“O Primeiro Português no Cume do Evereste”

Um dia é preciso parar de sonhar e, de algum modo, partir.
Amyr Klink

Foram muitas as minhas leituras de narrativas concentradas no montanhismo, mormente aquelas referentes à cadeia do Himalaia. Testemunhei sempre o fascínio que as aventuras empreendidas por intrépidos alpinistas causam neste intérprete e atleta amador de corridas de 10km. Muitos os relatos corajosos e trágicos que percorri sempre com grande interesse. Inúmeros livros resenhei ou comentei. A leitura de mais uma história me fez voltar ao tema.

Quando da última viagem a Portugal recebi dos diletos amigos Ana Cristina e Joaquim, ela pianista e ele a ter como hobby a corrida,  um palpitante livro de João Garcia (A Mais Alta Solidão – O Primeiro Português no Cume do Evereste, Lisboa, Caderno, 2006). Meu conhecimento das façanhas de João Garcia era quase nulo. O livro em apreço, ora  na 12ª edição, fez-me compreender mais do que todos os anteriores sobre os problemas vividos por esses visionários. Confesso que iniciei a leitura ainda no voo de regresso ao Brasil e, à medida  que lia as narrativas, pude entender os antagonismos do pensar de um alpinista. A maior parte da literatura específica existente contém uma dose bem grande de ufanismo natural por êxitos obtidos. Os pequenos equívocos, as falhas que têm de ser reparadas, o desalento ficam majoritariamente à parte nos relatos desses heróis e amantes das grandes altitudes, nessa fronteira tênue entre a realização e a auto-destruição. Os limites fronteiriços existem, estão lá, sempre a apontar as únicas possibilidades, exceção à desistência, que se traduzirá ou na depressão ou no estímulo para outro ato visionário.

Para um leigo, seria possível admitir que, mais do que a transmissão triunfalista de um alpinista-narrador, haveria o interesse em acompanhar o sonho que leva ao projeto acalentado e às suas consequências: múltiplas dificuldades encontradas, longo tempo de aclimatação à altitude,  decorrentes mudanças de humor, declínio físico e a inquebrantável vontade de atingir cumes. Sabe-se que o alpinista tem sempre a morte à espreita, seja através do chamado mal da montanha – edemas pulmonar ou cerebral por redução drástica de oxigênio em grandes altitudes – seja por fendas que se  podem abrir nas geleiras, blocos de gelo ou seracs que tombam, ou a fatalidade do abismo. João Garcia consegue, em A Mais Alta Solidão, transmitir ao leitor todas essas vicissitudes de maneira franca, sem subterfúgio e a ter como referências a solidariedade de amigos que permanecem ou que se foram, perdidos nas alturas ou nos abismos.

Atingir o topo do Everest é o sonho de quase todo alpinista. João Garcia focaliza no livro sua tentativa frustrada de atingir o cume do Everest e a dramática conquista posterior, parte de seu ambicioso projeto já realizado. Façanhas absolutamente extraordinárias tem o alpinista português empreendido. Como se não bastasse, João Garcia conquista montanhas acima dos 8.000m sem auxílio de oxigênio suplementar e, como escreve, “ao utilizar oxigênio estamos a enganar a montanha e a nós próprios”. Em post anterior já me referira ao nosso notável alpinista Vítor Negrete (vide “Espírito Livre“, 21/04/12), primeiro brasileiro a subir o Everest sem oxigênio suplementar, mas que, em decorrência, encontraria a morte poucas dezenas de metros na infausta descida.

João Garcia, a fim de fundamentar razões que o levaram a enfrentar o Everest, historia vários acontecimentos, alguns trágico, como o das expedições de 1996, nas quais houve quantidade de mortes. De uma delas há o relato dramático de Jon Krakauer (No Ar Rarefeito), um clássico da literatura sobre o tema. Para seu intento maior, João Garcia se faz acompanhar de seu grande amigo, o alpinista belga Pascal Debrouwer, a quem o livro é dedicado. Pormenores  da estada em Katmandu, a descrição pormenorizada dos costumes da cidade, meca dos escaladores dos altos picos, e a crítica mordaz ao simples turista: “Muitos passeiam uma manhã pelos arredores de Katmandu, vão até umas montanhas de onde se veem alguns picos e dizem que já fizeram um trek”. Percebe-se no esportista português o distanciamento do amadorismo e sua profunda consciência profissional. Durante a permanência no Campo-Base (5.200m) João Garcia descreve suas criações para baratear a escalada. Inventa várias peças, tem o talento para compor uma tenda que seja prática, resistente às intempéries. Tudo é meticulosamente pensado.

Há em João Garcia a vontade de não esconder enganos. Após meses de preparação e duras subidas e descidas aos vários Campos Avançados para aclimatação, Garcia e Debrouwer sentem-se prontos para o ataque ao cume. João Garcia, sem auxílio do oxigênio suplementar, vai à frente. Reconhece erros cometidos. A certa altura abandona em lugar “seguro” a  lanterna presa à testa e, posteriormente, as luvas suplementares. Ao atingir o pico mais alto do planeta durante o dia, tem dúvidas sobre se realmente lá chegara devido às mínimas elevações existentes no local, certificando-se contudo: “Ao fim de um bom bocado acabo por me convencer que o cume era ali. Até porque era o mais sujo. Ironia amarga, não é? O ponto mais alto, mais remoto do mundo, é identificável por estar sujo…”. Deslumbra-se e permanece não os pouquíssimos minutos recomendáveis, mas um tempo muito maior. Exalta a visão magnífica e o estar lá. Confessa que, devido à altitude, “já estou, há que reconhecê-lo, num misto de alucinação e mau funcionamento do cérebro, devido ao ar rarefeito”. Logo após iniciar a descida vê seu amigo Pascal que buscava, sôfrego, atingir o cume. Este insiste junto a Garcia que o acompanhe, pois o português não se deixara fotografar quando no pico. Nova ascensão, novo erro. Nas alturas permanece mais um bom tempo e, ao descer, a noite já se anunciava. Vai à frente novamente, mas sempre a aguardar o amigo. Cochila por vezes devido à exaustão, caminha às escuras, recobra forças e continua a descer. Em determinado instante, confuso, acredita que Pascal deva ter por ele passado. Ledo engano.  Sem a lanterna na testa e sem luvas apropriadas, tem consciência da série de equívocos. “Avançava agarrado às cordas geladas e nesta altura já só usava as luvas de lã, já não tinha as luvas de nylon postas. Tinha as mãos insensíveis e já não havia discernimento para avaliar a gravidade do que estava a fazer, a estupidez que era andar àquela altitude, esgotado e desidratado, apenas com luvas de lã. Foi aí que acabei de gelar as mãos”. Ao ser encontrado por amigos, inquietos pela longa demora, soube que o amigo belga não chegara. Um abismo certamente o tragou. Destino igualmente trágico aconteceria a um membro de expedição polonesa, cuja tenda ficava próxima à de Garcia.  

Saliente-se a clareza do autor ao abordar o esforço despendido por um alpinista  após atingir a zona da morte, assim considerada a marca dos 8.000m, quando, para cada passo, várias aspirações e expirações são realizadas, pois a quantidade de oxigênio nessas circunstâncias é ínfima. Essa situação provoca pensamentos confusos, difícil raciocínio justamente quando mais aguda deveria estar a mente. A longa exposição às baixíssimas temperaturas, a ausência do oxigênio suplementar e das luvas de nylon sobre as de lã resultaram num drama comum que acomete muitos alpinistas de grandes altitudes. A descida é sempre mais temida e foi ainda mais dramática para João Garcia. Saber voltar. Com extrema dificuldade os vários Campos Avançados foram atingidos: C3, C2, C1, o Acampamento Avançado e o Acampamento Base, até a segurança de um hospital. A necrose instalou-se nas extremidades dos membros de  João Garcia, que perderia as pontas de alguns dedos das mãos e dos pés, assim como segmento do nariz. Ficaria internado durante meses.

A intrepidez desse notável alpinista fê-lo reiniciar as escaladas, completando os 14 picos acima dos 8.000m e os sete mais elevados dos continentes. Para quem admira a literatura sobre montanhismo, A mais Alta Solidão é livro recomendado e estaria a evidenciar a presença de João Garcia, um dos mais importantes alpinistas da atualidade.

Comments on the book “A Mais Alta Solidão” (The Highest Solitude), written by the mountain climber João Garcia, the first Portuguese alpinist to reach the summit of Mount Everest without supplementary oxygen in 1999. In this book he recounts this dramatic experience, in which his partner Pascal Debrouwer fell to his death and João himself suffered severe frostbite, having later part of his fingers and nose amputated.