O Pensamento de Daniel Barenboim
A entidade musical apresenta pois,
essa estranha singularidade de demonstrar dois aspectos,
de existir alternativamente sob duas formas,
separadas uma da outra pelo silêncio do nada.
Essa natureza particular da música
comanda a sua própria existência
e os seus efeitos na ordem social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky
Não poucas vezes tenho me posicionado sobre o músico completo, aquele que, sendo compositor ou intérprete, desenvolve, por vocação ou por aperfeiçoamento voluntário, a arte de pensar a música e o mundo. Acrescentaria, sob conditio sine qua non, a categoria do teórico competente que, ao ter praticado um instrumento ou em outra situação, debruça-se acuradamente sobre a escrita musical, a evolução da música através da história e a análise tanto musical como social, atingindo a aura da confiabilidade. Só não pode existir, em termos da arte musical, o subterfúgio, o verniz que encobre a falta do conhecimento aprofundado.
Daniel Barenboim é uma exceção no meio musical. Não apenas um dos mais competentes pianistas de nossos tempos, como notável regente e pensador. Suas interpretações ao piano são referenciais e fogem do livre arbítrio tantas vezes pernicioso. Apesar de seu repertório tecladístico preferenciar uma parcela fundamental das criações franco-austro-germanicas, não há uma só de suas gravações que deixe de transmitir a veracidade possível da partitura e a emoção nela contida. Sob outro aspecto, sob sua batuta o denominado grande repertório já foi visitado e suas incursões nas óperas de Richard Wagner ou nas obras dos contemporâneos Pierre Boulez e Elliott Carter são provas de versatilidade competente, que está sempre a surpreender. Seus conceitos sobre Spinoza, Adorno e Wagner evidenciam o pensador arguto e seus diálogos com o intelectual palestino Edward Said resultaram em livro Parallèles et Paradoxes – avec Edward Said (Paris, Le Serpent à Plumes, 2003).
O livro La Musique Éveille le Temps, de Daniel Barenboim (Paris, Fayard, 2008), aponta para aspectos fulcrais do pensamento do intérprete. Alguns outros textos foram agregados à obra. Pode-se aquilatar o grau de profundidade de seus conceitos sobre música, mormente a complexa área da interpretação em sua essência essencial, naquilo que resultará após intenso debruçamento. Não se atém o livro unicamente à interpretação, e Barenboin discorre sobre seu comprometimento profundo com J.S.Bach; sua confessa admiração pela criação de Mozart (entrevista); suas lembranças de aprendizado e amadurecimento; homenageia o extraordinário regente Furtwängler; traça seu relacionamento musical com Pierre Boulez; aborda Wagner e a ideologia; e não deixa de rememorar a intensa ligação com o pensador palestino Edward Said e aspectos concernentes à política e ao entendimento entre os homens que professam atávicos e divergentes princípios religiosos, deles decorrendo tanta incompreensão no mundo atual.
Como bem afirma o autor no Prélude, “Não se trata de um livro para músicos, nem para leigos; ele é destinado, preferencialmente, ao espírito curioso e desejoso de descobrir paralelos entre a música, a vida, e essa sabedoria que se torna audível para a escuta pensante”. Num primeiro capítulo Barenboim aborda temas recorrentes e que fazem parte de suas preocupações, como som, silêncio e pensamento. Já teria afirmado que “A relação entre a vida e a morte é a mesma que existe entre o silêncio e música – o silêncio precede a música, sucedendo-a”. O conceito, a envolver o nascimento do som e a sua extinção, magnificamente tratado por Vladimir Jankélévitch nos três livros a abordar a obra de Debussy, adquire, nas intenções de Barenboim, a práxis absoluta através de suas interpretações, que se tornaram paradigmáticas. Traduz-se nesse sentido de entender o encadeamento das frases musicais, dando a cada nota o próprio sentido da individualidade. Para Baremboim, “o último som não é o fim da música e se a primeira nota está ligada ao silêncio que a precede, a última deve estar ligada ao silêncio que segue”. E a partitura conteria toda a complexidade, onde cada nota deverá ter o espírito solidário, ao transferir para aquela que a sucede a missão sequencial. A inteligibilidade das notas que desfilam nessa concepção fraterna fá-lo entender que “se o tempo for muito rápido, o conteúdo advirá incompreensível, pela incapacidade do músico de tocar todas as notas claramente, ou então, do ouvinte de entendê-las; se, ao contrário, for muito lento, também será incompreensível, pois nem o intérprete, tampouco o ouvinte captarão todas as relações entre as notas”.
Pormenoriza as categorias da leitura de um livro e da escuta musical, aquela a possibilitar as associações que se estabelecem através do texto, e esta a necessitar, a partir de cada nota, da tomada de consciência das leis físicas do som, do tempo e do espaço. A acuidade do ilustre intérprete na captação de todos os elementos sonoros que formam o léxico da partitura vertido para a interpretação aproxima-o do enunciado constante da epígrafe do post.
Barenboim entenderia como equívoco o posicionamento de intérpretes “persuadidos de que a música do passado é atemporal, universal e fonte infinita de inspiração, ao acreditarem que, limitando-se à estreita seleção de obras dos séculos precedentes, terão um conhecimento mais aprofundado”. O pianista-regente estaria atento à curiosidade que todo músico deve ter em relação à criação contemporânea, que pode, sob outra égide, vir a explicar as obras do passado.
Dedica um capítulo a J.S.Bach J’ai été nourri de Bach. Ter-se alimentado desde a tenra infância de conteúdo essencial da obra de Bach, mormente do Cravo Bem Temperado, deu a Barenboim o sentido sinfônico, pois a polifonia que dela emana estabelece a possibilidade da diferenciação das vozes, a propiciar a leitura tridimensional, como afirma. Como curiosidade mencionaria que Barenboim escreve ter estudado o Cravo Bem Temperado ainda menino, sob influência de seu progenitor. O mesmo se deu em relação ao meu irmão João Carlos, que trabalhou os 48 Prelúdios e Fugas da magistral obra também sob a indicação de nosso pai, gravando nos decênios seguintes a integral de J.S.Bach para teclado. Sob outra égide, meu professor de matérias teóricas e ilustre músico Louis Saguer, não orientaria durante três anos em Paris o seu aluno no sentido de analisar com profundidade, a cada semana, um prelúdio e fuga do C.B.T.? A monumental obra do Kantor seria paradigma para Barenboim, ensinando, entre outras lições, a independência absoluta de cada um dos dez dedos e a percepção decorrente, que tem tudo a haver com o sinfônico, segundo o pianista-chefe de orquestra. Essa confessa admiração não teria resultado no futuro regente? Ainda hoje, periodicamente Daniel Barenboim apresenta em público os dois livros do Cravo Bem Temperado, exemplo que, hélas, não parece ter guarida nas novas gerações de pianistas. Nesse capítulo, destaca a prevalência, entre os três elementos básicos da música – harmonia, ritmo e melodia –, da harmonia, eixo paradigmático da composição tonal.
Um dado significativo enunciado por Barenboim e que vem ao encontro de posições que professei em 2001 e ratificadas pelo ilustre musicólogo e saudoso amigo François Lesure, quando de minha gravação para o selo belga da integral para teclado de Jean-Philippe Rameau, diz respeito à interpretação histórica. Escreve o notável intérprete: “Penso que se ocupar unicamente de hábitos históricos e querer reproduzir a sonoridade de práticas musicais mais antigas é restritivo e não é sinal de progresso”. Lesure escrevera que o anátema lançado pelos puristas não tem mais sentido. Barenboim afirma que “a visão puramente acadêmica do passado é perigosa, pois ela está ligada à ideologia e ao fundamentalismo, mesmo na música”. François Lesure afirmaria que “não é o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. O pianista-regente, ao afirmar que não tem “nenhum problema filosófico com alguém que toque Bach e o faz soar como Boulez, mas sim com aquele que busca imitar o som daquela época”, não estaria a engrossar a legião de músicos conscientes contra a intolerância? Respeita determinados músicos fabulosos que se dedicam à execução histórica, mas aderir ao que ele denomina “movimento” de cunho ideológico, cerceia a criatividade humana. Todavia, Barenboim está ciente que tem de haver responsabilidade nessa compreensão interpretativa de obras do passado.
Na entrevista concedida à Christine Lemke-Matwey sobre Mozart, um de seus paradigmas musicais, Barenboim discorre sobre a criação, os meios empregados pelo compositor e a extrema fluidez de sua música. Jocosamente, afirma: “Vinte quatro horas com Mozart seriam como um mês com Brahms – e eu nada tenho contra Brahms”. Dessa entrevista em torno de Mozart, uma observação que seria farol de orientação durante a trajetória do pianista-regente. Ao tocar aos 13 anos a Sonata op. 111 de Beethoven diante de júri respeitável na Academia Santa Cecília, em Roma, teve nove votos a favor e um contra, este do grande pianista Arturo Benedetti Michelangeli. O músico italiano teria-lhe afirmado que uma criança não podia saber o que fazer com aquela música. Considera Barenboim: “Fiquei, pois, permanentemente confrontado com a ideia de que é necessário ter grande experiência de vida para ser um bom músico”.
A admiração inconteste de Barenboin pelo filósofo Spinoza fá-lo discorrer sobre princípios do pensamento do autor de Ética - lido pelo pianista quando ainda em seus treze anos -, e a influência duradoura sobre sua maneira de entender a vida e a interpretação. Entende como fundamento essencial do legado de Spinoza o ultrapassar a contradição entre finito e infinito.
Capítulos são dedicados à estreita ligação com o pensador palestino Edward Said, que resultaria na fundação, em 1999, da West-Eastern Divan Orchestra, arquitetada a partir de músicos provenientes de países conflitantes do Oriente-Médio e cuja ação tem repercussão no mundo inteiro, mormente por ser Barenboim de origem judaica, o que provocaria um sem número de incompreensões, apesar da aceitação inconteste por parte daqueles que sonham ainda com uma paz duradoura entre árabes e judeus. Barenboim receberia em 2008 o passaporte palestino.
Em La Musique Éveille le Temps há capítulos fulcrais em que Daniel Barenboim focaliza com argúcia características de individualidade na regência do grande Wilhelm Furtwängler, que servem ainda como referências. Discorre sobre sua amizade com Pierre Boulez, compositor que ele admira e que é um de seus escolhidos quando do repertório orquestral contemporâneo. Em sendo Barenboim um dos grandes regentes das óperas de Richard Wagner, um capítulo a ele é dedicado.
Na atualidade é cada vez mais rara a incursão de um intérprete de imenso valor no campo do pensar música. A agitação hodierna quase que impede a reflexão sobre música e temas humanísticos. É, pois, relevante um livro como La Musique Éveille le Temps, ao menos para músicos e leigos de espírito curioso, como sugere o próprio Barenboim. Sob o título “A Música Desperta o Tempo” o livro foi lançado no Brasil pela Martins Fontes em 2009.
On the book “La Musique Éveille le Temps” (Music Quickens Time), written by Daniel Barenboim, pianist, conductor and – exception among musicians – also an intellectual who discusses non-musical issues. In this book he talks about the West-Eastern Divan Orchestra – with Israeli and Palestinian musicians – he co-founded with his late friend, Edward Said, presents topics on Spinoza, Bach, Mozart, Boulez, Furtwängler and, above all, reflects on the duality sound-silence and on how people perceive the universal language of music.The book is an exceptionally talented musician’s foray into the world of sound and the interconnections between music and life.