhasa. Observa igualmente a triste dicotomia causada pelos soldados chineses e o povo pacífico da região ora dominada. “Encontro dois tipos de homens: monges semiloucos que esperam a morte olhando o céu; soldados doentios que passam suas vidas examinando papéis”. Percorre os contrafortes do Himalaia, chega a Lhasa da aura perdida, desce para a India, a tentar entender multidões e multidões. Em todo o longo percurso sempre foi acolhido pelos habitantes das regiões. A contrapor, faz aguda crítica às portas fechadas das representações consulares francesas: “os funcionários diplomáticos da República tem horror dos vagabonds…”  

O extenso caminho tem seus perigos, certas dificuldades nas fronteiras, água,  mantimentos. Em outro contexto de tensão, ursos e lobos siberianos podem estar à espreita, assim como elefantes selvagens e tigres na India. Observa que “o homem faz sempre transparecer o medo dos animais que ele dizima”. Aprende em cada região aquilo que serve à subsistência, desde os peixes defumados da Sibéria à tsampa pré-misturada com açúcar do Tibete ou ainda os queijos desidratados da cadeia himalaia.

De interesse acompanhar os percalços de Sylvain Tesson, pois não poucas vezes teve de atravessar a nado riachos gélidos e enfrentar temperaturas hostís. O fascínio pelo lago Baikal, na Sibéria, que se estende por mais de 600km, é decisivo a tal ponto que, em outra época, ficará seis meses numa diminuta cabana, a buscar silêncio, solidão, meditação e paz interior para seus relatos e experiências, que seriam traduzidos em livros.

No final da longa trajetória não encontra na India qualquer traço documental sobre a passagem de Slavomir Rawicz. Encerra seu relato com um grito de liberdade “O essencial é compreender que o fugitivo político é necessário para a História. Ele prova que nenhum cárcere é intransponível, que há sempre uma falha nas muralhas, que nenhum carrasco está seguro de encontrar seu prisioneiro na aurora, que o poste de execução fica por vezes faminto, que nenhuma ideologia conseguirá jamais acorrentar alguém e que nenhum cão feroz comprometido com essa ideologia será capaz de impedir o homem de partir em busca da Liberdade, esse pão da alma, tão necessário à vida como o pão do ventre”.

Tardiamente, após a leitura de L’Axe du Loup, soube do filme Caminho da Liberdade dirigido por Peter Weir e tendo como roteirista Keith R. Clark. O ótimo Ed Harris e mais Colin Farrel e Saiorse Ronan são os principais atores da saga narrada por Slavomir Rawicz e vertida recententemente para o cinema.

Clique aqui para assistir Sylvain Tesson em pleno Deserto de Gobi.

 An appreciation of two books written by the French geographer, journalist and adventurer Sylvain Tesson, who spends his life touring the globe by bicycle, on foot and on horseback and records his experiences in travelogues describing his encounters with different cultures and characters while exploring beautiful, remote and hostile lands.

 



Ives Gandra da Silva Martins

 

O verso errado é um delito.
Guerra Junqueiro

 A Poesia é a amada filha da Música…
Idalete Giga

O ano de 2010 marcou o aparecimento de quatro livros de sonetos do ilustre jurista Ives Gandra da Silva Martins (Meu Diário em Sonetos. São Paulo, Pax Spes, 2010, 4 volumes). A singularidade da obra reside no aspecto sequencial ininterrupto, pois o tributarista não deixou um só dia do ano de registrar um soneto em diário que lhe foi presenteado.

A facilidade pode ter várias causas, desde a natural predisposição, como também a prática sistemática. No caso de meu querido irmão Ives, esse último atributo vem da adolescência. Habituado à leitura dos poetas de todos os tempos, reunindo-se com outros jovens cultores da poesia, Ives serviu-se da métrica e da rima como discurso rotineiro e correto, e fazer poemas ou sonetos tornou-se prática natural. Não estaria neste espaço a tecer juízo de valor devido à ligação sanguínea que certamente influencia qualquer posicionamento. Contudo, ao generoso leitor diria que o emprego contínuo da fórmula “matemática” da colocação das palavras propicia ao cultor da poesia manter caudaloso dicionário mental de rimas que, ao ser acionado pelo impulso da escrita, lá estará a oferecer ao vate a terminação precisa, após a assimilada divisão silábica. Frise-se que na música, quando da feitura de formas tradicionais, todo um acervo de medidas, como as disposições do contraponto e da harmonia já integra a mente do compositor. Em ambos os casos, na poesia ou na música, será a qualidade do autor que determinará a perenidade da criação, e nesse item a história é implacável.

Na nossa juventude, era Ives que, a atender apelos dos irmãos quando algum namorico despontava, escrevia os sonetos. Indagava-nos sobre o tipo físico e a índole da namoradinha e imediatamente surgia o poema. A nós, apenas copiar aqueles versos “encomendados”. Ives era repentino e causava-me admiração a rapidez com que escrevia, sem falhas. Bons momentos que ora rememoro.

O derivativo do grande jurista sempre foi a poesia e são inúmeros os seus livros de versos. Nesses quatro, publicados a cada trimestre de 2010, Ives trata dos temas do cotidiano: o olhar a vida, efemérides que lhe são caras, a lembrança de uma amizade, os sofrimentos perante às delicadas intervenções cirúrgicas a que se submeteu e, a imperar, sua esposa Ruth, verdadeira inspiradora de quantidade expressiva nessa imensa coletânea e em outras igualmente. Lembrar-se-á do aniversário da morte de nosso saudoso pai, 19 de Maio, e em dia preciso escreve: Há dez anos meu pai deixava o mundo,/ Em que por mais de um século viveu./ Inda conservo em mim o olhar profundo,/ Que me dizia bem qu’eu era seu.// Trabalhou desde cedo sem parar/ E foi autodidata no que fez./ Atravessou, um dia, o largo mar/ P’ro Brasil não deixar nenhuma vez.// Casou com minha mãe a quem queria/ Co’amor que de modelo me serviu./ Declarava-lhe o amor a todo dia,/ Mesmo quando mamãe se fez senil.// Quanto dos dois saudades hoje tenho,/ Num querer que por eles bem mantenho.   

Todas as tendências que transformaram a arte da poesia nas fronteiras da segunda metade do século XX não desviaram a atenção de Ives. Permaneceu amante da métrica e da rima. Essa fidelidade é consciente, pois priva da amizade de grandes poetas, que professam formas do modernismo à total decomposição métrica e da palavra. Virtude ecumênica do irmão que o levaria um dia à Presidência da Academia Paulista de Letras.

A imensa respeitabilidade que Ives adquiriu através da competência de seus pareceres,  traduzida em mais de uma centena de livros jurídicos, não foi suficiente para – inconsciente pulsante -, afastar  o desalento. Estará explícito em tantos sonetos da coleção em que a morte, a dor, o envelhecimento se apresentam como temática. Não seria pelo fato de, qual pregador no deserto, ter defendido com vigor todas as causas que denunciavam a corrupção e a ganância, o despudor, a deterioração dos costumes, a máquina estatal paquidérmica, os tributos em ascensão permanente, os atos governamentais tantas vezes descabidos, a mentira sem rubor? Tal D. Quixote, Ives encontrou seus  moinhos de vento e ideais que se estiolaram pela ação predadora de gerações não humanistas são expressos, após filtração em sua mente, de maneira clara, sem subterfúgios, poeticamente. Sabe ele que a insensibilidade está geometricamente a alterar o mundo de maneira avassaladora. O homem materialista a desconhecer o próximo mais próximo. Mas há que lutar. E Ives guerreia em artigos antológicos a denunciar infâmias, desvirtuamentos, descalabros. Seria impensável todos esses aspectos de um batalhador não vazarem para o verso. O pensar transparente do Ives jurista a transmitir para o Ives amante da poesia o amargo sabor do impossível.

Quando o irmão falou-me do “diário”, imediatamente mencionei meu dileto amigo, o excelente artista plástico Luca Vitali. Disse-lhe que, ao encontrá-lo, leio o blog a ser publicado, cuja cópia se encontra em meu bolso. À mente privilegiada do artista nada escapa e, como já mencionei  em posts anteriores, Luca ouve, a desenhar mentalmente. Horas depois ou no dia seguinte recebo o brinde que me encanta, sua interpretação em desenho do que ouviu, geralmente em charges jocosas ou irônicas, a posicionar o amigo músico no epicentro da narrativa literário-pictórica. Ives aceitou de pronto a proposta e Luca recebia, ao fim de cada trimestre, a coleção pertinente. Selecionava os sonetos que mais lhe diziam e, numa concepção diametralmente distinta daquela destinada às ilustrações de meu blog, revelou a faceta sensível, humana e despojada que caracteriza o grande artista.

Meu Diário em Sonetos é, pois, um marco na vida de meu irmão advogado, professor e poeta. Continua sua senda a interpretar os densos códigos jurídicos e a poesia etérea. A pena, que redige pareceres que estabelecem jurisprudência neste país de contrastes, sabe ter suavidade para destilar métrica e rima. Nesse percurso singular, uma verdade, a admiração de todos os que têm o privilégio de conhecê-lo.

O poeta de São Paulo,  o vocacionado Paulo Bonfim, escreve à guisa de introdução:

Para Ives

Meu diário de sonetos:
A caminhada de um místico
Sob a luz de seus quartetos,
O amor palpitando em dístico.

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Last year marked the publication of 4 books of sonnets written by my dear brother and great jurist Ives Gandra Martins. Following conventional rhyme schemes, he talks about everyday life, dates that are important to him, friendship, the suffering with the many surgeries he underwent and, above all, his love for his wife. The uniqueness of the work lies in its unbroken sequence, since the author wrote a poem for each day of the year, each one with a particular mood. Illustrations by the gifted artist Luca Vitali enrich the books, adding another level of interest to the reading.   

 

A Mulher Brasileira e seus Textos sobre Música

Finalement, il faut y insister, le XXe siècle signe, avec la scolarisation massive des filles,
l’accès des femmes à la parole théorique, littéraire et artistique,
et cette appropriation de la culture n’as pas encore produit tous ses effects.
Françoise Thébaud

Em reiterados posts tenho-me debruçado sobre dissertações e teses, aceitando integrar júris no Brasil e no Exterior somente ao verificar tratar-se de trabalho acadêmico original e profundamente estudado, assim também, como premissa, saber quem orienta. Não poucas vezes insisti que de um bom orientador pode-se esperar majoritariamente dissertações e teses consistentes, pois este saberá assistir, ler e estar atento inteiramente às tentativas e aos acertos do orientando. Em contrapartida,  um mau orientador “gerará” trabalhos plenos de equívocos. Há casos em que o “orientando”  está tão acima do mau orientador que o ajuste da bússola dependerá unicamente do candidato. Hélas, pululam maus orientadores por esse imenso país, mercê das avaliações burocráticas universitárias e dos institutos de fomento que glorificam a quantidade sem penetrar no âmago das obras produzidas pelos docentes. Currículos que estariam a demonstrar, em tantos casos, a competência apenas aparente.

Ao aceitar a participação no júri que deveria julgar a tese de doutorado da professora Susana Cecília Almeida Igayara-Souza, já partia do pressuposto que não permite o tergiversar. Admiro trabalhos anteriores da professora, a segurança como coralista e regente coral, a  capacidade como musicóloga e o devotamento pleno à causa musical. Integrei o júri que analisou sua dissertação de mestrado, a versar sobre a extraordinária Missa de Requiem, de Henrique Oswald. Sua orientadora no doutorado, a professora Cynthia Pereira de Sousa, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, apresenta currículo real e é considerada nos meios acadêmicos.

A singularidade da tese já está expressa no título: Entre palcos e páginas: a produção escrita por mulheres sobre música na história da educação musical no Brasil (1907-1958). Entende-se, pois, ter a professora Susana escolhido a Unidade de Educação da USP.

Curiosamente, na pintura, figuras como Georgina de Albuquerque (1885-1962), Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973) tiveram suas criações respeitadas e ombreadas àquelas produzidas por pintores renomados brasileiros. Mesmo nessa seara, dois exemplos de pressão da sociedade que entendia a criação como domínio masculino estariam a demonstrar submissão da mulher criativa, ou sob o peso do magister, no caso de Auguste Rodin (1840-1917) e Camille Claudel (1864-1943) em França, ou sob a égide da ideologia camuflada em estética, protagonizada por Monteiro Lobato e Anita Malfatti. Ambas sofreriam perenes sequelas.

Se considerarmos que em 1849 o Brasil se tornaria o terceiro maior importador de partituras da França, músicas essas destinadas à prática doméstica ou aos salões, muitas delas transcrições de obras em voga na Europa; se entendido for o país como também forte  importador  de pianos; se a realidade mostraria ser a mulher a prioritária “pianista” familiar, sendo a prática um dos atributos da boa educação, não seria difícil apreender que, no momento em que uma consciência de liberação feminina surgiu, no campo da música ela se destinasse à transferência de prática até certo ponto caseira - experiência viva -, para textos ou livros em que mulheres corajosas depositaram seus conhecimentos e seus aprofundamentos, que já se faziam sentir. Paradoxalmente, movidas por motivos tantos, a área composicional permaneceria, no campo da música erudita, de concerto ou clássica reservada aos homens. Se exemplos existiram da presença de mulher compositora de méritos no século XX, eles foram raríssimos.   

Preliminarmente louve-se Susana Igayara por ter buscado na área musical segmento que poderia ser considerado árido se comparado à composição. Digno da tese e de tantos outros registros essa forte tendência da mulher de voltar-se aos estudos da educação musical em suas várias divisões no período que se estende de 1907 a 1958. Quais não foram os percalços a fim de que a mulher conseguisse sair de uma experiência pianística majoritariamente amadora para esses descortinos que a levaram à necessidade de transmitir o conhecimento, de aprofundar-se em pesquisas que se mostravam nebulosas? Como bem salientou Susana Igayara em sua competente sustentação, à mulher era vetada até  a presença nas orquestras no início do século XX, pois determinados instrumentos não eram considerados pertinentes à sua condição. Sobre outra égide, a mulher prioritariamente buscava o estudo da área musical no ensino superior. Através do Recenseamento Geral de 1940, de 9.650 mulheres com curso superior, seria a Música a ostentar primazia, pois 2.648 se formaram. A seguir vem a área da Farmácia, com 1.841, e Odontologia, a formar 1.225. Curiosamente, apenas 456 homens estariam formados no segmento da Música, segundo o Censo. Essa realidade corrobora a edificação do pensar de Susana Igayara.

Em sua tese, a autora apresenta diversas categorias de textos ou livros sobre música escritos por mulheres. Esses livros teriam como temática a escolarização; o ensino especializado; a formação técnica; a qualificação cultural e artística; a divulgação. A partir dessas várias opções Susana constrói com segurança o seu trabalho acadêmico e figuras que ficaram esquecidas no turbilhão da história emergem e nos causam admiração pela abrangência com que desenvolveram seus escritos naquela primeira metade do século XX. Ao debruçar-se sobre a professora Alexina de Magalhães Pinto, revela-nos o olhar arguto da personagem, que encontraria nas canções de crianças e do folguedo popular e no folclore rico do país farto material a ser tratado literariamente. Alexina tem a chama do pioneirismo. Susana Igayara estuda Amélia Rezende Martins, imbuída da cultura européia, pois oriunda de família aristocrática e voltada à musica. Um de seus livros, apesar de nítida releitura das obras sobre Beethoven de Romain Rolland, lega  uma apreensão do compositor inédita no Brasil. Sua filha, Maria Amélia, foi professora e excelente pianista.

A primeira metade do século XX assiste ao desabrochar desse olhar atento à educação musical de jovens, assim como um cuidado especial ao repertório. Se a França continuaria a ser um espelho, mormente nos primeiros decênios, frise-se o debruçar sobre o nosso cancioneiro popular e o rico folclore pátrio. Emerge a figura de Heitor Villa-Lobos, que estará a frente de tantas decisões educacionais do Estado. A mulher terá participação decisiva, a atuar como professora, e a denominada normalista seria referência nessa transmissão. Nomei-se o Canto Orfeônico, que seria fundamental a esse aprendizado coletivo, e grupos ou mesmo massa de participantes davam, inclusive, o viés ideológico claro no Estado Novo. Como sempre à testa, como mentor institucional, Villa-Lobos. Susana Igayara observa bem essa “missão” atribuída ao autor das Bachianas. Canto Orfeônico e Canto Coral, temas relevantes que a autora soube bem distinguir, a evidenciar, por vezes, a vontade no período de os ter como quase sinônimos.

Duas figuras emblemáticas são estudadas nesse mister voltado à formação de professores e à condição da mulher a lecionar: Leonila Beuttenmüller e Ceição de Barros Barreto. Autoras de livros publicados no final da década de 30, apresentavam características bem definidas, a primeira ainda a guardar uma tradição onde não faltaria até envolvimento “onírico”, a segunda já a apontar para caminhos que mais acentuadamente conduziriam aos trabalhos acadêmicos, hoje essenciais. Acompanhar embates de Ceição de Barros Barreto com a hierarquia da Instituição é verificar prática que apenas se propagaria posteriormente. Frise-se a produção literária musical da professora, que se estenderia de 1930 a 1950.

A presença do Palco reservado à mulher artista é devidamente estudada. Em sendo o piano o instrumento referencial desde meados do século XIX, dedilhado preferencialmente por mulheres, tornar-se-ia evidente que as três extraordinárias pianistas que ocuparam a atenção no Brasil e no Exterior pertencessem a essa majoritária faixa de praticantes. Antonieta Rudge (1886-1974), Magdalena Tagliaferro (1893-1986) e Guiomar Novaes (1896-1979) encantaram com suas interpretações de altíssimo nível platéias pelo mundo. Registros fonográficos evidenciam a qualidade das três expoentes da arte do piano. Contudo, Susana Igayara detém-se igualmente na arte do canto, com figuras como a excelsa cantora Bidu Sayão (1902-1999) e as notáveis Vera Janacopoulus (1892-1955) e Madalena Lebeis (1912-1984). Menção a Cleofe Person de Matos (1913-2002), regente coral, professora e musicóloga, assim como a tantas outras intérpretes de mérito, a ratificar, em sua tese, o multidirecionamento e a importância da mulher na música brasileira.

Três pianistas que se dedicariam ao texto como veículo maior de suas intenções são apresentadas por Susana Igayara. Victoria Serva Pimenta, aluna de Luigi Chiafarelli, sistematiza em livro  o seu método de ensino; Sofia Melo Oliveira publicaria uma quantidade de textos, a evidenciar o papel preferencial da análise para o conhecimento amplo musical; Iza de Queiroz Santos é autora de obras que ainda hoje são referências, caso específico de Origem e Evolução da Música em Portugal e sua Influência no Brasil (1942).

A tese não deixa de considerar algumas biografias escritas por mulheres sobre personalidades da música brasileira: Iza Queiroz sobre Francisco Braga, Leozinha de Almeida sobre Henrique Oswald. Outros relatos biográficos são mencionados. Durante minha arguição, ponderei a problemática da biografia escrita por admiradoras confessas de músicos estudados, mormente se houve relacionamento musical intenso professor-aluna, compositor-intérprete. Quando escritos sur le tard, esses trabalhos podem adquirir a aura fantasista e dados correriam o risco de ser contestados à luz da evidência. Seria também o caso da legendária pianista francesa Marguerite Long ao escrever, em três livros, suas relações pianísticas com Fauré, Debussy e Ravel.

A tese de Susana Igayara será doravante referencial, pois à quantidade de documentação apresentada soma-se a alta competência vocacionada da autora. Esperemos, que após devidas adaptações visando à publicação destinada a músicos e ao leitor menos especializado, o significativo estudo de Susana Igayara seja essencial para próximos debruçamentos sobre a matéria, que resultarão em novas dissertações e teses, a sedimentar a importância da mulher na cultura musical brasileira no século XX.

A banca examinadora, presidida pela Profª Drª Cynthia Pereira de Sousa, da Faculdade de Educação da USP, teve a participação dos professores-doutores Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (F. de Educação-USP), Anibal Francisco Alves Bragança (Universidade Federal Fluminense), Maura Lucia Fernandes Penna (Universidade Federal da Paraíba) e este, aposentado da Universidade de São Paulo.     

Comments on the PhD thesis defended by Susana Igayara at Universidade de São Paulo. It is a historical study that aims to situate and analyze the written production of women about music, related to several educational contexts in Brazil, during the first five decades of the 20th century.