Sylvain Tesson

 A memória a socorrer a solidão.
Sylvain Tesson

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Antonio Machado

 

Termos podem ter significados os mais díspares, a depender das interpretações que lhe são dadas pelos povos. Muitos chegam a constranger o estrangeiro ao pronunciá-los sem saber exatamente a aplicação de determinada palavra. “Vagabundo”, para a língua portuguesa, contém carga definida e, mesmo quando aplicado metaforicamente, o destino é preciso. Vagabond, em francês, tem conotação sem esse viés pejorativo. Um vagabond pode ser andarilho,  errante,  nômade… Quando a aceitação do termo pelo vagabond é consciente, o vagar pode ser a busca de experiências inusitadas ou até fuga da identidade. Há, pois, nuanças que devem ser compreendidas.

No início de Fevereiro fui a uma livraria em Paris e um livro chamou-me a atenção. Tratava-se do Petit traité sur l’immensité du monde, de Sylvain Tesson (France, Éditions des Équateurs, 2005). Entusiasmou-me tanto que voltei à loja e adquiri outros livros do autor.    

Sylvain Tesson nasceu em 1972. Geógrafo, aventureiro, jornalista e escritor, percorreu longos espaços do planeta a procura de conhecimento. Fugiu da agitação dos centros urbanos e foi em busca do silêncio, da solidão, do frio e dos espaços abertos e quase despovoados da natureza. Figura singular, deixou testemunhos preciosos em livros que encontram grande divulgação. Se a aventura é foco da narrativa, rara a página que não contenha frases inusitadas a serem guardadas.

Alguns conceitos do autor, vagabond confesso, mereceriam retenção. As infindáveis caminhadas empreendidas, as ascensões às cumeeiras de catedrais nas cidades, como uma outra maneira de fugir à agitação, as dormidas em topos de árvores nos parques fizeram de Sylvain Tesson um errante, andarilho, humano a buscar a paz interior não encontrada nas urbes. Todavia, os longos trajetos que o levaram a conhecer parte considerável do planeta foram quase sempre feitos a pé. “A lentidão revela as coisas escondidas pela velocidade”, afirma. Tem conceitos sobre o vagabond, esse ser caminhante contumaz dotado do arguto dom da observação: “Ele não quer de forma alguma mudar o mundo que o cerca, mas sim conseguir dele fugir o mais esteticamente possível”. Munido de cajado, chapéu, mochila e flauta, Sylvain Tesson percorre e escreve. Acredita ser a geografia a mais bela das disciplinas, pois faz convergir para a área as outras ciências. Seu conceito sobre o humanismo deve ser registrado, entendendo-o como “reflexo de defesa corporativa, espécie de sindicalismo biológico destinado a proteger a espécie à qual pertencemos no intuito de preservar prerrogativas”.

Às caminhadas intermináveis pelo planeta com todas as implicações pertinentes, Tesson somaria duas outras disposições, estas, citadinas. Subir externamente às cumeeiras das catedrais, igrejas, edifícios, lá permanecer por bom tempo e entrar em contemplação à noite, não apenas sentindo a cidade, mas também a rememorar a história. Fugir da agitação das ruas. Pedras milenares, tetos insondáveis povoados por corujas e alguns gatos.

O aventureiro-escritor, nessa necessidade de solidão, buscaria inúmeras vezes passar a noite em topos de árvores de parques espalhados pelas cidades e estradas. Ouvir o canto dos pássaros em seus habitats, mas bem abaixo, ver o amanhecer, sentir a distância, estar incógnito. Aponta os perigos dessa empreitada, mas exalta a árvore como necessidade absoluta a ser preservada. Uma de suas frases se aplica, infelizmente, por inteiro à realidade brasileira “O machado sempre teve a última palavra na história dos homens”. Ou a de François-René Chateaubriand (1768-1848), mencionada por Tesson: “As florestas precedem os homens e os desertos os sucedem”.

 

 

Em outra aventura hors série, Sylvain Tesson realiza uma proeza extraordinária (L’Axe du Loup – De la Sibérie à l’Inde, sur le pas des évadés du Goulag. Paris, Robert Laffont, 2004). A leitura do célebre livro À marche forcée, do polonês Slavomir Rawicz, na tradução francesa, despertou a curiosidade de Tesson. Rawicz narra sua fuga de um Gulag na Sibéria, a 650km do Círculo Polar Ártico, com destino à India.

Os Gulags eram os campos de trabalhos forçados da antiga União Soviética. Alexander Solzhenitzyn, prêmio Nobel de literatura, revelaria as agruras desses campos em Arquipélago Gulag. Preso pela NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos) em 1939, Rawicz conseguiria fugir em 1941 com mais seis companheiros. Uma jovem polonesa se juntaria ao grupo. Segundo o relato, teriam realizado o percurso de mais de 6.000km da Sibéria à India, contornando o lago Baikal, atravessando a Mongólia e o deserto de Gobi e mais a cadeia do Himalaia antes de descerem para a India. Quatro não resistiram a longa marcha, três perecendo no deserto e um nas montanhas tibetanas, inclusive a jovem de 17 anos.

Sylvain Tesson se apaixona pela narrativa de Rawicz, apesar de conhecer imensa crítica a desacreditar À marche forcée como redigido por visionário. Relatos não coincidiriam com a realidade, segundo os detratores. Tesson realiza o longo trajeto em oito meses, entre Maio e Dezembro no início do século XXI. Viaja de Paris a Moscou de comboio e, após, segue pela célebre Transsiberiana da capital russa até Nieroungel. Destaca a beleza e a monotonia de uma estrada sem fim aparente, pois quase toda em linha reta a atravessar taigas e estepes. A seguir vai a Iakoutsk. Depois de aclimatação e recolhimento de dados precisos e depoimentos nessa cidade ao norte da Sibéria, começa a longa marcha que será feita a pé, de bicicleta e a cavalo. Somente na India, de Calcutá a Bombaim, realiza o trajeto de moto (o leitor, ao clicar sobre o mapa abaixo, terá a imagem aumentada e, clicando  uma segunda vez, verá com clareza o longo trajeto empreendido pelo autor).

 

 

O relato é fascinante. Não poucas vezes Sylvain Tesson traça o perfil de figuras humanas que cruzaram o seu caminho pragmático. Nomeia-os. Torna-se cúmplice fugaz. O leitor se prende às características distintas de russos siberianos em pequenas cidades ou isolados em cabanas, suas vidas e preocupações, a caça e a pesca, a vodka inseparável; entende o nomadismo na Mongólia e seus habitantes enfrentando adversidades; o terrível deserto de Gobi, no qual ninguém se atreve sem conhecer os poços existentes e distantes dezenas de quilômetros um do outro (um link abaixo mostra Tesson a cavalgar lentamente na desolação do solo desértico); penetra no Tibete. A constatação da triste realidade atual do antigo reino tibetano, hoje pertencente à China, após invasão, leva-o a duras críticas àquilo que ele denomina “exército maldito”, pois a submeter milhares de trabalhadores munidos de picaretas na construção de linha ferroviária “digna de Dante”, unindo Golmud a Lhasa. Observa igualmente a triste dicotomia causada pelos soldados chineses e o povo pacífico da região ora dominada. “Encontro dois tipos de homens: monges semiloucos que esperam a morte olhando o céu; soldados doentios que passam suas vidas examinando papéis”. Percorre os contrafortes do Himalaia, chega a Lhasa da aura perdida, desce para a India, a tentar entender multidões e multidões. Em todo o longo percurso sempre foi acolhido pelos habitantes das regiões. A contrapor, faz aguda crítica às portas fechadas das representações consulares francesas: “os funcionários diplomáticos da República tem horror dos vagabonds…”  

O extenso caminho tem seus perigos, certas dificuldades nas fronteiras, água,  mantimentos. Em outro contexto de tensão, ursos e lobos siberianos podem estar à espreita, assim como elefantes selvagens e tigres na India. Observa que “o homem faz sempre transparecer o medo dos animais que ele dizima”. Aprende em cada região aquilo que serve à subsistência, desde os peixes defumados da Sibéria à tsampa pré-misturada com açúcar do Tibete ou ainda os queijos desidratados da cadeia himalaia.

De interesse acompanhar os percalços de Sylvain Tesson, pois não poucas vezes teve de atravessar a nado riachos gélidos e enfrentar temperaturas hostís. O fascínio pelo lago Baikal, na Sibéria, que se estende por mais de 600km, é decisivo a tal ponto que, em outra época, ficará seis meses numa diminuta cabana, a buscar silêncio, solidão, meditação e paz interior para seus relatos e experiências, que seriam traduzidos em livros.

No final da longa trajetória não encontra na India qualquer traço documental sobre a passagem de Slavomir Rawicz. Encerra seu relato com um grito de liberdade “O essencial é compreender que o fugitivo político é necessário para a História. Ele prova que nenhum cárcere é intransponível, que há sempre uma falha nas muralhas, que nenhum carrasco está seguro de encontrar seu prisioneiro na aurora, que o poste de execução fica por vezes faminto, que nenhuma ideologia conseguirá jamais acorrentar alguém e que nenhum cão feroz comprometido com essa ideologia será capaz de impedir o homem de partir em busca da Liberdade, esse pão da alma, tão necessário à vida como o pão do ventre”.

Tardiamente, após a leitura de L’Axe du Loup, soube do filme Caminho da Liberdade dirigido por Peter Weir e tendo como roteirista Keith R. Clark. O ótimo Ed Harris e mais Colin Farrel e Saiorse Ronan são os principais atores da saga narrada por Slavomir Rawicz e vertida recententemente para o cinema.

Clique aqui para assistir Sylvain Tesson em pleno Deserto de Gobi.

 An appreciation of two books written by the French geographer, journalist and adventurer Sylvain Tesson, who spends his life touring the globe by bicycle, on foot and on horseback and records his experiences in travelogues describing his encounters with different cultures and characters while exploring beautiful, remote and hostile lands.