Ou o Eterno que Enriquece o Cotidiano
Quem não labuta,
não manduca.
Adágio açoriano
Uma das maiores dificuldades de um cidadão em nosso país é abrir uma firma comercial. Maior ainda no momento da desilusão, quando se faz necessário encerrá-la. Se micro-empresário, a dor pode ainda ser mais intensa, pois nada mais resta de seus parcos recursos. O nosso Estado é o Leviatã que tudo devora, nada lhe escapa. Não há sentimento algum, apenas a necessidade de se arrecadar. Desamparado, aquele que tem o infortúnio de viver esse abrir e fechar sabe muito bem a que me refiro.
Há o personagem com recursos humanos e verbais para iniciar um pequeno negócio, não o fazendo pela ausência absoluta de capital, e outros que o próprio Leviatã destruiu com o peso de encargos. Estou a me lembrar que em 1987 estava em Nova York com dois amigos músicos. Certo dia fomos para a abertura de uma firma em nome de um deles, americano. Indagamos e apontaram-nos um prédio como qualquer dos milhares existentes na cidade. Perguntamos pelo cidadão que fazia abertura de firmas. Era o próprio zelador, que estava em manga de camisa. Ele retirou-se e voltou com paletó e gravata, a trazer um livro e carimbo. Escreveu o necessário. O amigo americano e o outro - brasileiro residente nos Estados Unidos – assinaram, este último como testemunha, e o cidadão, como “autoridade”, disse que tudo estava sacramentado. Pagaram uns pouquíssimos dólares. Perguntei-lhe se era tudo. Sim, respondeu-me, e não é assim também em seu país? Falei-lhe das longas filas em cartórios, tabeliões, a parafernália de carimbos, os vários compartimentos governamentais a serem visitados, assim como o preço absurdo para essa abertura de empresa. Disse-lhe ainda que as assinaturas levam outro carimbo, a fim de serem autenticadas, etc, etc… Ficou atônito, mormente quando lhe disse que cartórios são hereditários. Incrédulo indagou-me: “seu país tem monarquia”? Após, saímos para almoçar.
Conheço Marcelo há muitos anos. Sempre que atravesso a Avenida Santo Amaro para ir ao supermercado no fim de tarde, sei que vou encontrá-lo. Pelo vozeirão de Marcelo é impossível não o perceber. Há 23 anos carrega consigo suas “mercadorias” e vende nas duas paradas de ônibus, direção Santo Amaro, biscoitos, salgadinhos, balas e refrigerantes. Marcelo é do bem. Sente-se nele o potencial do “mini-micro” empresário que carrega nas mãos fortes a sua “empresa” ambulante. Tem fiéis compradores constituídos por trabalhadores que sobem as ruas desde a marginal, preferencialmente mulheres que trabalham em residências, e que pegam suas conduções em direção à ampla zona sul da cidade. Retorno aos lares após árdua labuta.
Fascinam-me em Marcelo sua interação com o meio e a qualidade de seus pregões. Todos gostam de nosso personagem, pois jamais o vi de mau humor. Sempre a sorrir e a conversar com passageiros à espera dos ônibus ou trocando palavras amistosas com muitos motoristas dos veículos públicos. Compreende seus clientes. Deles se aproxima, a proferir seus pregões. Participa de suas transitoriedades, pois por vezes senta-se e conversa com alguém, faz afago em uma criança e, mercê da quantidade de guloseimas, vende lá os seus produtos àqueles trabalhadores que terão ainda de enfrentar longos trajetos até destinos finais. E nada mais apropriado do que, por poucos trocados, levarem algo para disfarçar o estômago nesse retorno que pode se prolongar, a depender do caótico trânsito de nossa urbe. Tantas vezes já insisti em blogs sobre o descaso absoluto que as autoridades têm por esses heróis anônimos que se apinham em ônibus e metrôs diariamente.
Marcelo poderia alardear os produtos, nomeando-os à exaustão, como fazem quase todos os vendedores na mesma situação. Não o faz. Procura sempre frases que pressupõem ao cliente tratar-se de uma firma, mesmo que ambulante. Transmite ao comprador, de maneira sincera, o seu cotidiano, essência de seus pregões. Daí diferenciar-se tanto dos “colegas de ofício”. Há em Marcelo esse dom do marqueteiro que sabe vender seu produto sem se mostrar, contudo, um interesseiro. Basicamente não os anuncia. Interessa a Marcelo prender a atenção do comprador para oportunidades “únicas” ligadas ao seu cotidiano. Sob aspecto outro, sua presença física a lembrar um profeta à antiga, torna-o figura respeitada por todos. Quase sempre nos cumprimentamos e tenho grande prazer em vê-lo lépido e ativo.
Um dia pedi-lhe que me falasse sobre sua origem e passado. Natural de Feira de Santana, na Bahia, trabalhou durante 18 anos como operário encarregado de bater as estacas que fundamentam as centenas de edifícios pelo bairro. Dirigiu seu olhar para o entorno e disse que muitos daqueles prédios tiveram os seus préstimos. Após tantos anos a suportar trepidação e barulho intenso, resolveu ser independente. Há 23 anos é o ambulante da confraternização, pois todos têm por ele muita afeição.
Em certo momento disse-lhe que tinha guardado na memória uma série de frases por ele ditas diariamente e que têm lá sua graça, tencionando escrever sobre sua atividade junto aos dois pontos de ônibus. Abriu um grande sorriso quando afirmei que tiraria umas fotos durante o pleno desempenho de sua “firma”. Foi o que fiz dias após.
Compartilho com meu leitor alguns dos costumeiros pregões de Marcelo, sempre proferidos em alta voz: “hoje vou vendê tudo mais barato… quero ir mais cedo pra roça”; “liquidação total, tá tudo mais barato”; “só hoje vou vendê mais barato”, e nomeia determinado produto; “você precisa gastá o dinheiro… liquidação… tenho de ir embora”; “estou pedindo um peixinho (moedas) pra sorte me ajudá”; “se todos me derem um peixinho não precisarei ir mais pra roça”; quando as vendas estão fracas “hoje tô comendo mais do que tô vendendo… vamo lá pessoal”, “se vocês não me ajudá vou pra roça plantá feijão, arroz e soja”.
Grande Marcelo. Sintetiza ele a figura desse povo que, apesar de todas as mazelas, guarda ainda a pureza nas intenções, não deixando de perder o senso da confraternização. Marcelo persiste em atividade hoje cada vez mais concorrida. É só verificarmos os pontos de ônibus da cidade e pequenos tabuleiros de ambulantes a tudo vender. Marcelo é figura ímpar por ser o autêntico “negociante” a carregar seus cestos com a alegria pela escolha do ofício, décadas atrás. Não é o cliente que vai ao seu encontro. Procura-o e o “seduz”. Que continue com essa contagiante maneira de ser.
His week’s post is about a personality of my neighborhood: Marcelo, a street vendor that, carryng two huge baskets, sells his wares at the nearest bus-stop. Always in a good mood and smiling, he announces his candy bars, potato chips, chewing gums and soft drinks aloud, captivating buyers with attention getting and funny slogans full of originality.
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