Rememorando outra Viagem de ônibus
Que a imaginação te engorde e a matemática te emagreça.
Agostinho da Silva
Conversava com meu amigo Luca Vitali. O arguto artista lera os últimos posts de uma só vez. Disse ter gostado dos dois sobre as ferrovias, mas provocou-me: “Certamente você deve ter também outras experiências com ônibus de longo percurso, pois lembro-me de um seu post bem anterior.” Uma delas já abordei (vide Experiência que Marcou – Caminho para Varna, 18/07/2009); mas, ao continuar a nossa conversa, lembrei-me de uma cheia de situações inusitadas. Fomos direto a um curto e prolongamos ideias.
Quando na Bélgica, por várias vezes fui a Paris de comboio. Nos anos 90, de Gent a Bruxelas em trem comum, e de lá a capital francesa em TGV. Hoje há confortável linha direta a ligar Gent a Paris. Em 1999, Christiane, uma amiga que trabalhava na Rode Pomp, disse-me que eu deveria fazer ao menos uma vez a viagem em autocar e assim conhecer outras paisagens e também as auto-estradas que atravessam os dois países. Aquiesci e realizei uma dessas viagens, que normalmente duram quatro horas.
Estou a me lembrar que o ônibus saiu bem cedo, quase que lotado, e que cerca de 80% dos viajantes eram árabes do norte da África, pois suas figuras são marcantes. Há dignidade nesses semblantes, muitos deles sofridos. Alguns vestiam roupas próprias de suas regiões, os homens com toucas ou taeias e as mulheres com lenços ou xales. A linha rodoviária por autocar, Gent-Paris, não era diária, daí o afluxo. Christiane, de extrema gentileza, preparou-me alguns sanduíches e uma garrafa de água. E lá saímos em direção à Gare du Nord, eu tendo ao meu lado um jovem francês descontraído, de pequena estatura, tez bem avermelhada, olhos claros. Trajava jaqueta e boné bem surrados e imensa vontade de conversar. Como eu estava sempre a ler e por vezes olhava a paisagem, o companheiro de viagem interrompia a sua fala por determinado tempo, a me proporcionar transitório alívio.
Na fronteira dos dois países o ônibus parou e alguns guardas alfandegários franceses, armados até os dentes, subiram, a olhar com arrogância os passageiros. A certa altura, bruscamente, retiraram o jovem que estava ao meu lado e o levaram com certa truculência ao posto da polícia de fronteiras. Da janela deu para acompanhar policiais segurando com firmeza os braços do infortunado, atravessarem as duas pistas e entrarem no posto. Em nenhum momento senti-o culpado, tal a descontração e a informalidade de uma pessoa absolutamente comum.
Algo de muito estranho deveria estar a passar, pois o viajante lá permaneceu por cerca de duas horas. Não apenas não tínhamos permissão para descer, como nada respondia o policial que ficara à porta do autocar. Inútil dizer que a toilette do autocar serviria como último recurso para básicas necessidades. Após o longo interrogatório, vi o jovem atravessar a auto-estrada escoltado pelos gendarmes, sem que apertassem, dessa vez, os braços do moço. Qual não foi o meu espanto quando um dos agentes entrou no ônibus a impor, de maneira a não deixar quaisquer dúvidas, a nossa saída do veículo, com todos os nossos pertences, inclusive a bagagem do amplo porta-malas. Como estava a ler e a anotar, fui o último a descer, ficando pois no fim de uma extensa fila no posto alfandegário situado na pista em direção a Paris. Tudo, mas tudo, foi revistado. Após uma hora de investigação minuciosa e inóspita, pois bagagens, documentos e as roupas eram verificadas, calculei que ainda teria de esperar uma outra boa hora. Dirigi-me a um dos policiais e mostrei uma carta da Bibliothèque National de Paris, pois teria uma reunião no Centre de Documentation Claude Debussy no dia seguinte. Leu-a sem me olhar, deixou-me livre daquele entrave e não revistou minha bagagem. Ao solicitar permissão para ir ao toilette do posto alfandegário, o policial imediatamente afirmou que teria de me seguir. “Com todo o respeito, não há um certo exagero por parte do senhor?”, disse-lhe. Desconcertado, deixou-me ir não apenas ao toilette como retornar ao ônibus com todos os meus pertences. Exausto, adormeci uma boa meia hora. Ao acordar, senta-se ao meu lado o jovem viajante a sorrir. Afirmou-me que pensaram ser traficante e que estivesse com drogas. Teve de ficar completamente nu. Fizeram-lhe mil perguntas, pois o posto recebera aviso de que aquele ônibus estava com entorpecentes. Perguntei-lhe pelo desfecho. “Tive medo, sofri humilhações, mas não me bateram”, foi a resposta sempre em tom humorado. Contou-me que estava a retornar à França unicamente para buscar novo emprego, após ter permanecido um ano na Bélgica.
Permanecemos quatro horas nesse posto de fronteira. Foi quando abri minha sacola de mão e retirei meus três sanduíches médios. Ofereci um a ele, que imediatamente o devorou. Estava na metade de meu primeiro sanduíche quando o jovem me perguntou se eu iria comer o terceiro. Entreguei-lhe. Antes que terminasse o meu “primeiro”, os dois outros já tinham sido deglutidos por meu companheiro de viagem. Abri a garrafa de água gaseificada de 750cc, mostrei-a ao rapaz e ele nada disse. Após uns goles que acabara de dar, afirmou-me que estava com sede. Passei-lhe a garrafa quase cheia e bastaram alguns segundos para que a esvaziasse. Ainda faltava a barra de 100g de excelente chocolate belga. Ofereci ao alegre vizinho de trajeto, que com forte pressão dos dedos cortou-o e ficou com mais de metade da barra. Da parte que sobrou tirei dois pequenos pedaços, guardando o restante. Minutos após, nova pergunta “O senhor ainda vai comer o chocolate”? Nem respondi, apenas entreguei-o ao voraz “companheiro”. Tenho a certeza que, se café houvesse, teria eu sorte se ficasse com o restinho do fundo de xícara.
O ônibus ainda fez uma parada rotineira em um desses postos de conveniência no meio do trajeto. Chegamos em Paris após oito horas de viagem. Ao se despedir, o sorridente jovem ainda observou “Gostei muito de nossa conversa. O senhor é um velho simpático”. Estendeu-me a mão, cumprimentamo-nos, sorri desconcertado e lá foi ele em busca de seu destino. Fiquei a pensar, que conversa? Eu só entregava a ele o que me era pedido e o moço não parava de falar… e de comer. O certo é que tive tempo de sobra para ler e fazer a revisão dos temas da reunião parisiense. Do que a caridosa amiga Christiane me deu em Gent, bem mais de três quartos ficaram com o vizinho de assento.
Na capital francesa, o fato foi motivo de boas risadas quando narrei pormenores dessa viagem inusitada. Ao final dessa lembrança, Luca, que tem sempre um lápis ou pincel na mente, observou que a viagem de ônibus é a mais solidária, e as pessoas muitas vezes se confraternizam. Dei-lhe inteira razão. Sob outro aspecto, se a viagem fosse sem percalços, não estaria aqui a me lembrar dessas situações inusitadas. Luca me surpreenderia dias após com o desenho que serviu de ilustração. O choque a aguçar nossa memória e imaginação.
My adventures on the road from Gent to Paris with a weird and hungry seatmate.
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