A Valoração que se Faz Necessária

“Women have served all these centuries
as looking glasses possessing the magic and delicious power
of reflecting the figure of man at twice its natural size.”
Virginia Woolf (A Room of One’s Own)

A mulher está muito perto da Natureza;
Há nela os mesmos encantos e os mesmos perigos.
Agostinho da Silva

Em 2010 escrevia a respeito de tese de doutorado defendida junto à USP pela professora Susana Igayara, na qual a pesquisadora abordava obras teórico-musicais escritas no Brasil na primeira metade do século XX por professoras e educadoras musicais. Tendo integrado o júri, impressionou-me a quantidade de trabalhos publicados em período em que a mulher não alcançara patamares sequer à base de igualdade com os homens (vide Uma Tese Diferenciada – A Mulher Brasileira e seus Textos sobre Música. 14/05/2011).
Considerando-se o período a partir da segunda metade do século XIX, é possível observar leves tentativas de emancipação da mulher nas mais variadas atividades. Se George Sand (1804-1876) foi exemplo em França, há que se considerar que sempre houve, ao longo da história, a presença de mulheres que se destacaram, apesar de não aparecerem publicamente, como educadoras, heroínas, artistas, intelectuais e empreendedoras. O nítido domínio dos homens era fator preponderante para uma verdadeira “imersão” da criatividade feminina. Se Berthe Morisot (1841-1895), Mme Curie (1867-1934), Clara Schumann (1819-1896) e tantas outras tiveram reconhecimento em  vida, a grande maioria ficaria no ostracismo e outras tanto tiveram valoração post mortem. Era a regra do jogo. Camille Claudel (1864-1943) tornar-se-ia o símbolo do talento artístico que, premido pela sociedade, sucumbiu em vida. E o que dizer de Anita Malfatti (1889-1964), que ao sofrer pressões estéticas, renunciaria a um estágio na pintura que certamente faria dela uma expressão a nível mundial?

É, pois, alvissareira a publicação de um  pequeno livro a destacar mulheres que tiveram brilhantismo em Portugal em período em que imperava o “machismo”, atitude ainda tão majoritária no planeta como um  todo (Mulheres do Alentejo na República. Textos de Anastásia Mestrinho Salgado, Carlos Emílio Carapinha e Idalete Giga. Chaves, Tartaruga, 2011).

Já na Introdução há referência a essa “mulher filha da burguesia mais instruída, diplomada pelas escolas politécnicas, escolas de medicina e veterinária, etc. (médicas, professoras, artistas)” que captavam determinados ventos ideológicos que começavam a soprar em Portugal. Essa mulher, graças ao comboio, iniciava através das viagens uma nova percepção da vida e de sua posição junto à sociedade, a ter, pois, papel fundamental na emancipação feminina, não sem duros percalços. Tem-se, ainda na Introdução, que “a transversalidade entre estes grupos de mulheres acontecia em vésperas da 1ª República. Era como se todas as mulheres portuguesas sonhassem o mesmo sonho – SER MULHER”.

O espaço a que me proponho tornar-se-ia pequeno para esboçar o perfil das dezessete mulheres estudadas, que abrange as mais diversas áreas. Todas tiveram destacada atividade e lutaram nas mais variadas frentes, no intuito de dignificarem a figura feminina na sociedade. Selecionei as três breves biografias traçadas com muita competência pela professora Idalete Giga, natural de Ciborro (Montemor-o Novo), portanto, alentejana da gema: Virgínia Quaresma (1882-1973), pioneira do jornalismo moderno em Portugal, segundo a estudiosa, Eunice Muñoz (1928- ), atriz relevante, e a célebre poetisa Florbela Espanca (1894-1930).

Virgínia Quaresma, licenciada em Letras e diplomada pela Escola Normal de Lisboa, foi notável jornalista, a preferenciar em sua atividade a reportagem e a entrevista política. Atuou em alguns dos mais importantes veículos de comunicação em Portugal. Esteve várias vezes no Brasil a partir de 1912 e, durante um bom período, residiu no Rio de Janeiro, a exercer sua profissão colaborando para o Correio da Manhã, A Época e a Gazeta de Notícias. Referencial um pronunciamento junto à Sociedade Promotora do Ensino Popular em Portugal: “Ser feminista é a minha única carta de recomendação, o meu único título de glória  no mundo intelectual. E não me dispensam dessa honra em parte nenhuma, embora eu saiba muito bem que o nosso meio social, ainda em grande parte, não compreende todo o orgulho, toda a altivez, toda a satisfação de razão e de consciência que me podem advir dela”.

Eunice Muñoz é possivelmente a mais importante atriz portuguesa e foi impecavelmente “retratada” desde as primeiros passos “hereditários”, empreendidos em companhia de seus pais. Aprendeu cedo o métier e o talento desabrochou com naturalidade. Idalete Giga tem o esmero de indicar a relação de todas as peças do repertório de Eunice Muñoz, nomeando-as e a oferecer, como suporte, a cronologia e os locais das apresentações. Impressiona a quantidade de peças de teatro que Eunice apresentou e continua a oferecer aos mais variados públicos. Cinema e televisão também fazem parte de seu universo. Seu repertório é imenso. É a atriz mais premiada em toda a história da dramaturgia em Portugal.

Ao se debruçar sobre Florbela Espanca, Idalete o faz com o respeito devido à grande poetisa alentejana que legou aos pósteros uma produção tão pequena, inversamente proporcional à qualidade. Florbela viveu em choque permanente, não apenas familiar, mas também com o meio social. Desde jovem quebraria regras de conduta,  graças à sua vida amorosa tão distante da rígida concepção moral de sua época e de suas irreverentes atitudes frente ao establishment. Casamentos, relacionamentos prolongados ou efêmeros motivando, sob o aspecto da criação, mesmo em temáticas outras, a presença do relacionamento amoroso, da esperança ou da desilusão e os enfrentamentos da mulher voltada à escrita. Tem ela a consciência da apreensão pública de suas obras. Esses permanentes conflitos, acrescidos de hereditariedade, levariam ao fim trágico aos 36 anos, quando a porta do suicídio tornou-se a única viável. De Charneca em Flor tem-se: “Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!” Contestada ou mesmo rejeitada por setores mais puritanos da sociedade de seu tempo, Florbela Espanca tem sido, sur le tard, cada vez mais estudada pela expressividade de seus poemas. Idalete Giga sintetiza bem o perfil humano e criativo da artista: “Quando alguém nasce para além de seu tempo, como foi o caso desta extraordinária poetisa alentejana, tal facto suscita o mais vivo interesse. Florbela Espanca estava, sem dúvida, avançada em relação à sua época em que as mulheres viviam completamente subjugadas e dependentes dos homens, fossem pais, maridos ou irmãos. Não tinham quaisquer direito, mas apenas deveres. Florbela Espanca era a antítese da mulher dependente e subjugada. Artista de rara sensibilidade poética, independente e livre pensadora, mostrou-se sempre tal como era, sem máscaras, sem preconceitos. Por isso, a sua vida foi uma luta constante, cheia de sofrimento, dificuldades, desilusões e a sua obra incompreendida pela sociedade de seu tempo”.

Ao leitor transcrevo um dos poemas de Florbela Espanca:

Mistério

Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas…

Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!  

 Mulheres do Alentejo na República é livro a ser visitado. Oxalá a temática, a abranger o perfil da mulher em períodos onde a emancipação mostrava-se uma heresia, surgisse mais acentuadamente. Se de um lado essas desbravadoras em busca da igualdade e do reconhecimento do valor da mulher são paulatinamente reconhecidas numa sociedade ocidental aparentemente igualitária, sob aspecto outro a mulher objeto, que se oferece aos amplos meios de comunicação, mormente na condição de desnudamento, apenas retarda a inserção feminina plena, sem restrições, em todas as áreas da atividade humana.

This post is an appreciation of the book “Mulheres do Alentejo na República” (Women from Alentejo during the Republic), written by Anastásia Mestrinho Salgado, Carlos Emílio Carapinha and Idalete Giga.  It portrays 17 women from the region of Alentejo in Portugal that have been outstanding in their specific fields of activity. For space reasons, I’m unable to mention the 17 women, thus selecting only 3 of them: Virginia Quaresma (journalist), Eunice Muñoz (actress) and Florbela Espanca (poetess). But all the personalities depicted are strong women who transcended the limits imposed to their gender, going where few women dared to go.