Uma Grande Amiga Partiu
Vou catando estas palavras,
Como quem cata continhas
Para bordar no meu peito
Toda a memória que eu tinha.
Maria Isabel
Ao longo da vida podemos contar nos dedos das mãos os verdadeiros, fiéis, incomensuráveis amigos. Esses, Portugal reverencia com um A maiúsculo. A raridade torna-os inesquecíveis. A amizade pode surgir ao acaso e ter imediata interação. Por vezes ela vai se sedimentando aos poucos e atinge o nível da inefabilidade.
O meu encontro com Maria Isabel poderia ter sido um a mais nos tantos relacionamentos amistosos que percorrem o nosso caminhar pela vida. Permanecem essas aproximações no tangível, sem aprofundamento maior, agradáveis, diria.
Tudo aconteceu em 1978, ano em que fiquei subjugado pela qualidade das obras do nosso grande compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931). Quis conhecer parte considerável da opera omnia do músico que nasceu e morreu no Rio de Janeiro, tendo vivido muitas décadas na Itália. O musicólogo Mozart de Araújo (1904-1988) indicou-me Maria Isabel Oswald Monteiro como a guardiã do acervo familiar do avô e interessada na divulgação de suas obras. Após telefonema formal, fui visitá-la no meio de uma tarde na Rua José Linhares, 65, no Leblon. Tão logo entrei e a cumprimentei, dirigi-me a um piano de cauda Blüthner que pertencera a Henrique Oswald, e sem mais nada dizer toquei a sua mais célebre criação para piano, Il Neige! (1902). O entendimento se fez, imediato, irreversível… Maria Isabel e seu marido, o ilustre médico Mário Monteiro, convidaram-me para jantar e tive sempre a sensação de que nos conhecíamos há séculos. Já desse primeiro encontro recebi das mãos da amiga o manuscrito autógrafo de uma Berceuse inédita, composta aos 22 de Setembro de 1886.
Maria Isabel Oswald Monteiro foi uma mulher notável. Partiu aos 28 de Junho após longa enfermidade. Pertence àquela categoria imprescindível de predestinados à preservação da história. Memorialista, lutou bravamente, neste mundo cada vez mais embrutecido, insensível e destruidor do passado cultural, pela divulgação amorosa e competente de figuras excelsas de nossas artes: o compositor Henrique Oswald e seu filho, o pioneiro da gravura em metal no Brasil, Carlos Oswald. Apoiou e incentivou todos aqueles que, de alguma forma, procuravam-na para pesquisar seus arquivos. Quando necessário, saía à luta para defender direitos inalienáveis omitidos pelo poder público. Quando da inauguração de placa comemorativa do cinquentenário da estátua do Cristo Redentor (1981) no Corcovado, Maria Isabel observou que faltava o nome de seu pai Carlos, o autor dos estudos e desenhos preliminares, que resultariam nessa que é uma das maravilhas modernas do planeta. Foi ter com o Governador e insistiu com veemência na colocação do nome de seu pai. O Governador de plantão aquiesceu, fez nova placa e o nome de Carlos Oswald lá está, na base do Cristo Redentor. Essa era a batalhadora. Também teve todo o empenho para que a coleção Carlos Oswald estivesse em lugar seguro, o Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. A meu pedido doou parte do acervo do compositor Henrique Oswald à Universidade de São Paulo. Os vários manuscritos que, ao longo de nossa longa amizade, foram generosamente por ela presenteados, deverei doar um dia à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Estudou piano e canto, diplomando-se pelo Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro. Estudaria órgão em São Paulo com Furio Franceschini. Apresentou-se várias vezes como intérprete nas três categorias. Durante anos aperfeiçoou-se em diversas oficinas especializadas em gravura. Realizava saraus, divulgava as obras do avô Henrique, cuidava da memória da ilustre família de sua mãe. Diria, uma enciclopédia dos laços sanguíneos talentosos e diversificados, pois nada ficava alheio aos seus interesses, voltados a perenizar os ascendentes. Que heroína, sem quaisquer anseios de autopromoção! Não se esquecia do cotidiano e quantas não foram as vezes em que pude presenciar o carinho e a preocupação com os quatro filhos e tantos netos!
Após aquele primeiro encontro mágico de 1978, nunca mais deixamos de estar em contacto. Sem Maria Isabel jamais poderia ter realizado o trabalho de “redescobrimento” da obra de seu ilustre avô Henrique. Todos os meses, durante anos, passava um ou dois dias da semana em seu apartamento, àquela altura na Visconde de Albuquerque, 333, também no Leblon. Eram dois dias de trabalho intenso, em que em nenhum instante havia esmorecimento. Sentávamos em seu ateliê – Maria Isabel foi exímia gravadora – e, frente à janela que dava para o pátio interno do prédio cercado por frondosas árvores, verificávamos manuscritos de Henrique Oswald e Maria Isabel lia com carinho os diários da mãe do compositor, Carlota, e de sua mulher, Laudomia. Do primeiro, há narrativas da criança que se desenvolvia sobre o manto materno. Laudomia, por sua vez, narra o cotidiano e deste tem-se inclusive o relato do encontro do jovem em êxtase, Henrique, com o grande Franz Liszt. Escritos em italiano, a caligrafia difícil das duas mulheres era percorrida com prazer e facilidade pela minha querida amiga. Que momentos inefáveis nós dois vivemos! Por vezes, Maria Isabel, após a leitura de episódio jocoso, dramático, trágico ou relativo ao desenvolvimento de seu avô paterno, parava a leitura e durante bom tempo comentávamos situações vividas por Henrique Oswald e sua família em Florença, preferencialmente. As cartas extraordinárias do grande libertário que foi Jean-Jacques Oswald, suíço-alemão, pai de Henrique, escritas em francês, igualmente eram lidas com empolgação, pois no início da segunda metade do século XIX lá está Jean-Jacques lutando contra a escravatura e também a favor dos imigrantes suíços que vieram para o interior de São Paulo. Chegou a ter a cabeça a prêmio a mando do Senador Vergueiro! Família Oswald, figuras épicas que deixaram nas folhas e partituras amarelecidas pelo tempo, mas também nas telas, gravuras e desenhos, parte de nossa história.
Desse intenso envolvimento em torno de Henrique Oswald, sob a égide carinhosa e atenta de Maria Isabel, fui pouco a pouco construindo minha tese de doutorado, que defenderia junto ao Departamento de História da Universidade de São Paulo em 1988. Maria Isabel e o marido Mário vieram do Rio de Janeiro, o que muito me emocionou. Após a tese, a primeira realizada sobre nosso maior compositor romântico, surgiram mais de uma dezena defendidas no Brasil e no Exterior. Quando um jovem pesquisador estava a pensar no tema Henrique Oswald, encaminhava-o à Maria Isabel e a todos ela recebia com atenção e incentivo. Se assim procedeu com a obra sonora do avô, também o fez com a criação pictórica do pai. De minha parte, sempre sob o olhar cúmplice de Maria Isabel, gravaria no Brasil, nos anos 80, quatro LPs (Funarte) e, na Bélgica, três CDs, basicamente com a obra camerística de Oswald. Quando a Edusp-Giordano publicou meu livro sobre Henrique Oswald em 1995, a alegria de Maria Isabel foi contagiante, o que a levou a publicar anos após, guardando muitas características gráficas com Henrique Oswald – músico de uma saga romântica, o seu precioso livro Carlos Oswald (1882-1971) – Pintor da Luz e dos Reflexos (Rio de Janeiro, Casa Jorge, 2000). Dizia mesmo que pai e avô deveriam estar sob o mesmo manto, daí ter buscado caminhos para certa identidade nessas duas homenagens que prestamos a Henrique e Carlos Oswald. Mulher absolutamente completa.
Quanto à obra de Carlos Oswald, Maria Isabel esteve sempre atenta à primeira tese de doutorado defendida no Brasil (2004): A Poética da Luz na Obra de Carlos Oswald. Coube à artista e professora Maria Amélia Blasi de Toledo Piza esse hercúleo trabalho acadêmico defendido junto à UNESP (Bauru). Tive o prazer de compor a banca examinadora da dissertação de mestrado da professora na mesma Universidade (1997), que propunha estudo pormenorizado de uma obra do irmão de Maria Isabel, igualmente excelente pintor e gravador: Henrique C.B. Oswald: O Mural da Santíssima Trindade em Botucatu.
Nos últimos anos sua saúde declinaria. Conseguiu superar várias etapas e, mesmo limitada em seus movimentos e comunicação verbal, permanecia atenta a tudo o que a cercava. Nossa correspondência internética prosseguiu até bem pouco antes de uma crise mais forte. O e-mail que recebi de Maria Clara Porto, filha de Maria Isabel, dias após seu falecimento, bem traduz as qualidades inalienáveis da mãe: “…múltipla, talentosa, excelente dona de casa, mãe e avó dedicadíssima, costurava, bordava, tricotava com excelência. Cantou, tocou piano, escreveu poesias, fez gravura em metal e foi a matriarca de nossa família. Apoiou meu pai, sempre! Filha amorosa e irmã exemplar, amiga dos amigos, inteligente, sensível, viveu seus últimos anos com uma doçura que a todos cativava. Os Natais organizados por ela em torno daqueles que a serviam serão lembrados para sempre por todos, um presente escolhido para cada um deles, enfim, muito fácil falar dela, sobre ela, meu modelo, minha mãe adorada e inesquecível, que para sempre estará nos nossos corações”. Continuará a semear o bem através do exemplo de vida que legou.
Clique para ouvir Il Neige!, de Henrique Oswald, com J.E.M. ao piano. Gravação realizada em Bruxelas.
This post is a tribute to Maria Isabel Oswald Monteiro, a dear friend that passed away last June. Granddaughter of the outstanding Brazilian composer Henrique Oswald and daughter of the painter and engraver Carlos Oswald, author of the final design of the statue of Christ the Redeemer in Rio de Janeiro, Maria Isabel grew up in a very artistic environment and studied piano, organ, singing and engraving. A memorialist, the struggled to keep alive the memory of her father and grandfather and in 1978 lovingly engaged with me in the research on Henrique Oswald’s works, focus of my PhD thesis defended at the University of São Paulo. As a result of our pioneer work, many academic papers on Henrique Oswald have appeared since then. My thesis later turned into a book and Maria Isabel, following my example, also published a book on her father Carlos Oswald, saying that father and grandfather should be equally revered. In her daughter’s words, she was “multiple, talented, excellent housewife, devoted mother and grandmother, sewing, embroidering and knitting with excellence. She sang, played the piano, wrote poetry, practiced engraving and was the matriarch of our family”. An absolutely remarkable woman, a great friend that will always remain in my heart.